Educação Transformadora – A importância da educação na trajetória de mulheres negras

Conheça algumas trajetórias e iniciativas apoiadas pelo Programa Marielle Franco de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras, do Fundo Baobá

Por Jamile Novaes*

 

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) aponta  que a taxa de frequência escolar entre crianças negras de 6 a 10 anos no ensino fundamental é de 95,8% no Brasil. No entanto, esse número cai gradativamente ao longo da trajetória de escolarizacão, chegando a 18,3% entre jovens negros e negras de 18 a 24 anos que frequentam o ensino superior, contra 36,1% de pessoas brancas com a mesma idade. Quando o assunto é analfabetismo, a taxa de pessoas negras nessa condição atinge 8,9%, quase o triplo dos 3,6% de pessoas brancas não alfabetizadas. Os números são do estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, divulgado em 2019, antes da pandemia.  

Historicamente, os espaços de formação acadêmica podem se apresentar como ambientes hostis para pessoas negras, sobretudo para mulheres negras. Ser uma estudante negra no Brasil implica passar por situações de rejeição, humilhação, abusos, solidão e uma série de apagamentos que ocorrem desde os primeiros anos escolares. O currículo escolar da educação básica costuma apresentar a mulher negra de forma subalternizada, ignorando suas contribuições para a história, ciência, política e cultura do país. Mesmo com a implantação da Lei 10.639/03, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira, ainda existem muitos desafios e um longo caminho a percorrer para a sua aplicação efetiva.

Este cenário afeta de forma significativa a trajetória escolar, prejudica o desempenho nos estudos e diminui significativamente as possibilidades de ascensão acadêmica dessas meninas e mulheres. Não por acaso, o Censo da Educação Superior de 2016 apontou que o total de professoras doutoras negras em cursos de pós-graduação no país não chegava a 3% do número total de docentes. 

No entanto, mesmo ainda representando uma minoria dentro do espaço acadêmico, é possível notar o potencial transformador e os efeitos multiplicadores das trajetórias de educação de mulheres negras. Para enfrentar a solidão de ser negra e acadêmica, ampliar as suas vozes e legitimar a sua produção de conhecimento, muitas têm construído estratégias de aquilombamento dentro das universidades e protagonizado ações que alcançam a comunidade negra como um todo. São redes de apoio criadas para permanecer, resistir, ressignificar saberes e criar novas narrativas e possibilidades de transformação através da educação.  Algumas dessas iniciativas e projetos foram contemplados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

Vamos conhecer um pouco sobre essas mulheres, suas trajetórias de educação, perspectivas e como elas têm atuado para promover uma educação antirracista  e acessível para seus pares.

 

Sulamita Rosa, da Rede MulherAções

Sulamita Rosa da Silva é graduada em Pedagogia, mestra em Educação pela Universidade Federal do Acre (UFAC) e recentemente ingressou no Doutorado em Educação da Universidade de São Paulo (USP). Ela lembra que durante seu ensino médio, cursado em uma escola particular, era a única estudante retinta da sua turma. No curso de pedagogia, Sulamita conheceu a Lei 10.639/03 e decidiu dedicar-se às pesquisas que interseccionam raça e educação. “Nossa! Aquilo ali me brilhou os olhos de uma forma incrível. Queria pesquisar sobre a minha negritude, sobre as minhas raízes, sobre a educação voltada para essa temática. Eu fiz meu TCC sobre valorização da cultura negra no currículo de uma escola de Cruzeiro do Sul e a partir desse TCC eu pude perceber que os professores ainda não tinham essa compreensão”, explica.

Durante o mestrado em educação, Sulamita percebeu que, apesar de não estar mais sozinha enquanto estudante negra, ainda era notória a falta de professoras pretas no espaço da universidade. Intrigada com essa realidade, produziu sua pesquisa de dissertação de mestrado sobre as trajetórias de professoras negras dos cursos de formação de professores da UFAC. Ao realizar um mapeamento, identificou apenas 11 professoras negras.

Junto às mulheres pretas que encontrou durante a sua pesquisa, Sulamita criou a Rede MulherAcões, coletivo que tem por objetivo ampliar a ocupação de mulheres negras, indígenas, e afro-indígenas nos cursos de pós-graduação, mestrado e doutorado. “O desenvolvimento da sociedade brasileira foi através do conhecimento produzido por mulheres negras. Só que esse conhecimento foi invisibilizado em decorrência do racismo estrutural. E a gente visa justamente o empoderamento através da coletividade e através da nossa presença nesses espaços que outrora nos foram negados”, explica Sulamita.

Com o apoio do Programa Marielle Franco de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras, a Rede MulherAções desenvolveu uma série de atividades formativas que possibilitou o ingresso de Sulamita e mais cinco mulheres negras e indígenas em cursos de mestrado e doutorado. Rani Shanenawa, Matsiani Shanenawa, Edilene Pakakuru (indígenas de etnia Shanenawa) e Beatriz Domingos da Silva foram aprovadas em cursos de mestrado. Já Sulamita Rosa e Cláudia Marques de Oliveira, fundadoras do MulherAções, ingressaram no Doutorado em Educação da USP.

 

Sibele Gabriela dos Santos

Sibele Gabriela dos Santos é Assistente Social, mestranda em Planejamento e Análise de Políticas Públicas e recém aprovada no Mestrado em Educação pela USP. Durante a graduação em Serviço Social, Sibele identificou que, apesar do curso ser composto majoritariamente por mulheres, havia poucas estudantes negras como ela e nenhuma professora. Embora a população negra do Brasil represente uma boa parcela das pessoas atendidas por políticas públicas de assistência social, Sibele conta que não eram ofertadas disciplinas que tratassem especificamente de questões étnico-raciais. 

Para preencher as lacunas em sua formação, contribuir com a sua comunidade e garantir a permanência no mestrado, Sibele se inscreveu no Programa. O projeto inicial previa ações com estudantes de escolas públicas e privadas de Igarapava (SP) para dialogar e sensibilizar sobre os desafios da implantação e implementação da Lei 10.639/03. Devido às normas de segurança sanitária estabelecidas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em função da pandemia de Covid-19, toda a mobilização acabou acontecendo por meio das redes sociais, rádios comunitárias e plataformas de vídeo. 

