Por Vitória Macedo e Weslley Galzo, do Perifaconnection
Em um cenário de crise aguda nas áreas social, sanitária e econômica, a educação continua sendo alvo de vilipêndio, como mostra a proposta enviada pelo governo federal ao Congresso Nacional – que pede a retirada de 1,4 bilhão de reais do orçamento do Ministério da Educação em 2021 para o enfrentamento da pandemia do coronavírus.
Ao mesmo tempo, jovens de baixa renda, em sua maioria negros, sofrem com a falta de equipamento adequado e apoio no desenvolvimento dos estudos em meio à pandemia de Covid-19. Tais problemas dificultam ainda mais a inserção da juventude negra e periférica no ambiente acadêmico.
É nesse contexto de descalabro que surge uma iniciativa corajosa e potente, o programa “Já É: Educação e Equidade Racial”. Seu intuito é oferecer bolsas em cursos preparatórios para o vestibular, disponibilizar notebooks, apoio psicopedagógico e benefícios de permanência – como auxílio transporte e alimentação – para que jovens afetados pela erosão das bases da educação não sejam desamparados na busca pelos seus sonhos.
A iniciativa do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Citi, Demarest Advogados e Amadi Technology, ocorre no ano seguinte ao de maior abstenção na história do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem). As taxas variaram entre 55% e 72% de não comparecimento.
Dentre os vários propósitos, o programa foi pensado como estratégia de enfrentamento da realidade apresentada pelos números. Nesse contexto, o Já É surge para que 100 jovens negros selecionados, das periferias da capital paulista e da Região Metropolitana de São Paulo, não desistam dos seus sonhos – por conta da impossibilidade de se preparar adequadamente.
Após a seleção das e dos estudantes — que se mostraram potenciais lideranças, ativistas ou empreendedores a serem lançados em suas carreiras profissionais por algumas das instituições mais prestigiadas do país –, o Fundo Baobá convidou o Perifaconnection para contar as histórias dessa molecada.
Uma equipe formada por jovens jornalistas pretxs contando a trajetória de uma juventude que compartilha dos mesmos anseios em relação ao futuro.
O Perifaconnection, então, uniu as potências do jornalismo brasileiro presentes nas quebradas de três regiões do país (Sul, Sudeste e Nordeste), na missão de rememorar o passado da garotada do Já É e prestar escuta atenta aos seus desejos em relação ao futuro.
Os 14 profissionais de comunicação envolvidos nessa empreitada, em sua maioria mulheres, experimentaram a potencialidade dos seus respectivos trabalhos e gozaram da possibilidade de explorar a subjetividade da sua negritude em grupo.
O bonde está espalhado em Guaianazes, São Miguel Paulista, Cidade Tiradentes e Grajaú, em São Paulo, no Pantanal em Duque de Caxias, também no Engenho Novo, Santa Tereza e Jacarezinho no Rio de Janeiro até a Casa Amarela, em Recife. Além de um olhar atento à Região Metropolitana com uma representantes no Planalto, em São Bernardo do Campo, e em Franco da Rocha.
Entre as e os jovens selecionados, a maioria é mais nova do que o grupo de repórteres, e isso fez com que uma relação mútua de espelho fosse criada. Tanto entrevistades se inspiravam em quem estava ali para ouvir suas histórias, quanto entrevistadores relembravam a fase que viveram para entrar na universidade.
Ainda que muitos tenham saído agora do ensino médio e estejam vivenciando o início da vida adulta, é perceptível que essa juventude tem um vasto conhecimento de mundo.
Esses jovens que participam do Programa Já É são crias das periferias e sabem o significado de entrarem no ensino superior. Seja pelo desejo de mudar a realidade em que foram criados, transformar e inspirar a vida de outros semelhantes, ou por fazer a diferença na família.
O apoio familiar é algo que se destaca em grande parte das conversas que compuseram a obra. Quando reconhecemos a luta ancestral e todo o caminho percorrido pelos que vieram antes de nós, a valorização pelo que acontece hoje é praticamente instantânea, além da garra para conquistar um futuro melhor, e isso esses jovens têm de sobra. Muitos vieram de famílias cujos pais não tiveram acesso ao sistema de ensino, talvez por isso se desdobram tanto ao apoiarem os filhos na conquista de um sonho que é coletivo.
Nesta seleção, temos jovens negros diversos, cada um com sua subjetividade. Diante de narrativas que sempre colocam o negro no lugar do “outro”, retirando qualquer resquício de sua humanidade, as e os 100 jovens selecionados, dentre eles mães, transexuais, cisgêneros, héteros, homossexuais, são conscientes de suas particularidades e capacidades que definem o seu lugar no mundo.
Alguns têm o sonho de empreender, enquanto outros querem ser artistas, ou funcionários públicos. Entretanto, todos têm o mesmo objetivo: entrar em uma universidade.
Para colocar no papel tantas histórias potentes e complexas em sua subjetividade foi necessário um corpo de repórteres que se envolveu emocionalmente com cada fala, até mesmo por já terem vivido na pele alguns dos relatos.
Contar o passado e a visão de futuro desses jovens foi um trabalho de fé baseado em dedicação, por acreditarmos nas mudanças concretas que serão promovidas pelo projeto.
Em 2 meses de trabalho, foram realizadas 25 reportagens, 100 perfis, mais de 15 reuniões de pauta e acompanhamento, cerca de 1.500 minutos de captação de áudio, mais de 150 páginas de texto e uma síntese grandiosa em 7 minutos de vídeo. Esse é o fruto do trabalho de uma juventude que acreditou no chamado para fazer parte de uma iniciativa emancipadora de mentes e construtora de realidades que gozam do bem viver.
Por fim, com a bolsa na mão, os 100 jovens negros terão acesso a conteúdos preparatórios para o vestibular e vão assumir compromissos com a entidade e os seus próprios futuros. Desse modo, o Programa Já É vai monitorar alguns indicadores importantes durante esse percurso.
Dentre eles, a frequência dos alunos nas atividades que integram e iniciativa, a evolução de nota nas provas simuladas aplicadas pelo cursinho pré-vestibular, os alunos que ingressam na universidade via Sisu ou Prouni, também aqueles que tiveram pontuação igual ou maior a 450 no Enem, bem como a evasão durante os 12 meses do projeto.
Um programa como esse nos faz pensar: o que queremos para o futuro dos nossos jovens? Diante da criticidade da situação que o país enfrenta, em que a educação não é valorizada e o genocídio dos jovens negros é vigente, o Programa Já É vem com o objetivo de subverter realidades e garantir possibilidades de mudanças concretas. É a partir de ações coletivas, em comunidade, que faremos um mundo melhor.
Nas histórias de cada um desses jovens, conscientes do mundo onde vivem e cheios de gás para ir atrás dos sonhos, vemos como as relações humanas são interdependentes e que sempre precisaremos dos nossos para seguir.