#JulhodasPretas ou As histórias que as mulheres negras contam em primeira pessoa

Diva Guimarães e Conceição Evaristo  por Walter Craveiro/El País

“Então um dia
Outras mulheres negras
Das mesmas fileiras que nós
Nos ensinaram que tudo que tínhamos aprendido
Era uma grande farsa.
Foi quando aprendemos a lutar.”

Desensinamentos, de Jenyffer Nascimento.


Conseguimos neste julho sair da invisibilidade imposta e sair também do lugar de protagonizar o ano somente em dois meses específicos: maio por conta das comemorações da abolição da escravatura e novembro, por conta do dia 20, dia nacional da consciência negra.

Julho foi farto, intenso e um mês marcado por iniciativas que marcaram a vida das mulheres negras em todo o país e que ficou conhecido como #JulhodasPretas.

A começar pelo dia 25 de julho, data que se comemora o Dia Internacional da Mulher Negra Latina Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela, e para adquirirmos cada vez mais visibilidade, começamos a história com Tereza de Benguela, uma das maiores heroínas negras do Brasil.

“Rainha Tereza”, como ficou conhecida em seu tempo, viveu na década de XVIII no Vale do Guaporé, no Mato Grosso. Ela liderou o Quilombo de Quariterê após a morte de seu companheiro, José Piolho, morto por soldados. Segundo documentos da época, o lugar abrigava mais de 100 pessoas, com aproximadamente 79 negros e 30 índios. O quilombo resistiu da década de 1730 ao final do século. Tereza foi morta após ser capturada por soldados em 1770 – alguns dizem que a causa foi suicídio; outros, execução ou doença.    

Sua liderança se destacou com a criação de uma espécie de Parlamento e de um sistema de defesa. Ali, era cultivado o algodão, que servia posteriormente para a produção de tecidos. Havia também plantações de milho, feijão, mandioca, banana, entre outros.

Após ser capturada em 1770, o documento afirma: “em poucos dias expirou de pasmo. Morta ela, se lhe cortou a cabeça e se pôs no meio da praça daquele quilombo, em um alto poste, onde ficou para memória e exemplo dos que a vissem”. Alguns quilombolas conseguiram fugir ao ataque e o reconstruíram – mesmo assim, em 1777 foi novamente atacado pelo exército, sendo finalmente extinto em 1795. (https://goo.gl/n3QYZi )

 

Flip Preta


A grande e mais enegrecida de todas as suas edições, a 15ª FLIP (Feira Internacional de Literatura de Paraty) de 2017 foi fruto da luta e da reivindicação das mulheres negras na edição anterior, quando embora homenageando a poeta Ana Cristina Cesar e de ter 17 mulheres entre os 39 escritores de sua programação, não tinha nenhuma pessoa negra entre esses 39 nomes.

Na edição anterior, as escritoras Ana Maria Gonçalves e Conceição Evaristo tiveram falas bastante contundentes.sobre essa ausência. Conceição Evaristo questionou:
“Em 2008, na Alemanha, a então ministra da cultura Marta Suplicy, comentando sobre o baixo número de negros na comitiva do Brasil, respondeu a um repórter alemão que não existiam escritores negros brasileiros à altura daquele evento internacional. Neste ano, em Paris, na delegação brasileira, entre 42 pessoas, tinham apenas 3 negros. Era a cota para exemplificar a diversidade brasileira”.

Ana Maria Gonçalves foi ainda mais enfática sobre a importância da postura de luta para ser tratada como igual: “Faço literatura engajada, sobre política e gênero. É muito difícil para a gente ser respeitada como autora. Temos que brigar por nosso espaço, para sair desse lugar de personagem exótico. Precisamos mostrar nossa qualidade, outro ponto de vista. Ainda tenho a visão utópica da arte como instrumento de mudança da sociedade. É necessário abandonar modelos e estruturas obsoletas, como nossa política”, reitera. (https://goo.gl/GXD2qj )

Em 2017, a curadoria da Flip mudou. A jornalista cultural e historiadora Joselia Aguiar  assumiu a direção do empreitada e com isso parece que as mudanças foram de fato significativas, como a homenagem ao autor negro Lima Barreto e a presença de 10 escritoras e escritores negros entre 42 convidados: Conceição Evaristo, Ana Maria Gonçalves, Djaimilia Pereira de Almeida, Edimilson de Almeida Pereira, Grace Passô, Marlon James, Scholastique Mukasonga, Ricardo Aleixo, Paul Beatty e Lázaro Ramos.