Sibele aponta que um dos maiores desafios para a aplicação da lei de ensino da história e cultura afro-brasileira, está na falta de representatividade de pessoas negras nos espaços de construção pedagógica e de tomadas de decisão política. “Infelizmente a maioria dos professores, coordenadores e diretores são pessoas brancas. O perfil dos funcionários que ocupam as instâncias de decisão não reflete a diversidade social”, explica.

Para enfrentar este desafio, Sibele acredita que as políticas de educação devem ser pensadas em conjunto com outras políticas sociais, como saúde e assistência social. De forma que, busque uma abordagem interseccional que dialogue com intelectuais, movimentos sociais e territórios. “A educação não é neutra e todes que estão inserides nas instituições formais e informais devem ter o comprometimento ético e político da desconstrução do mito da democracia racial”. Para ela esse movimento só ocorrerá através do diálogo com a comunidade e com o território. “Se estamos falando de uma escola antirracista, estamos falando de uma escola democrática que  acolhe, respeita, que luta por justiça social e que valoriza a construção de seus projetos e planos de forma coletiva”, completa.

Apesar das limitações impostas pela pandemia, Sibele reconhece a importância do Programa Marielle Franco para a sua formação pessoal, profissional e política. “Entrei no Programa com o conhecimento raso sobre racismo estrutural, feminismo negro, empoderamento  e representatividade. Hoje sou uma mulher negra empoderada, protagonista e com um vasto conhecimento sobre desigualdade social”, conclui.

 

 

Lorena Amorim Borges

Lorena Amorim Borges é bacharela em Direito e pós-graduanda em Direito Penal. Em sua atuação, pauta o enfrentamento às desigualdades de raça, classe e gênero. Ingressou no ensino superior aos 30 anos e aponta a falta de tempo para os estudos e de recursos financeiros como os principais desafios em sua trajetória acadêmica. “Embora a gente tenha vivido um momento em que a graduação foi mais acessível para os nossos, ainda não é tangível para muitos ocupar a academia porque a gente precisa sobreviver e por vezes é muito difícil estar no espaço acadêmico enquanto tá com risco de corte de luz, por exemplo”, conta Lorena.

Ainda durante a graduação, Lorena recorreu ao Programa Marielle Franco com o objetivo de potencializar a sua formação acadêmica, aprimorar os seus conhecimentos e obter aprovação junto à Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). Seu projeto previa um intercâmbio para aprofundar os seus estudos em língua estrangeira, o que não pôde ser realizado por conta da pandemia de Covid-19. Ainda assim, Lorena redirecionou o recurso obtido para a realização de um curso de inglês. Com o suporte e recursos destinados pelo Programa, Lorena concluiu a graduação, iniciou sua pós-graduação e agora se prepara para o próximo exame da OAB. Reconhecendo as dificuldades enfrentadas nesse processo, ela criou um grupo para compartilhar materiais de estudo, técnicas e conhecimentos sobre o edital com outros estudantes negros que também estão se preparando para o exame.

Lorena acredita no potencial de mulheres negras para transformar o sistema judicial, tornando-o menos desigual para a comunidade negra no geral. “A gente tem muito a contribuir a começar pela mudança do olhar, hoje a maior parte da população carcerária é preta e não teve acesso a uma defesa eficiente. Descriminalizar o ser preto é urgente e só com a ocupação do judiciário por profissionais com práticas antidiscriminatórias poderemos transformar essa realidade e transformar é coisa de mulher preta”, afirma. Até receber a aprovação da OAB e poder exercer a advocacia, ela conta que seguirá atuando em rede “para tornar a justiça acessível à população periférica e aos povos tradicionais de matriz africana”. 

 

Giovana Xavier

Giovana Xavier da Conceição Nascimento é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), possui formação em história pela UFRJ, mestrado, doutorado e pós-doutorado pela Universidade Federal Fluminense (UFF), Unicamp e New York University. Ela conta que é oriunda de uma família de base matriarcal, formada por mulheres da classe trabalhadora que, desde cedo, impulsionaram o seu processo de escolarização. “Ao longo de toda a minha formação escolar eu fui amparada por essas mulheres do ponto de vista emocional, financeiro, protetivo e de todas as ordens. A ideia da família negra como um espaço de educação e como prática da liberdade pra mim é muito forte”, afirma.

Giovana Xavier

Assim como a maior parte dos estudantes negros que frequentam a universidade, Giovana precisou desenvolver estratégias para se manter naquele espaço e obter êxito acadêmico. Ela conta que um fator muito importante durante esse processo foi a sua participação em grupo de pesquisa coordenado por Flávio Gomes, um professor negro que atuava a serviço da positivação, transformação e desenvolvimento da comunidade negra. “Ter me formado como uma historiadora acompanhada por esse grande acadêmico, para mim foi fundamental porque trouxe junto uma possibilidade de reafirmar o nosso compromisso com a comunidade negra também do lado de fora da universidade”, explica.

De início, o projeto apresentado por Giovana ao Programa Marielle Franco previa a escrita e lançamento do livro “Ciência de Mulheres Negras”. No entanto, com a possibilidade de adaptação, algumas mudanças estratégicas foram realizadas e o livro se transformou em diversos artigos publicados em periódicos científicos avaliados pelo Qualis Capes como “A” (indicador de qualidade mais elevado do sistema). “Publicar artigos em revistas ‘A’ é uma condição para estar atuando na pós-graduação. Então, estrategicamente, para mulheres negras professoras universitárias, tem sido mais importante publicar artigos em periódicos científicos, do que livros”, ela explica.

