Quilombolas resistem na luta pela titulação de terras e nas ações pela equidade racial

  Busca de acesso a serviços básicos nas várias comunidades, preservação da cultura, difusão de seu modo de produção com respeito à natureza são prioridades 

Por Wagner Prado

O ano de 2021 começou com o povo quilombola sendo uma das principais notícias no Brasil. As comunidades quilombolas fizeram pressão e o Governo Federal teve que organizar um Plano de Operacionalização para a vacinação nos quilombos.  Quase findado 2021, o que se vê, na prática, é que populações quilombolas em todo o país não foram, efetivamente, priorizadas.  Até o mês de outubro, em quase dois anos de pandemia, apenas 70% dos quilombolas haviam recebido a segunda dose da vacina.  Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), são 5.972 comunidades quilombolas no Brasil, envolvendo cerca de 16 milhões de pessoas.

O povo quilombola, porém, não se verga. A luta pela titulação de terras é um dos seus principais objetivos. Mas o que é a titulação de terras? É o reconhecimento, por parte do Estado, de que o direito a determinada terra é quilombola, baseado na questão da ancestralidade, da preservação da cultura e da subsistência. O governo federal não fez qualquer titulação nos últimos dois, confirmando o que disse o presidente Jair Bolsonaro quando ainda estava em campanha: “Não vai ter um centímetro demarcado para reserva indígena nem para quilombola”. 

Com a ausência de políticas públicas focadas em suas necessidades, a população quilombola tem na resistência a sua força. Articulador nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq), Biko Rodrigues deu a seguinte declaração à imprensa no final de novembro. “A lentidão coloca as comunidades quilombolas numa situação de extrema vulnerabilidade, uma vez que a maioria do território de uma comunidade não está sob domínio dela, mas de terceiros, muitas vezes fazendeiros. A não execução dessa política coloca a comunidade em vulnerabilidade alimentar, jurídica e política.” 

Biko Rodrigues – Articulador nacional da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas

A fala de Biko Rodrigues, principalmente quando toca na questão da vulnerabilidade, leva ao encontro de duas realizações do Fundo Baobá para Equidade Racial: o edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça, lançado em maio de 2021, e o edital Quilombolas em Defesa: Vidas, Direitos e Justiça, lançado em outubro. 

O edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça tem apoio do Google.org, braço filantrópico do Google, e selecionou 12 entidades, cada uma recebendo dotação de R$ 100 mil para execução de seus projetos. As propostas apresentadas teriam que versar sobre quatro temas: a) Enfrentamento à violência racial sistêmica; b) Proteção comunitária e promoção da equidade racial; c) Enfrentamento ao encarceramento em massa entre adultos e jovens negros e redução da idade penal para adolescentes; d) Reparação para vítimas e sobreviventes de injustiças criminais com viés racial.  O Quilombolas em Defesa: Vidas Direitos e Justiça tem como objetivo apoiar iniciativas de organizações quilombolas que promovam a sustentabilidade econômica e geração de renda;  soberania e a segurança alimentar, além de defender os direitos quilombolas nas comunidades. 

Os editais do Fundo Baobá são criados a partir de evidências produzidas pela academia, governos e outros atores estratégicos; análises de contexto e escuta ativa do campo. Portanto, vão ao encontro das necessidades que as populações em situação de vulnerabilidade estejam demonstrando.  No caso do Vidas Negras: Dignidade e Justiça,  as propostas que versavam sobre “Proteção Comunitária e Promoção da Equidade Racial” tiveram inscrições de entidades quilombolas.

 Uma delas a Associação de Jovens Moradores e Produtores Rurais de Santa Luzia do Maranum (Ajomprom), do estado do Amapá, que apresentou projeto para desenvolver e fomentar o “empoderamento” politico-cultural das comunidades negro-quilombolas naquele estado, através da realização de oficinas temáticas e formações inter-geracionais que visem a defesa e efetivação dos seus direitos étnico-territoriais quilombolas e tradicionais em favor da equidade racial. O projeto “Povos Quilombolas Do Amapá: A Luta Pela Garantia E Efetivação De Direitos”, da Ajomprom, reforça a missão da organização,  que se baseia no desenvolvimento e fortalecimento cultural de políticas públicas de promoção da igualdade racial no âmbito do estado.  

