Edital Primeira Infância atraiu olhares profissionais e acadêmicos para a população vulnerável, durante a pandemia

Falar de medidas de isolamento físico e social para os sem-teto, durante a pandemia, é mais do que uma ironia. É motivo de muito sofrimento. Conhecedora dessa realidade, a arquiteta Viviane Zerlotini da Silva, de 50 anos, propôs ao Fundo Baobá medidas que impactassem positivamente cerca de seis mil famílias vivendo em Izidora, ao Norte de Belo Horizonte – um dos maiores conflitos fundiários da América Latina. Homens, mulheres e crianças em constante situação de precariedade e sem acesso às políticas públicas.

Na sua rotina de assessora técnica das ocupações de Izidora (Esperança, Helena Grego, Vitório e Rosa Leão), em atividades de extensão pela PUC Minas Gerais, Viviane também acompanha os movimentos de uma rede de cuidadores de crianças e idosos responsável por auxiliar as lideranças reconhecidas pelos moradores, na distribuição de doações. Quando a pandemia chegou, trazendo normas restritivas de acesso a uma série de serviços (creches, escolas, postos de saúde e o Centro de Referência da Assistência Social), percebeu que tudo ficou mais complicado.

Ela então tomou a iniciativa de aderir ao Edital Primeira Infância, e de convocar outros colegas e alunos do Departamento de Arquitetura e Urbanismo da universidade.

“Com os devidos cuidados andamos com as lideranças, visitamos as casas, ouvimos os moradores e as muitas dúvidas que tinham em relação à Covid. Muitos estavam preocupados com a aglomeração de jovens nos bailes, com a necessidade eventual usar o transporte público, sem saber como acessar o posto de saúde para levar alguém doente ou ainda como lidar com os filhos fora da escola, por exemplo”.

Projeto de Viviane Zerlotini da Silva, Izidora (MG)

A principal ação do projeto acabou se transformando a produção e gravação de pelo menos cinco vídeos, que incluíram depoimentos dos próprios moradores e de profissionais de saúde, depois compartilhados por um aplicativo de mensagem.

“O retorno que tivemos foi ótimo. Eles gostaram muito, porque viram moradores falando e se reconheceram ali”, comenta Viviane.

Em outra ação emergencial os alunos da Escola de Formação de Autoprodutores em Processos Socioambientais, da universidade, sugeriram a confecção de brinquedos de sucata e madeira para suprir a falta da escola e da internet para a garotada. A ideia foi afinada em videoconferência, com as lideranças comunitárias. E alunos dez alunos da disciplina Processos Colaborativos elaboraram cartilhas explicativas para que os próprios moradores montassem as peças.

Projeto de Viviane Zerlotini da Silva, Izidora (MG)

“A doação de brinquedos contribuiu com a formação da criança, em seu universo lúdico, ao mesmo tempo que não exigiu a presença de um adulto externo à ocupação para acompanhar estas crianças, apenas dos pais e cuidadores. Evitou-se assim a circulação do vírus nas ocupações“, ressalta Viviane.

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A psicóloga clínica e social Liliane Santos Pereira Silva, 24, também entende a realidade de moradores de territórios em conflito, e se preocupa com esses espaços atualmente.

“Atuo desde 2016 nesses territórios (MST, Quilombos, Comunidades indígenas e campesinas), inicialmente como estudante, nesse momento como profissional. E, para além do compromisso profissional, como mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Alagoas considero que as universidades públicas devem voltar suas pesquisas a atividades de campo, produzindo nos territórios a aliança entre pesquisar e intervir”, pondera.

Para atenuar os sofrimentos da comunidade Quilombola Cajá dos Negros, na Zona Rural da cidade de Batalha, no sertão alagoano, ela optou por iniciativas virtuais e presenciais voltadas para crianças de 3 a 6 anos, mulheres jovens e adultas em período gestacional ou puerpério, além de vítimas de violência doméstica.