Giovana acredita nos feminismos negros e indígenas como um importante ponto de partida para repensar as práticas de produção do conhecimento, valorização dos saberes ancestrais e legitimação de corpos e identidades subalternizadas em espaços acadêmicos. “Quando a gente chega na universidade, a gente também se alimenta do poder de autorizar as nossas próprias histórias e ferramentas de construção de um Brasil de fato justo, baseado em valores como a paz, que é central no pensamento feminista negro e indígena”, conclui.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Pandemia acentua desigualdades e coloca em risco direitos das crianças e adolescentes conquistados ao longo de muitos anos

Mayara Silva, Ana Lídia Rodrigues e Marcia Monte lutam pela seguridade dos direitos das crianças e adolescentes e foram algumas das lideranças apoiadas pelo Fundo Baobá

Por Giovane Alcântara*

 

A pandemia acentuou algumas desigualdades e colocou em cheque anos de trabalho voltados para as crianças e os adolescentes. Um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro, indicou que o despreparo do Brasil para o enfrentamento da covid-19 agravou as desigualdades sociais. O estudo foi desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Segundo os indicadores, os maiores atingidos são as populações socialmente mais vulneráveis, sobretudo nas áreas da saúde, da educação, emprego, renda, moradia e proteção social. 

Criado há 31 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) surge como forma de aprimoramento das políticas voltadas para esse público. O Estatuto garante acessos e direitos, como por exemplo: o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, entre outros. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2020), no ano de 2019 o Brasil possuía 4,6% das crianças e adolescentes na condição do trabalho e exploração infantil. Isso se dá por uma série de fatores, como por exemplo, a evasão escolar, a falta de renda e de empregos formais. Nesse último caso, vale ressaltar que o Brasil tem cerca de 14 milhões de pessoas desempregadas. O número vem  do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA – 2021), e representa um percentual de 13,7% da população economicamente ativa no país. Este contexto de desigualdades acirradas pela pandemia limitam ainda mais a viabilidade do ECA. 

Mayara Silva, Ana Lídia Rodrigues e Marcia Monte são lideranças negras que atuam na luta pela seguridade de direitos das crianças e dos adolescentes, e foram contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

 

Ana Lídia
Marcia Monte
Mayara Souza

 

A advogada e ativista dos direitos das crianças e adolescentes, Mayara Souza, acredita que há duas maneiras do ECA ser implementado e viabilizado. Para ela, o primeiro passo é a racialização do Estatuto. A advogada aponta que anteriormente ao ECA, existia o Código de Menores. Posteriormente a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no artigo 227, que todas as crianças são sujeitos de direitos. “Parece que todas as crianças partem de um mesmo lugar de oportunidade e igualdade. Obviamente que [no ECA] há uma tentativa muito tímida de reconhecer que algumas crianças estão em situação de vulnerabilidade, mas não alcança todas as crianças de maneira igual”, reflete.

De acordo com Mayara, o segundo passo importante para efetivação do ECA seria a inserção das crianças e dos adolescentes no processo de viabilização e discussão de políticas públicas. “A gente sai de uma doutrina indiferente, onde as crianças eram tratadas de maneira indiferente dos adultos, avança um pouco em relação a isso e chega na doutrina da proteção integral, que a gente está desde 1988. Precisamos avançar para uma nova fase de proteção de crianças e adolescentes, e este avanço tem que incluir as questões das crianças com deficiência, das crianças indígenas, das crianças negras”, aponta. Para ela, precisamos avançar para uma fase de proteção, que só será possível quando as vozes destas crianças forem trazidas para essa discussão. “Então, outro ponto que eu acho importante é ouvir as crianças em primeira pessoa, não importa o tamanho dessa criança”, pontua.

A evasão escolar também foi uma das consequências da pandemia. No primeiro ano de crise sanitária, o número de evasão escolar no Brasil foi de 12%: cerca de 172 mil estudantes entre 6 e 17 anos abandonaram os estudos. Os dados são do relatório intitulado “Os custos educativos da crise sanitária na América Latina e no Caribe”, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), concluído em novembro de 2020. O fato das escolas terem sido paralisadas como parte das medidas de segurança para o enfrentamento da covid-19 mostrou ainda mais as desigualdades impostas.

A falta de aparelhos tecnológicos para aulas virtuais, a falta de acompanhamento e preparo para o ensino remoto, e o aumento dos casos de abusos e explorações sexuais, são fenômenos que se interligam com o aumento da evasão escolar durante a pandemia. “Os dados já mostram que dos abusos sexuais contra crianças, mais de 70% acontecem no ambiente doméstico. As principais portas de entrada de denúncia são a escola. Porque ali a criança estabelece um vínculo de confiança ou então o próprio profissional da educação consegue identificar a situação” reflete Ana Lidia Rodrigues, liderança que trabalha com enfrentamento à violência sexual. “E aí, a escola estava fechada, a saúde atolada e a perspectiva de segurança coletiva  era o ‘fica em casa’, mas para essas crianças, a casa nem sempre é um espaço de segurança”, complementa.

Ana Lídia ainda reitera que o processo de não educação em sexualidade integral faz com que as vítimas não identifiquem as violências. “No caso do abuso doméstico, muitas vezes, ele acontece a partir de relações ditas afetivas. Do carinho, da brincadeira, da ludicidade e a criança, por falta de conhecimento, não consegue identificar que aquilo ali se trata de uma situação abusiva”, pontua. A liderança questiona o fato de não ter havido nenhuma campanha em massa voltada para crianças e adolescentes dizendo que elas poderiam procurar alguém e pedir ajuda. “Paralelo a isso, tem a dimensão da exploração sexual, onde um dos principais fatores da exploração sexual são as condições de miséria. E aí você teve um empobrecimento da população muito grande e a gente sabe que, em situações extremas de empobrecimento, quem mais paga a conta são as crianças e as mulheres, né?”, complementa. 

A professora Márcia Monte considera que esse cenário todo afetou diretamente a educação das crianças mais pobres, majoritariamente negras. “A gente vive num país muito desigual. Enquanto algumas [crianças] tinham todos os equipamentos, outras sequer tinham condições de assistir às aulas e de pegar o material com os professores. Isso aí a gente vai sentir nos próximos anos, né? ”

 

Impulsionamento

Mayara Silva, Ana Lídia Rodrigues e Marcia Monte encontraram, no apoio do Fundo Baobá, suporte para seguir com suas trajetórias de atuação. As três lideranças estudam temas voltados para a infância, adolescência, sistema socioeducativo e educacional. Para elas, a relação entre o gênero, a classe e a raça, são fatores primordiais de discussão e ampliação do debate com a sociedade civil. 

