Quando coragem e oportunidade geram mudanças e bem-estar para a sociedade

Por Eliane de Santos

Recém-formada no curso de Serviço Social e Tecnologia em Gestão Pública, Fernanda de Sá Sampaio​, de 32 anos, estreou na profissão com um desafio em tanto.

“A gestora da ONG onde eu trabalho, em Pirituba, São Paulo, me falou sobre o Edital Primeira Infância no Contexto da Covid-19. Ela me apresentou o site do Fundo Baobá, perguntou se eu gostaria de me inscrever e se eu tinha alguma ideia para desenvolver”, recorda.

Com o conteúdo do curso ainda fresco na cabeça, Fernanda lembrou de alguns debates relacionados à concessão de benefícios eventuais, como cestas básicas. E considerando que a fome era uma realidade nas comunidades que assistia rotineiramente, além de um dos focos de atenção do edital, ela não teve dúvidas:

“Após o estabelecimento do isolamento social, as preocupações voltadas para alimentação eram aparentemente as maiores entre as famílias, por isso eu considerei pertinente tratar dessa temática. E havia um agravante: sem ir à escola as crianças perderam ao menos uma refeição saudável e acompanhamento nutricional diário”, conta.

Projeto de Fernanda de Sá Sampaio, Pirituba (SP)

Coube à Fernanda minimizar esses impactos e para isso ela mobilizou outros colegas profissionais na elaboração de reuniões socioeducativas presenciais, em espaços cedidos pelo projeto Amigos das Crianças, por igrejas e salões locais. Mais encontros ocorreram de forma remota para apresentar aos responsáveis informações sobre higienização, armazenamento e reaproveitamento de alimentos.

Encerrada a etapa de reuniões, cada participante recebeu em casa kit’s com frutas, legumes, uma apostila e pote de armazenamento. Aliás, um dos desafios enfrentados foi obter transporte para a logística de compra e a entrega desses alimentos, pois muitas comunidades ficavam distantes cerca de quatro quilômetros de Canta Galo, bairro onde Fernanda mora e trabalha. Sem um carro próprio, ela recorreu aos colegas da ONG e motoristas de aplicativo.

Projeto de Fernanda de Sá Sampaio, Pirituba (SP)

O projeto beneficiou 211 famílias das comunidades do Canta Galo, Vila Mirante, Jardim Paquetá e Vila Zatt, no distrito de Pirituba.

“Eu fiquei muito satisfeita. Uma das mães nos procurou ao final e agradeceu muito, alegando que antes do projeto achava que tinha que ter muito dinheiro para dar uma alimentação saudável ao filho. Desejo participar de outros editais, porém com atividades que incentivem o cultivo de hortas”, planeja a jovem.

O mesmo edital valorizou diferentes propostas focadas na redução de desigualdades sociais, violência urbana e/ou intrafamiliar, desemprego, fome e outras adversidades agravadas pela pandemia.  Contextos que a pedagoga Samily Maria Moreira da Silva e Silva, 29, de Belém do Pará, conhece bem.

“Quando me tornei gestante comecei a pesquisar novas formas de maternar, mais parecidas com formas ancestrais de cuidados voltados para a natureza. Percebi que dentro de um sistema capitalista a maternidade é romantizada comercialmente mas na prática, principalmente para as mulheres negras, acontecem muitas violências, inclusive psicológicas. Sou mãe de Violeta, de 7 anos, e ao longo de nossas vidas sofremos violência de várias formas”, desabafa.

O projeto abraçou 10 famílias do distrito de Icoaraci e do bairro de Terra Firme, distantes da capital.  Samily Maria trabalhou pelo fortalecimento de uma rede de mães negras, com filhos de 0 a 6 anos, ressaltando a importância dessas mulheres para a proteção das crias e para a própria comunidade; fornecendo palavras de apoio e resgatando saberes ancestrais como a cultura das puxadeiras, ou parteiras, e do uso das garrafadas (remédios feitos com ervas naturais) para a recuperação do útero e auxílio à amamentação. Culturas que já foram mais fortes na região.

A primeira atividade aconteceu de forma remota, com uso de um aplicativo de mensagens para entrevistar mulheres e homens que integram a rede de apoio das mães. Depois as crianças foram convocadas para ajudar na produção de podcast’s com os temas: “Cuidados com primeira infância no contexto da Covid-19”, “A importância da amamentação” e “A importância da rede de apoio”, também compartilhados por aplicativo de mensagens.

“Além da minha filha, a produtora do projeto também é mãe de um menino, chamado Francisco, de 5 anos, e a nossa rede de comunicação e produção de mulheres negras também tem muitas mães trabalhamos em rede com várias mulheres da cidade que têm crianças. Então pensamos em criar este conteúdo de crianças negras para outras crianças negras, sobre amamentação e cuidados na pandemia”.

Dez famílias foram contempladas e no final do projeto receberam kit de cuidado e beleza mais cesta com hortaliças.

“A gente está terminando com sede de ter mais condição de firmar esse trabalho. É uma demanda grande e sempre bate uma angústia, porque esbarramos na negligência com a região Norte, com as mães pretas periféricas, na falta de acesso a vários serviços. Seguimos aos trancos e barrancos, mas fica essa sede de conseguir fazer trabalho um continuo, de envolvendo mais pessoas”.

Seja por motivação pessoal ou profissional colaborar para o bem-estar e a qualidade de vida de populações vulneráveis gera empatia, gratidão e mudanças que estão longe de ser superficiais.

Em São Paulo, a terapeuta ocupacional Lara de Paula Eduardo, 41, desejava fazer parte desta engrenagem e não hesitou em aderir ao edital.

“Tenho muito interesse em realizar trabalhos sociais que busquem transformação cultural e justiça social. Participar do Edital Primeira Infância foi uma forma de subsidiar parte do custo, e me possibilitou a parceria da psicóloga Adriana Haaz de Moura Gaunsze”, afirma.

A dupla tinha como público-alvo crianças de 1 a 3 anos, atendidas por uma creche, em Itatuba, Embu das Artes, São Paulo; seus familiares e cuidadores, incluindo homens. No entanto, chegou até eles indiretamente, incrementando a formação de 11 educadoras que já estavam acompanhando aproximadamente 100 famílias de alunos à distância.

“Sabemos que é um grande desafio auxiliar as crianças que mais precisam de apoio, estando os adultos também em grande tensão. Por isso desenvolvemos para as educadoras alguns encontros virtuais de acolhimento, reflexão e aprofundamento sobre o desenvolvimento infantil, educação, questões relativas a pandemia; importância das relações para a estruturação psíquica e o brincar”, descreve Lara.

“Aprendemos que há muito a ser feito pela educação infantil no Brasil, principalmente nas creches e berçários que trabalham com os bebês de 1 a 3 anos, em que a presença, disponibilidade e relação do adulto é fundamental para a constituição psíquica e desenvolvimento infantil.”