A Ajomprom é donatária do Fundo Baobá pela segunda vez em seus 11 anos de criação. Em 2014, foi selecionada para o edital  Redução da Mortalidade Materna em Comunidades Quilombolas do Amapá. A seleção gerou uma grande transformação na Ajomprom que, a partir de lá, experimentou um crescimento importante diante da comunidade com a qual atua. “A  Ajomprom tem o  objetivo de desenvolver o fortalecimento cultural e incidir nas políticas públicas de promoção da igualdade racial, no âmbito do Estado do Amapá. Nos seus projetos e  ações prioriza questões de gênero, juventude e  comunidades remanescentes de quilombolas na luta pelos direitos étnicos territoriais de matriz africana. Também aborda igualmente as pautas estruturais,  como educação, saúde, cultura, habitação, emprego, renda e segurança. O objetivo é zelar pelo cumprimento da legislação protetiva da população negra”, escreveu Josilana da Costa Santos, membra da diretoria da Ajomprom, no formulário de inscrição elaborado pelo Fundo Baobá para o edital Vidas Negras. 

Josilana da Costa Santos – Coordenadora da Ajomprom

Josilana da Costa Santos explica que os objetivos da Associação de Jovens Moradores e Produtores Rurais de Santa Luiza do Maranum fizeram com que as diretrizes voltadas ao combate ao racismo e outros tipos de injustiças ganhasse muito corpo entre eles. “Os africanos que vieram por meio do comércio de escravos tornaram-se os mais numerosos membros deste Novo Mundo, tanto no Norte quanto no Sul da América. Ao longo da história, juntaram-se aos portugueses, indígenas e africanos, pessoas das mais diversas origens, formando o povo brasileiro. Este intercâmbio de povos com experiências históricas distintas enriqueceu-se com trocas de conhecimentos, resultando no vasto patrimônio cultural que se apresenta hoje no Brasil, em especial no Amapá, onde Macapá concentra um significativo núcleo populacional negro. No entanto, o grau de desigualdade que sempre marcou este contato deixou marcas profundas que ainda devem ser superadas. A hierarquia entre os povos de origens diferentes que compõem a nação brasileira está presente em todos os indicadores econômicos e sociais, constituindo-se uma questão relevante para se compreender o Brasil contemporâneo,  algo visto fortemente no norte do país”, respondeu Josilana no mesmo questionário. 

Para a população quilombola de todo o país, a grande vitória  em 2021 aconteceu quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que o Governo Federal elaborasse, em regime de urgência, um plano de enfrentamento da pandemia da Covid-19 nas comunidades. A decisão foi dada no julgamento da Arguição de Desenvolvimento de Preceito Fundamental (ADPF) 742/2020. O pedido para que houvesse o julgamento foi protocolado pela  Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) em setembro de 2020. A principal reivindicação do documento elaborado pela Conaq estava baseada no baixo acesso que os quilombolas têm, em sua maioria,  às redes públicas de água e esgoto, além do sistema público de saúde. Esses direitos são garantidos pela Constituição, porém não vinham sendo observados. “Foi uma vitória inesquecível. Das vitórias que a gente já teve, essa é histórica, porque é a primeira vez que a gente busca o STF para efetivação de um direito que já é garantido e não estava sendo efetivado. É uma vitória maravilhosa e emocionante, depois de tantas lutas, dificuldades e enfrentamentos desde o início da pandemia”, afirmou Vercilene Dias, assessora jurídica da Conaq, em declaração à imprensa.  

Vercilene Francisco Dias, assessora jurídica da Conaq