Apesar das trajetórias de luta, o autorreconhecimento enquanto lideranças só veio após o investimento do Fundo. Segundo Ana Lídia, o Programa foi muito importante para ela se reconhecer enquanto liderança social. “Sempre me reconheci como parte, compondo, mas consegui entender que o meu papel também é um papel de movimentar processos, de chamar e estimular pessoas. Isso foi muito importante”. 

No mesmo sentido de Ana Lídia, Márcia Monte considera que o apoio do Fundo foi fundamental para ela conseguir enxergar os efeitos do racismo em si e na sua construção enquanto liderança. “O Fundo teve uma coisa muito legal que foram as formações, a gente ainda teve coaching. Foi fantástico! Você consegue identificar através da análise do racismo (que até então eu não tinha feito) o que ele faz com você. Então eu percebi o potencial que eu tinha”. Márcia conta que esse processo foi fundamental para sua carreira.  

Apesar de desenvolver ações constantes e de estar inserida desde 2016 no movimento de mulheres e no movimento negro, Mayara também só conseguiu se ver enquanto liderança depois do Programa. “O Fundo Baobá impactou a minha vida para falar: ‘Você é uma liderança sim, acredita nisso! O que você faz é muito importante, inspira muitas pessoas e as pessoas se importam com isso’. Durante o processo eu tive muitas dúvidas, inclusive, hoje eu ainda tenho muitas dúvidas se eu sou uma liderança, mas acho que essa contribuição foi muito significativa”.

 

Dificuldades em desenvolver ações durante a pandemia

A pandemia modificou muitos os planos dessas três mulheres. A princípio, Ana Lídia modificou o projeto porque a pandemia mexeu com muito com sua subjetividade e saúde mental, já que ela lida diretamente com vítimas de violências. Diante da possibilidade da inserção de autocuidado no Plano de Desenvolvimento Individual (PDI) do Programa Marielle Franco, ela modificou estruturalmente o seu projeto. Durante esse processo, ela também identificou, através de uma consulta de diagnóstico, ser portadora do Transtorno de Espectro Autista (TEA). Isso proporcionou a inserção da abordagem sobre crianças e adolescentes com deficiências e situações de violação de direitos. A pesquisa que abordaria práticas educacionais para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes e que seria desenvolvida durante esse processo, teve que ser modificada para uma escrevivência. “Eu percebi que eu não sou uma vítima, eu não sou sobrevivente, eu sou supravivente [termo alcunhado ao pesquisador Luiz Rufino]. Eu passei por um processo, eu saí melhorada dele. Eu tenho uma história pra contar, tenho criticas a fazer, e é desse lugar que esse corpo ocupa o mundo e quer falar”.

Depois da alteração central nos seus objetivos, Ana Lídia vem conseguindo cumprir suas metas, mas reitera que ainda há processos acontecendo. “Após a alteração do plano individual, as metas foram cumpridas, ficaram mais realistas, mais enxutas e eu consegui cumprir. Os processos estão rolando, eu continuo estudando. Meu texto está em processo de editoração. Depois vai pro processo gráfico, vou procurar uma editora pra ver se consigo publicar. O resto é desdobramento da ação”, comenta sobre o livro de escrevivências que está em processo final de produção.

Para Márcia Monte, que desenvolveu trabalhos ligados às práticas educacionais para o enfrentamento do racismo em instituições de educação básica no estado do Ceará, a pandemia teve um impacto inicial: a impossibilidade de realização de suas oficinas em parceria com a Secretaria de Educação do estado. 

Outros impactos estiveram relacionados ao cuidado e ao investimento em especialização. Márcia fez inglês, MBA (Master in Business Administration,  pós graduação na área de gestão de administração), tentou mestrado e escreveu uma série de artigos sobre a temática. “Isso tem impacto social muito relevante. Tive algumas metas superadas, que é essa história da publicação, da escrita, do meu fortalecimento pessoal, do inglês” comenta a professora. A liderança ainda está escrevendo um livro infantil: “Eu quero ver como é que as crianças enfrentam esse racismo e como eu posso fazer isso de maneira lúdica. Eu tô escrevendo, no meu tempo, sem pressão, mas isso foi uma superação para além e foi uma inspiração do Fundo Baobá”, relata. 

Já Mayara afirma que, no primeiro ano, mudou muito as metas do seu projeto, pois havia a expectativa de fazer o intercâmbio; só no último trimestre que desistiu e decidiu traçar novas metas. “As que foram sendo ajustadas, conseguimos atingir, mas eu fiquei mais feliz com as metas de comunicação. Eu tinha preocupação de alcance, de rede, mas deu tudo certo”, comenta.

Mayara ainda avaliou que o apoio e o investimento do Fundo Baobá tem relação com a realização de sonhos e do fazer acontecer. Eu acho que os fundos, os investimentos, possibilitam a concretização de sonhos, de realização, de alcançar. Além de possibilitar ocupar espaços, desejados e inimagináveis, possibilita a não desistência e, principalmente, a criação de redes”, afirma.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Lideranças negras lutam por representatividade e igualdade de gênero na gestão pública

Apoiadas pelo Fundo Baobá, Monalyza Alves e Clara Marinho lutam para ocupar espaços antes negados às mulheres negras

Por Danielle Souza*

 

Assim como em outros setores da sociedade, as mulheres são sub-representadas na gestão pública. Apesar de serem 52,2% da população brasileira (IBGE) e 52,6% do eleitorado do país, segundo pesquisa realizada pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE) em 2020, as mulheres ocuparam apenas 11,5% das vagas no Senado; 15% na Câmara de Deputados Federais; e 15,5% nas Assembleias Legislativas Estaduais. Se analisado por uma perspectiva interseccional, as mulheres negras têm ainda mais dificuldades em alcançar posições de liderança e poder: embora representem 28% da população do Brasil; elas são apenas 2,36% do Congresso Nacional, ocupando 14 das 594 vagas somadas entre Câmara e Senado. 