“Com as crianças visamos apresentar cartilhas com brincadeiras africanas em que elas possam conhecer a história do seu povo, da sua comunidade e construir referências negras desde a infância. Às mulheres grávidas ou em período puerpério ofertamos acompanhamentos para sanar dúvidas sobre o período e os cuidados em relação à Covid-19. Por fim, tentamos acolher as mulheres vítimas de violência doméstica e articular um processo de conscientização comunitária sobre o assunto, divulgando uma cartilha sobre os tipos de violência e os locais de amparo”, descreve.

Projeto de Liliane Santos Pereira Silva, Quilombo Cajá dos Negros (MG)

Liliane calcula que 15 famílias foram diretamente impactadas pelas ações, por meio de 11 crianças e quatro mães; mais 88 outras famílias, indiretamente.

“A aplicação das cartilhas infantis com jogos e contos africanos foi a que enfrentamos o maior desafio. Alguns pais e mães eram analfabetos e/ou não possuíam smartphones para receber vídeos e áudios com as explicações das brincadeiras. Para resolver isso, seguimos com a proposta de conteúdo apresentado por WhatsApp, para as famílias que possuíam o smartphones; as que não tinham receberam a vista de jovens mediadoras da comunidade que foram até suas casas para aplicar algumas atividades. Sempre seguindo rigorosamente todos os cuidados em relação a Covid-19”.

Projeto de Liliane Santos Pereira Silva, Quilombo Cajá dos Negros (MG)

Vários relatos de participantes foram satisfatórios em relação à melhora do relacionamento pais e filhos, e do comportamento dos pequenos por meio da leitura das cartilhas infantis. Já as mães sentiram-se mais confiantes com as informações seguras e de qualidade que receberam.

“Com relação às vítimas de violência, nós focamos em discutir possibilidades de desenvolvimento de renda. A saída de uma relação abusiva nunca é simples. Existe uma base sustentável que a mulher precisa ter (econômico e psicológico), e foram por essas vias que atuamos”, comentou.

“Envolver-se com comunidades é sempre pensar cada estratégia com muito cuidado e com afetividade, pensando o impacto que isso pode fornecer as famílias e como pode ainda impactar a longo prazo. De forma ampla, o maior aprendizado que recebo das comunidades é o cuidar do outro com afeto e paciência e ainda de construir ações sorrateiras, que quebram nuances do sistema hegemônico e produz no território a potência de transformação coletiva”.

Projeto de Liliane Santos Pereira Silva, Quilombo Cajá dos Negros (MG)

No Rio de Janeiro, a médica da família Patricia Maria Barros Thomas, 37, considera que o seu trabalho sempre teve um cunho social. Com a chegada do novo coronavírus e seus efeitos negativos sobre a sociedade, ela decidiu fazer algo mais pelas mulheres e crianças da Rocinha – por muitos considerada a maior favela urbana do país, encravada entre três bairros nobres da cidade.

“Percebi que a pandemia agravou as necessidades dos moradores. Quando fiquei sabendo do Edital Primeira Infância, pela Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, eu propus montar kits infantis, com produtos de higiene e materiais de brincar, e ofertá-los às famílias mais vulneráveis. A ideia inicial era aproveitar o momento da entrega e propiciar uma espécie de ‘oficina’ para tratar de temas como desenvolvimento infantil e relação pais-filhos, na própria clínica, mas estamos em uma unidade de saúde do município trabalhando num contexto bastante adverso nos últimos meses”.

O agravamento do quadro da pandemia na cidade atrapalhou os planos de Patricia, mas não a impediram de entregar 30 kits, contendo quadro negro, giz, apagador, massinha de modelar, areia, fita crepe, lápis de cor, giz de cera, cola, folhas de papel A4, livros infantil, leite em pó, fraldas e sabonete. Ela foi até o encontro das crianças e responsáveis, na companhia de agentes comunitários de saúde, colegas médicas, residentes e estudantes de medicina. Todos voluntários.

“A atividade contribuiu bastante para os agentes, residentes e estudantes no aspecto da formação profissional. Além disso, a impressão geral é a do quanto podemos fazer com poucas coisas. Neste tópico, vale muito mais a abordagem, o ‘recurso humano’, não somente o material!”