A mesa de maior repercussão do evento, sob o tema A pele que habito, ficou por conta do ator e escritor Lázaro Ramos que optou por ler um capítulo que ficou de fora do seu recém lançado livro, “Na minha pele” – o título mais vendido da história da feira. Falou ainda sobre a importância de encararmos a grande problemática do Brasil hoje: o genocídio dos jovens negros, e foi enérgico ao afirmar que o próximo passo na discussão sobre racismo no país é a vergonha na cara.

Mas a grande surpresa foi Diva Guimarães, a grande estrela do evento, que não por acaso, nessa mesma mesa, teve todos os holofotes lançados para si ao emocionar as pessoas que ali estavam e todas as outras que puderam assistir ao seu vídeo que teve até o presente momento mais de 12 milhões de visualizações.

A professora Diva Guimarães é o retrato de uma geração de mulheres negras que foram caladas por muito tempo, que tiveram seus saberes negados por serem orais, por não virem respaldados por uma instituição acadêmica. Todas as mulheres negras têm ou já tiveram uma “Diva” dentro de suas casas.

Catálogo Intelectuais Negras Visíveis

Essa ausência de escritoras negras e negros na edição de 2016 da FLIP, teve como resposta uma carta aberta (https://goo.gl/HQFwiv ) aos organizadores da Feira, escrita pelas integrantes do Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). A carta assinada pela coordenadora do Grupo, a professora Giovana Xavier, questionava essa ausência e elencava uma série de escritoras negras que poderiam perfeitamente figurar entre as autoras convidadas: “Esse silenciamento do nosso existir em uma feira que se reivindica como cosmopolita, mas está mais para Arraiá da Branquidade, insere-se no passado-presente de escravidão, no qual a mulher negra é representada, vista e tratada como um corpo a ser dissecado. Um pedaço de carne que está no mundo para servir. Um objeto a ser estudado e narrado pelo outro branco. Foi assim com Maria Firmina dos Reis, mulher negra do Maranhão, autora de Úrsula, o primeiro romance abolicionista da história do Brasil, datado de 1859 e que, embora reeditado pela Editora Mulheres em 2004, mantém-se desconhecido da maioria das pessoas”.

Essa carta aberta foi o pontapé inicial para uma iniciativa inédita de mapeamento de mulheres negras e suas áreas de especialização, organizado pelo Grupo de Estudos e Pesquisas Intelectuais Negras. O catálogo intitulado Intelectuais Negras Visíveis reflete o lema usado pelo Grupo Intelectuais Negras em suas ações: “Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando a sua própria história”.

A publicação conta com projeto gráfico de Maria Júlia Ferreira, foi coordenada por Giovana Xavier, feita por Amanda Sanches, Conceição Seixas, Janete Ribeiro e Núbia Oliveira e editada em parceria com a Editora Malê. Os trabalhos das 153 profissionais negras listadas estão apresentados nas categorias: Academia e Pesquisa, Afroempreendedorismo, Artes (Cinema, Dança, Música, Teatro e TV), Artes Visuais, Coletivo de Mulheres Negras, Comunicação e Mídias, Direitos Humanos, Intelectuais Públicas, Literatura, Professoras de Educação Básica e Saúde.

 

Angela Davis na UFBA


E no dia em que é comemorado o dia da Mulher Negra Latina Americana e Caribenha, a professora e filósofa estadunidense Angela Davis, lotou o salão nobre da reitoria da Universidade Federal da Bahia, com a conferência “Atravessando o tempo e construindo o futuro da luta contra o racismo”. O evento foi organizado pela UFBA em parceria com o Instituto Odara, o Coletivo Angela Davis, o Núcleo de Estudos Interdisciplinar da Mulher (NEIM) e a Universidade Federal do Recôncavo Baiano (UFRB).

Angela Davis é ativista, filósofa e feminista negra, mundialmente conhecida por sua trajetória de contribuição política nos Estados Unidos pelos direitos civis das pessoas negras, a luta pela liberdade dos corpos das mulheres negras, contra o encarceramento em massa do povo preto, e pelo mundo sustentável.

A ativista afirmou ser “indescritível” a sensação de viver num país liderado por Trump. “Nós resistiremos. Em todos os dias da administração Trump, resistiremos. Resistiremos ao racismo, à exploração capitalista, ao hetero-patriarcado, à islamofobia e ao preconceito contra pessoas com deficiência. Defenderemos o meio ambiente dos ataques insistentes e predatórios do capital.”