Na contramão a esses dados, lideranças negras como a historiadora e chefe de gabinete da Secretaria Especial de Políticas e Promoção da Mulher – SPM da Prefeitura do Rio de Janeiro, Monalyza Alves (RJ), e a administradora e servidora pública atuante na Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial – SEPPIR, Clara Marinho (DF), se destacam na luta pela paridade de gênero e pela representatividade negra na gestão pública. Ambas buscam quebrar barreiras e ocupar espaços historicamente negados às mulheres negras. 

Clara Marinho e Monalyza Alves são algumas das lideranças negras contempladas pela 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

Monalyza Ferreira

 

Clara Maria Guimarães

 

Liderança e luta por direitos

Desde que ingressou na carreira pública, a servidora Clara Marinho atuou no desenvolvimento de políticas sociais, tendo acesso a uma formação sobre as questões raciais no espaço burocrático. Também trabalhou na implementação do Sistema Nacional de Promoção da Igualdade Racial, que buscava fazer articulação entre a União, estados e municípios e depois passou a atuar como Analista de Planejamento e Orçamento. “Sempre tive interesse em políticas públicas e sociais, em particular, por terem um efeito direto na vida e no usufruto de direitos da população. Hoje, com a minha entrada no Programa Marielle Franco, entendo que tratar de orçamento público e tratar da questão racial são dimensões que se entrecruzaram e se fortaleceram de forma significativa na minha trajetória”, enfatiza. 

Clara afirma ter se inscrito no edital em busca de aprimoramento e conhecimento, propondo um projeto individual para o fortalecimento da sua capacidade de intervenção como servidora pública. “À época eu estava me sentindo muito isolada. A SEPPIR tinha perdido seu status de ministério e eu estava na Secretaria de Orçamento, distante da pauta racial e de gênero. Mas, sentia a necessidade de estudar, aprender, e como a proposta do edital trazia atividades formativas, eu prontamente me interessei”, diz. Além disso, entrar em contato com outras mulheres negras, trocar experiências, ampliar conexões e romper a bolha do isolamento burocrático para desenvolver uma articulação antirracista e antissexista no poder público também foram possibilidades traziadas pelo Fundo através do Programa. 

Para a historiadora Monalyza Alves, sua trajetória como liderança começou ainda na infância, dentro da sala de aula. Com o passar do tempo, suas habilidades foram desenvolvidas e ganharam destaque através da sua atuação no serviço público nas áreas de Direitos Humanos, Igualdade Racial e de Gênero. Destaque para sua participação na implementação de políticas públicas, a exemplo da Casa de Direitos, iniciativa que oferece serviços de acesso à justiça e cidadania para a população em situação de vulnerabilidade socioeconômica do Rio de Janeiro. 

O projeto proposto por Monalyza e contemplado pelo edital do Fundo Baobá foi o “De uma para muitas – Transformação, comunicação e formação em Gestão de Políticas Públicas”, a fim de compartilhar informações básicas sobre gestão pública para iniciantes. “A ideia surgiu da prática profissional, onde lidei com diversas pessoas que não tinham informações sobre a máquina pública, apesar de exercerem cargos nesta”, ressalta. 

 

Atuação na pandemia

Dentre as dificuldades enfrentadas no percurso, as consequências trazidas pela pandemia foram as que demandaram maior esforço. Mãe de duas crianças pequenas, Clara teve que articular as atividades do Programa, o trabalho e a rotina no lar. Ela afirma que ter uma rede de apoio fortalecida em casa foi essencial para que tudo fluísse bem. Alguns cursos planejados também não passaram para a modalidade virtual, necessitando de realocação ao longo do trajeto. Além disso, as atividades do AMMA Psique e Negritude, organização não governamental que atua no enfrentamento dos efeitos psicossociais do racismo e sexismo,  também foram de suma importância para o seu desenvolvimento. “A despeito de todas as necessidades, toda a dor que muitas de nós tivemos e ainda temos com a pandemia, as atividades do AMMA propiciaram o encontro, o fortalecimento e a escuta necessária. Sou muito grata por esse tipo de espaço!”, afirma a liderança. 

Por outro lado, para além do período pandêmico, Monalyza destaca como dificuldade a mudança no cenário político provocada pelas eleições de 2020. “A minha meta de público inicial era trabalhar com lideranças que atuavam no âmbito municipal, mas com as eleições, esse público migrou para outras frentes e assim eu tive que readaptar a dinâmica pensada para o desenvolvimento do projeto”, lembra a historiadora. Ela afirma ainda que hoje compreende a possibilidade de ampliar o raio de pessoas atingidas e impactadas por sua iniciativa. 

 

Objetivos alcançados e planos para o futuro

Com o apoio do Fundo Baobá, Monalyza conseguiu alcançar objetivos ainda maiores. Além de concluir a faculdade de História, ela realizou aulas de inglês e adquiriu equipamentos essenciais para aprimorar a sua atuação, como o notebook. “Vi no Fundo Baobá e no Programa Marielle Franco a oportunidade de crescimento individual, alinhada ao compartilhamento de saberes adquiridos na gestão pública”, afirma. 

Dentre os feitos durante o Programa, Monalyza participou de lives e workshops com instituições como: a Ordem dos Advogados do Brasil, o Instituto de Relações Internacionais da PUC-RJ e a Anistia Internacional seccional Natal (RN). Também desenvolveu pesquisa para a elaboração do material didático a ser disponibilizado no projeto; escreveu sobre a temática em seu Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da graduação; além de observar os desdobramentos das eleições municipais e as dinâmicas subsequentes. “Foi possível constatar a ascensão da perspectiva antirracista ao passo do arrefecimento dos setores da promoção da igualdade racial”, diz.

Os planos para o futuro são ainda mais ambiciosos. Monalyza está disposta a continuar atuando no fortalecimento da política pública através do compartilhamento de informações sobre gestão pública com foco na questão racial e de gênero, a partir de marcos históricos e legais. “Quero continuar sendo reconhecida pelo o que faço e alcançar novos espaços na tomada de decisão, sendo referência na área”, ressalta.

