Doações emergenciais aos imigrantes na pandemia

Uma longa crise econômica e humanitária na Venezuela trouxe fileiras de imigrantes ao Brasil ao longo dos últimos anos. Em janeiro de 2020, o Comitê Nacional para Refugiados (Conare), ligado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, já havia reconhecido 17 mil venezuelanos como refugiados. E segundo o Atlas Temático – Migrações Venezuelanas (Unicamp), 3.250 imigrantes tinham registro ativo residentes na Região Nordeste, no período 2000-2019.

Na cidade de Crato, no Ceará, a professora de teatro e artes, Carla Hemanuela Bezerra, de 35 anos, e sua trupe, aproveitaram a chamada para o Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19, para colaborar com famílias venezuelanas que estavam de passagem pela Casa do Migrante, em novembro do ano passado. O edital avaliaria ações emergenciais dirigidas a povos indígenas, quilombolas, migrantes ou refugiados foram avaliadas em relação à sensibilidade cultural.

Projeto de Carla Hemanuela Bezerra na Casa do Migrante, em Crato (CE)

“Faço parte de um grupo de teatro que já realiza atividades em comunidades periféricas, com contação de história, oficinas e espetáculos teatrais. Quando surgiu o edital vimos a possibilidade de desenvolver algo na Casa do Migrante, que apoia os imigrantes venezuelanos. O prédio pertence à Diocese de Crato, mas é mantido com doações”, explica.

“Com a doação emergencial do Baobá fizemos em novembro um primeiro encontro presencial com as famílias para apresentamos o projeto. Em um segundo encontro organizamos oficinas de resgate da cultura venezuelana, uma com as crianças e outra com os pais. Todos escolheram falar sobre a cultura do seu país através de desenhos”.

As ilustrações que os pequenos fizeram estamparam tecidos que por sua vez viraram máscaras de proteção contra a Covid-19, em uma oficina de costura.  Carla gravou um vídeo com dicas para a confecção das peças, que foi compartilhado para outras dezenas de famílias de refugiados espalhadas pela Região do Cariri.

Projeto de Carla Hemanuela Bezerra na Casa do Migrante, em Crato (CE)

“Em 2020 mais de 100 venezuelanos passaram pela Casa do Migrante, mas durante o projeto só três famílias permaneciam desempregadas. Uma delas foi escolhida para receber uma máquina de costura e os materiais que usamos na oficina. A mulher é costureira e o marido artista plástico, então eles já estão confeccionando máscaras e bolsas para vender. O projeto foi para muitos, mas gerou imediatamente emprego e renda para uma família com três crianças. Também temos notícia de outros venezuelanos, em outras localidades, que estão confeccionando máscaras para vender”.

Os participantes ainda criaram uma logomarca para o projeto e participaram ativamente da produção de um documentário.

Projeto de Carla Hemanuela Bezerra na Casa do Migrante, em Crato (CE)

“Eles foram filmados ressaltando aspectos positivos do seu país e a necessidade de doações para a Casa do Migrante de Crato. A nossa preocupação agora é dar continuidade ao projeto, colaborando com esses mais de 100 imigrantes que ainda estão no Cariri, entre eles muitos jovens e crianças. Temos a ideia de criar uma brinquedoteca e outras coisas mais”.

A situação dos refugiados venezuelanos também sensibilizou a psicóloga Beth Fernandes, de 54 anos, 25 deles trabalhando com ativismo social.

“Estive em Boa Vista, Roraima para estudos sobre migrações sexuais e tráfico de pessoas na fronteira Brasil e Venezuela, em 2019, e percebi que Goiânia teve muita interiorização de venezuelanos, principalmente de mulheres grávidas e com crianças que ficavam nas ruas do Centro pedindo dinheiro e comida, expostas à violência.”

Projeto de Beth Fernandes no Amor Sem Dor, Goiânia (GO)

Beth encaminhou várias dessas mães ao projeto “Amor sem Dor”, promovido pelo Ministério Público do Trabalho de Goiânia e o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), que oferecia aulas de corte e costura.

“Cinco das mães que eu encaminhei concluíram o curso e hoje coordenam a miniconfecção que eu montei, comprando duas máquinas e tecidos com recursos do Fundo Baobá. Elas orientam outras sete mães na confecção de camisetas, batas, lenços e máscaras de proteção contra o coronavírus”, explica Beth.

Projeto de Beth Fernandes no Amor Sem Dor, Goiânia (GO)

As participantes, 12 no total, geram renda com a venda das peças, no Centro de Goiânia. A ideia é que a miniconfecção, que funciona no galpão de outra ONG parceira – a Amor sem Fronteiras, criada por um venezuelano -, se torne o primeiro empreendimento delas.

“Se o projeto terminar, elas vão conseguir continuar sozinhas. Mas eu desejo agora é ampliar a confecção, engajar as mulheres que perderam os maridos na pandemia, ensinar a elas corte e costura, bordado, reinseri-las na sociedade”.

Projeto de Beth Fernandes no Amor Sem Dor, Goiânia (GO)

Em Suzano, São Paulo, Sílvia Aparecida do Carmo Rangel, 49, também atuou pela vertente do empoderamento, como ferramenta para o combate da violência contra a mulher.

“Minha participação foi motivada pelo desejo de ampliar ações desenvolvidas com outras usuárias dos projetos da AAMAE, instituição na qual atuo como gestora e presidente. Diante do desafio de minimizar a violência, na busca por um diagnóstico e acompanhamento mais próximo das mulheres que participam do programa Viva Leite, ou que fazem parte da comunidade e com crianças na primeira infância. Vivenciamos um aumento considerável em relação a violência doméstica, inclusive tivemos vários casos de feminicídio próximos a instituição”, afirma.

Bacharel em Direito, pós-graduada em Desenvolvimento Social e mestre em Políticas Públicas, Silvia elaborou o projeto Laços de Família – Baobá, com atividades realizadas no bairro Miguel Badra.

Projeto de Sílvia Aparecida do Carmo Rangel no AAMAE, Suzano (SP)

O cadastramento para levantamento dos dados das famílias deu-se de forma presencial, com horários previamente agendados e seguindo rigorosamente protocolos de saúde para conter o avanço do novo coronavírus. A partir daí, os contatos gerais para dúvidas e acompanhamentos ocorreram por telefone. Silvia promoveu diversas lives coletivas para discussões das temáticas violência doméstica, acidentes domésticos com crianças, educação dos filhos, amamentação e sobrecarga de responsabilidades para a mulher.

“Tivemos muitas discussões no grupo, pertinentes aos temas abordados. Mediar é sempre um desafio, pois cada qual tem sua bagagem, suas vivências, e são únicas, o que me faz a cada dia desenvolver o senso de altruísmo, o respeito a história de cada uma, e a empatia”.

O Laços de Família proporcionou também atendimento psicossocial em situações de violência, presencialmente e seguindo protocolo de saúde, além de entregas agendadas de cestas de Natal, cestas básicas, cestas de higiene e limpeza; brinquedos e máscaras de proteção. Duzentas mães e 170 crianças foram acolhidas.

Projeto de Sílvia Aparecida do Carmo Rangel no AAMAE, Suzano (SP)

“As atividades foram pensadas como forma de aproximação e envolvimento com as famílias, focando na mulher como protagonista. O desejo era ampliar a discussão sobre as diversas situações que envolvem a dinâmica familiar, os sonhos, as dificuldades e a capacidade de resolução de conflitos. Acredito que assim promovemos reflexões para trazer o reconhecimento do potencial de transformação e impacto a partir do empoderamento e resgate da dignidade.”