Angela Davis fez menção ao movimento Black Lives Matter (Vidas Negras Importam), que, nos Estados Unidos, vem ganhando destaque nos últimos anos pela luta contra a violência policial que atinge mais incisiva e cotidianamente a população negra. “Nós sabemos que as transformações históricas sempre começam pelas pessoas. Essa é a mensagem do movimento Black Lives Matter. Quando as vidas negras começarem a realmente importar, significará que todas as vidas têm importância. Quando a vida das mulheres negras importar, o mundo será transformado e saberemos, com certeza, que todas as vidas importam”, destacou a ativista.

Angela Davis também denunciou a política de encarceramento em massa, que também se desdobra em racismo institucional, já que afeta desmedidamente a população negra. Destacou a necessidade de se combater as formas institucionais e individuais de violência e cerceamento de liberdades dessas populações, mas sem esbarrar em uma perspectiva de vingança.

“Esta é a chamada feminista negra por formas de justiça que não sejam vingativas. Mulheres negras representam o futuro. Mulheres negras são a esperança de liberdade. Não reivindicamos inclusão numa sociedade racista, misógina, patriarcal e capitalista. Afirmamos o feminismo abolicionista”, afirmou.

Outro ponto alto da fala foi  a política de cotas nas universidades brasileiras, elogiada pela ativista, que disse que os Estados Unidos, embora tentem há décadas implantar algo parecido, jamais conseguiram. “Admito que estou muito mais impactada com o sistema educacional brasileiro que com o norte-americano. Me lembro bem quando no Brasil começaram os debates e na Bahia já vejo ações concretas. Vi isso principalmente em Cachoeira, na Universidade do Recôncavo. Isso nos prova que é mesmo possível garantir acesso à educação formal à população que havia sido excluída historicamente”, defendeu.


Festival Latinidades


Dos dias 27/07 a 30/07 Brasília foi sede do Festival Latinidades – O maior festival de Mulheres Negras da América Latina – que comemorou 10 anos de existência. Foram 4 dias de debates, mesas, workshops e shows que contou com a presença de grandes mulheres negras como a cineasta Viviane Ferreira, a artista plástica Rosana Paulino, a artevista Erica Malunguinho, a afrotransfeminista Maria Clara Araújo dos Passos, a socióloga Vilma Reis, a Youtuber Nátaly Neri, a empresária Ana Paula Xongani, dentre tantas outras.

Com o tema – Horizontes de liberdade: afrofuturismo nas asas da Sankofa, o Latinidades colocou em pauta que tipo de sociedade que estamos construindo hoje.
O festival levantou, na primeira mesa, com o nome “Memórias de Visionárias”, a importância de disputar narrativas sobre a representação e a imagem dos negros nas artes, sejam elas plásticas ou visuais. A artista plástica Rosana Paulino foi enfática ao afirmar: “ É na escola que começa o bombardeio de imagens negativas. Nós temos que fazer o movimento contrário, o processo de substituição, o processo questionador, de livramento de peso, a proposição de novas narrativas e novas imagens”.

A segunda mesa de debates levantou o tema “Miragens do Futuro no Presente”.
A artevista Erica Malunguinho trouxe para a discussão o significado do adinkra Sankofa (que significa voltar no passado para ressignificar o presente) dizendo que:” Nós não somos Resistência, somos Existência! Temos que lembrar que não somos recorte, nós somos fundamento!”

A cineasta Viviane Ferreira, na mesa cujo título era “Afrontosas: agir para Transformar”, trouxe toda a potência de mulher negra do audiovisual com uma fala poderosa sob a necessidade imperiosa de ocupar os espaços hegemônicos: “Estamos em guerra há muito tempo e o audiovisual é o meu front de batalha, o que eu escolhi para guerrear pela disputa simbólica na imagem dos corpos negros. Quando eu digo que estamos em guerra é porque quando dizemos que somos cineastas negras, estamos batendo de frente com a hegemonia e eu digo: eu não abro mão da minha subjetividade para fazer cinema”.