Para a historiadora, o sentimento que se sobressai ao longo do processo é a gratidão. “Eu quero agradecer a empatia do Fundo Baobá e parceiros, cuja sensibilidade me manteve viva e com propósito em 2020. Um pouco antes do lockdown pela pandemia de Covid-19, eu fui demitida, e o que me manteve viva, sã e com propósito, foi a garantia de sobrevivência dada pela bolsa do Fundo Baobá. Serei eternamente grata!”, finaliza Monalyza Alves.

Com Clara Marinho não foi diferente. Um dos seus objetivos principais, e que foi alcançado com sucesso através do Programa, foi consolidar sua posição de liderança no poder público federal, estabelecendo-se como uma ponte para o tratamento de demandas das questões raciais e de gênero que estão no contexto da burocracia. Além disso, o apoio do Fundo Baobá também permitiu que ela fizesse atualizações na sua área de atuação com cursos de gerenciamento de projetos, facilitações, desenvolvimento de habilidades interpessoais e de liderança. Além de, melhorar as suas capacidades de comunicação oral e escrita, tornando a linguagem das suas produções mais acessível ao grande público.

Outras metas alcançadas foram a criação de um canal de diálogo e articulação com outras lideranças, organizações e profissionais do setor público. “O Plano de Desenvolvimento Individual me permitiu amadurecer intelectualmente, ora por meio das atividades formativas oferecidas e contratadas, ora por meio do ambiente de reflexão coletivo criado”, afirma.

Dentre os feitos realizados estão: o curso de escrita criativa; gestão profissional das redes sociais; produção de 3 lives; participações em podcasts; publicação de 3 artigos na coluna “Negras que Movem” no Portal Geledés e de um artigo de opinião no Correio Braziliense; e a apresentação de painel sobre Orçamento e Mulheres Negras no Festival Latinidades. Além disso, também houve a participação em debates, a exemplo dos promovidos pela Comissão de Juristas no Combate ao Racismo Estrutural da Câmara de Deputados; e a realização do estudo dirigido para o TOEFL, teste de proficiência em inglês, que foi uma ferramenta facilitadora de acesso ao Fellowship das Nações Unidas para a Década Afrodescendente, ampliando conexões com uma rede internacional de ativistas. Recentemente, Clara também tem conseguido tocar projetos dentro do setor público com temáticas relacionadas à questão racial e de gênero, sendo alocada numa pesquisa relevante para a população negra que avalia a assistência estudantil no ensino superior e profissional.

Os planos para o futuro também voam alto. Clara recebeu convites para realizar apresentações orais junto ao Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) e a Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (FLACSO); aulas agendadas na Unicamp e na Universidade Federal de Alagoas (UFAL); além de textos no portal UOL. Clara também planeja reforçar a sua presença em cursos e seminários voltados para a articulação entre orçamento público e questões de gênero e raça. 

Ao encerrar esse ciclo, Clara Marinho diz sentir-se bastante esperançosa e disposta a fazer muito mais pela sociedade brasileira, por entender que a questão racial é uma questão nacional e que a democracia brasileira depende da cidadania das pessoas negras. “De uma profissional desmotivada e sem saber o que fazer, consegui me afirmar como uma referência no debate sobre orçamento e políticas públicas orientadas para o combate às desigualdades raciais. E isso só foi possível porque houve uma avenida aberta por organizações como o Fundo Baobá e a SEPPIR, que permitiram que o talento pudesse florescer”, conclui a liderança. 

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Comunicação enquanto direito: mulheres negras protagonizam iniciativas de comunicação antirracista e estratégica

Contempladas pelo Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, as comunicadoras baianas Midiã e Danubia desenvolvem projetos transformadores

Por Jamile Novaes*

 

Em 1948, a Declaração Universal dos Direitos Humanos estabeleceu o direito à comunicação como fundamental. Desde então, a Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura (Unesco) vem empenhando esforços para garantir que a comunicação seja efetivamente instituída enquanto um direito. Seja através da emissão ou do acesso às informações, ela é crucial para a elaboração, implementação e acompanhamento de políticas públicas e, mais que isso, para a garantia do acesso aos demais direitos humanos. 

Porém, o que tem se notado ao longo da história do Brasil é uma regulação ineficiente da área. As concessões públicas aos veículos de comunicação permanecem, por décadas, nas mãos dos mesmos conglomerados – pertencentes a algumas poucas famílias ricas e brancas. Uma pesquisa realizada pelo Reuters Institute for the Study of Journalism e divulgada em março de 2021, mostrou que não existem pessoas negras no comando de nenhum grande veículo de comunicação no Brasil, apesar de quase 57% da população brasileira se autodeclarar negra (IBGE, 2019). 

Indo de encontro a essa realidade de invisibilização da população negra na mídia brasileira, várias iniciativas ao longo da história lutaram para mudar o cenário, como a imprensa negra. Mais recentemente o avanço das tecnologias digitais e a popularização do acesso à internet, tem permitido que novos veículos e mídias sigam com a luta histórica deste segmento. Um mapeamento das mídias negras no Brasil foi realizado em 2020 pelo Fórum Permanente pela Igualdade Racial (Fopir). Neste cenário, as mulheres negras se destacam: das 65 mídias mapeadas pelo Fopir, 31% eram compostas exclusivamente por mulheres negras. Quanto à sustentabilidade dessas mídias, o estudo revela que a maioria se mantém através de recursos próprios, publicidade, voluntariado e editais. 

E foi justamente através de um edital que as baianas Danubia Santos e Midiã Noelle tiveram a oportunidade de investir em suas formações profissionais e alavancar projetos relacionados à comunicação. Ambas foram contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

Midiã Noelle
Danúbia Santos

 

Danubia é estudante de graduação em Publicidade e Propaganda e, através do financiamento do Programa, pôde voltar à faculdade; participar de cursos e formações online; fazer aulas de inglês e realizar o evento “Julho das Pretas – Arte e Solidariedade”. Seu projeto previa viagens e atividades presenciais que não puderam ser realizadas por conta da pandemia de Covid-19, então parte dos recursos foi destinada para a distribuição de cestas básicas às mães em situação de vulnerabilidade em comunidades periféricas.

Ela contou sobre como o apoio técnico e financeiro do Programa Marielle Franco foi essencial para que conseguisse se capacitar, potencializar suas atuações e ampliar as vozes negras no campo da comunicação: “Dei várias entrevistas, fui um dos destaques na Revista Claudia, fiz muitas lives e até escrevi um livro [Danubia é co-autora do livro ‘Mães Negras – Maternidade Solo e Dororidade’]. É muito satisfatório ser parte disso e me tornar uma referência positiva para a minha favela, principalmente para outras mulheres pretas”, comemora Danubia.

O reconhecimento obtido por meio das suas ações resultou em um convite para coordenar as redes sociais da Central Única das Favelas (Cufa) e a implantação do núcleo Mulheres da Cufa – projeto que visa a reunião de mulheres que protagonizam temas, agendas e ações para a transformação social. Ela explica que “as Mulheres da Cufa vem com o intuito de potencializar ainda mais essas mulheres que muitas vezes estão invisibilizadas em suas áreas para mostrarem suas forças nacionalmente”. As formações do coletivo acontecem através de lives abertas ao público e formações internas entre as participantes.

Danubia entende a comunicação como uma importante ferramenta de engajamento comunitário no contexto das lutas protagonizadas por mulheres negras. “Quando conseguimos mostrar nossas potencialidades, surgem novas oportunidades e uma mulher preta nunca chega só em lugar nenhum. Toda uma comunidade chega junto conosco, pois nós estamos embaixo de tudo e não tem como chegarmos ao topo sozinhas”, afirma.

A jornalista Midiã Noelle também aposta na comunicação como um meio de ampliar as vozes de mulheres negras em suas diversidades e singularidades. Ela explica que é uma importante maneira não só de manifestar percepções, dores e vivências, mas também “as nossas narrativas e as formas possíveis de transformação e de melhoria dos nossos territórios, das nossas vidas, das nossas famílias, dos nossos projetos de vida, das nossas individualidades”.

Foi também pensando no caráter comunitário e numa perspectiva antirracista para a comunicação que Midiã, apoiada pelo Programa Marielle Franco, criou a Commbne, projeto que propõe discutir a comunicação aliada à inovação, raça e etnia. “A Commbne surge com um objetivo, que é promover esse diálogo, esse intercâmbio entre comunicadores e fomentar esse debate da comunicação enquanto direito humano fundamental na perspectiva de gênero e raça numa lógica diaspórica”, explica.

Desde 2020,  a Commbne já atingiu cerca de 500 pessoas com formações em comunicação antirracista e comunicação estratégica pra organizações sociais e atuou em rede com canais como o Notícia Preta, Ong Crioula, Diáspora Black e Afro Resistance. A partir da Commbne e das redes estabelecidas durante o programa de formações, Midiã passou a integrar a Rede de Líderes da Fundação Lemann, Ong que impulsiona pessoas engajadas em resolver questões sociais em todo o território nacional.

Inicialmente, o projeto enviado por Midiã ao Fundo Baobá incluía uma experiência de intercâmbio fora do Brasil para aperfeiçoar as suas habilidades linguísticas e fazer conexões internacionais, o que não foi possível realizar por conta da pandemia de Covid-19. Mesmo com as limitações impostas, Midiã conseguiu ampliar os seus canais de diálogo e as possibilidades de realizar ações em formato virtual: “Eu consegui me abrir para o mundo, realizar formações com diversas organizações que eu fui dialogando e também ampliando meu diálogo com os comunicadores”, relata. 

Apesar das ameaças à liberdade de expressão, apagamentos históricos e culturais e limitação do acesso de pessoas negras à comunicação, Midiã pontua que houve avanços no campo durante as últimas décadas, graças a mulheres negras como: “Lélia Gonzalez, Luiza Bairros, Sueli Carneiro, Valdecir Nascimento, Vilma Reis, Nazaré Lima e Fernanda Lopes”. Mulheres  que abriram os caminhos para as comunicadoras negras da atualidade: “Comunicação é fazer o círculo rodar. Quando essas mulheres se movem, a gente se move junto. Quando elas utilizam de ferramentas e métodos de comunicação para disseminar a nossa luta coletiva enquanto população negra, isso também é comunicação”, defende.

 

Planos para o futuro

Após concluir o ciclo de ações propostas para o edital, as comunicadoras já traçam planos para o futuro com perspectiva de expandir suas atuações e continuar desenvolvendo projetos que pautem reflexões sobre a necessidade de uma comunicação popular, negra e antirracista. Danubia pretende continuar a sua trajetória com um trabalho voltado para crianças negras, com o objetivo de mostrar que “podemos e devemos transformar o mundo através do nosso poder de comunicar por nosso lugar”. Já Midiã, tem como foco criar um portal para ampliar as conexões internacionais e discutir comunicação a partir de uma perspectiva afrodiaspórica, chamando também para o diálogo comunicadoras(es) negras(os) não formais.

Diante de um cenário adverso, onde a democratização da comunicação ainda soa distante, iniciativas criadas por comunicadoras negras para socializar as suas demandas, percepções, projetos e estratégias coletivas de luta, têm se mostrado como um caminho possível. Através delas é possível pensar em reapropriação das narrativas sobre negritude, garantia do livre expressar e geração de impactos políticos que afetam diretamente as condições de vida e existência da população negra brasileira. 

“O espaço da comunicação é um espaço de poder, conseguimos transformar vidas e criar consciência através da comunicação. Minha perspectiva é de que nós, pretos e pretas, possamos cada dia mais estarmos ocupando a comunicação”, conclui Danubia.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Mídias Negras e Jornalismo Antirracista: a comunicação como ferramenta de luta e emancipação das mulheres negras

Mulheres negras enxergam na comunicação uma forma de enfrentar as desigualdades geradas pelo racismo

Por Andressa Franco*

 

O racismo está presente nos diversos veículos de comunicação tradicional, e implica não somente na baixa porcentagem de pessoas negras ocupando essas redações, mas também na forma como essas pessoas são representadas na mídia. Trata-se de um fenômeno que exige a presença de mais profissionais negros comprometidos com a luta antirracista atuando neste mercado. E, além disso, que atuem e fortaleçam as mídias negras, segmento que ao longo da história utiliza a comunicação como ferramenta de luta contra o racismo.