Na mesma mesa, a socióloga Vilma Reis, ovacionada de pé pela plateia, destacou a relevância de ser negro e estar disputando os espaços acadêmicos: “Nas universidades não podemos ser um ponto preto no meio da festa branca, estar na universidade sendo uma pessoa negra consciente, pressupõe realizar tarefas. Nossos diplomas de graduação, mestrado e doutorado não são um fim em si mesmo. Eles não servem para nada, se não libertarem o nosso povo”.

A empresária Ana Paula Xongani falou sobre os processos de construção de sua marca, a Xongani, na mesa “Moda Preta: Poder, lacre e transformação”, e sobre como esses processos incidem na produção e no consumo de uma moda mais consciente: “Sobre processo, o meu start foi observar a minha comunidade e traduzir em peças o que ela está pensando, para que as pessoas saibam o que a gente está falando com essa linguagem não-verbal. Comprar moda afro consciente é mais caro. Mais do que produtores conscientes, precisamos de consumidores conscientes, pois isso é retroalimentado. Quem vai ser empregada é a sua filha, quem vai costurar é a sua tia, ou seja, quem é tá ganhando se não a gente? E tem mais, ser consciente na moda é mais do que consumir pouco, consumir moda vegana, é saber dos processos de transparência, é saber que todas as peças que estão no seu corpo não tem mãos negras escravizadas”.

O Festival Latinidades fechou a sua 10ª edição com um stand up da jornalista baiana Maíra Azevedo mais conhecida como Tia Má, que lotou o auditório do Museu Nacional e com o show da duo americano Oshun.  

Marcha das Mulheres Negras

E no último domingo de julho e fechando o #JulhodasPretas, o Rio de Janeiro sediou a III Marcha das Mulheres Negras, na Avenida Atlântica, na orla de Copacabana, Zona Sul. A marcha, que foi realizada em outras cidades como Salvador e São Paulo durante a semana, teve como objetivo chamar a atenção para a desigualdade e a discriminação racial vividas diariamente por mulheres negras em todo o País.

De acordo com dados divulgados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no ano passado, entre 2005 e 2015, o percentual de negros e negras universitários saltou de 5,5% para 12,8%. No entanto, esse o crescimento positivo não é igual quando a análise é a ocupação de vagas no mercado formal de trabalho. Mesmo tendo aumentado o número de graduados, os negros continuam com baixa representatividade nas empresas.

Nas organizações, a desigualdade entre brancos e negros aparece de forma gritante. Segundo dados de uma pesquisa do Instituto Ethos, realizada no último ano, pessoas negras ocupam apenas 6,3% de cargos na gerência e 4,7% no quadro executivo, embora representem mais da metade da população brasileira.

Neste contexto, a presença de mulheres negras, em comparação aos homens, é ainda mais desfavorável: elas preenchem apenas 1,6% das posições na gerência e 0,4% no quadro executivo. A situação só se inverte nas vagas de início de carreira ou com baixa exigência de profissional, como em nível de aprendizes (57,5%) e trainees (58,2%).

Outro desafio da população negra é a disparidade salarial. Ainda que tenha diminuído nos últimos anos, os dados sobre desigualdade de renda continuam a registrar um desequilíbrio considerável entre brancos e negros no Brasil.

A Pesquisa Mensal de Emprego (PME) do IBGE indica isso. No início de sua série histórica, em 2003, um negro não ganhava nem metade do salário de um branco (48%). Atualmente, pouca coisa melhorou. Fazendo a mesma comparação, em 2015, um negro passou a ganhar pouco mais da metade dos rendimentos de um branco (59%).

Segundo uma das organizadoras da marcha, a psicóloga, professora e vice-presidente do Centro de Tradições Afro-Brasileiras (Cetrab), Dolores Lima, em entrevista à agência brasil (https://goo.gl/CTWL2N ), o espaço escolar segue como um dos lugares onde mais se tem recorrência de casos de racismo: “É uma escola do século 19, professores do século 20 e alunos do século 21. Imagina isso reforçado pelo racismo, que coloca essas crianças fora desse sistema, porque não se enxergam e não se colocam ali dentro. Passam por um processo de discriminação, em que a própria instituição não prepara os profissionais para a discussão do racismo”.  

Que os passos das mulheres negras em julho sigam reverberando, indo por caminhos abertos pelas ancestrais, pavimentando os caminhos para as mulheres negras do futuro e fazendo de todas as mulheres negras, mulheres potentes e visíveis. Não nós esqueçamos das palavras de Azoilda Loreta da Trindade: “A invisibilidade é a morte em vida”. Vivamos.