Foi com esse objetivo em comum, que Marina Ribeiro Lopes, Jaqueline Ferreira Fraga e Brunna Kalynne se inscreverem no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations  

Os projetos destas comunicadoras tiveram como meta trazer para o foco o papel das mídias negras e a importância da prática de comuicação antirracista. A pandemia mudou os planos, mas estas lideranças encontraram no apoio do Fundo Baobá maneiras de se reinventar e alcançar seus objetivos.

 

Marina Ribeiro
Marina Ribeiro
Jaqueline Fraga
Jaqueline Fraga

 

Brunna Moraes
Brunna Moraes

 

“Comunica Preta”

Desde antes do nascimento oficial da Imprensa no Brasil (1808), negros e negras já utilizavam a comunicação como forma de articulação das lutas pela liberdade. A Revolta dos Búzios (1798) é uma data simbólica para as mídias negras, já que, mesmo em um período onde a imprensa era proibida pela Metrópole portuguesa, a comunicação foi a estratégia utilizada. Boletins manuscritos foram espalhados pela cidade de Salvador, permitindo que a mensagem fosse propagada, dos poucos que eram alfabetizados, para a maior parte da população. 

Foi pensando nas mídias negras como um legado histórico, que Brunna Moraes, de 24 anos, decidiu se inscrever no Programa. O objetivo foi desenvolver suas habilidades como profissional da comunicação e a construção coletiva de um veículo de mídia antirracista no estado de Alagoas. 

“Eu sentia necessidade de escrever no meu TCC [Trabalho de Conclusão de Curso] sobre o quanto o curso de jornalismo não aborda a comunicação antirracista, e deveria, porque não é a partir de hoje que existem mídias negras. Desde os tempos da escravização no Brasil existem pessoas negras organizadas dentro da comunicação”, conta a jovem, que é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Alagoas (UFAL). Brunna também faz parte da Associação de Negras e Negros da instituição, e integra o Instituto do Negro de Alagoas (INEG).

O período como bolsista do Baobá foi turbulento para Brunna, tanto por conta da pandemia, que resultou na reconfiguração do seu planejamento, como também pela descoberta de uma gravidez. Mesmo nesse processo, conseguiu fazer um curso de design, área em que tinha mais dificuldade, além de ter se dedicado ao estudo sobre comunicação negra.

Também foi a partir do financiamento que a estudante pôde comprar seu celular e seu computador, acessando assim oportunidades de trabalho. A jornalista colaborou durante um ano com o portal Notícia Preta, seu primeiro contato profissional com uma mídia negra. Isso a estimulou ainda mais na construção de um veículo nos mesmos moldes no seu próprio estado. 

“Durante o projeto fiz diversos vínculos, consegui formar uma equipe que hoje trabalha comigo no Mocambo Online. Mas, todo mundo tem diversas demandas e é algo que não dá lucro instantâneo. Então, o desafio principal é esse, mas tá rolando”, comenta sobre o projeto de mídia negra que toca em Alagoas.  

Inicialmente, a pretensão de Brunna era promover reuniões, encontros, palestras, viagens para colher histórias, que viriam a fazer parte da produção jornalística e realizar um evento de lançamento do jornal Mocambo Online. Mas, todos esses planos foram barrados por conta da pandemia.

“O principal desafio foi conseguir reunir o grupo que ia fazer parte do Mocambo Online. Eram pessoas que eu não conhecia e convidei através das redes sociais. Até hoje a gente nunca se reuniu presencialmente, tudo que a gente faz é online, mas é algo que a gente foi aprendendo a lidar com o tempo. Hoje eu sou a maior defensora de: se existe a possibilidade de ser remoto, por que tanto fetiche no presencial?”, brinca. 

O cuidado que recebeu das responsáveis pela iniciativa também chamou sua atenção. “As meninas sempre deixavam claro que o financiamento não era apenas de resultados demonstrados em nota fiscal. Mas, que a gente pudesse, de repente, cuidar da nossa pele, da nossa saúde mental, o que achasse necessário para crescer profissional e pessoalmente nesse período. Foi um cuidado muito importante se tratando de mulheres negras”, lembra a estudante, que hoje tem como perspectiva conseguir manter o projeto de maneira sustentável. 

“Aqui em Alagoas é muito difícil, é um estado extremamente oligárquico, as mídias são muito controladas e monopolizadas pela política local de coronelismo. Então, é furar uma situação de que as pessoas almoçam assistindo jornal policial, sabe? É um desafio, mas se ninguém fizer, não dá pra mudar”, completa.

 

“Comunicação Negra: Inspirar, Apoiar e Conscientizar”

Melhorar a comunicação para público em debates, formação, rodas de conversas e em construção de parcerias e captação de recursos era o principal objetivo da pernambucana Jaqueline Fraga, de 31 anos. Ela é jornalista da Folha de Pernambuco, escritora, e também é formada em administração.

Com MBA (Master in Business Administration, pós-graduação na área de gestão e administração) em Comunicação e Jornalismo Digital pela Universidade Cândido Mendes, Jaqueline destaca o apreço pelo estudo como uma de suas principais características. Foi com o recurso do Fundo Baobá que pôde alimentar essa característica, e também atuar em rede com mulheres negras de todo Brasil, o que considera um legado deixado pela iniciativa.

Desde a infância, sua identificação com a escrita se mostrou presente, o que a levou a publicar um livro finalista do Prêmio Jabuti na categoria biografia documental e reportagem: “Negra Sou: Ascensão da Mulher Negra no Mercado de Trabalho”. A jornalista era a única mulher entre os 10 finalistas do prêmio na categoria, e também a única com produção independente. 

O trabalho conquistou menção honrosa na 36ª edição do Prêmio Direitos Humanos de Jornalismo. A série de reportagens, antes de se tornar um livro físico, foi agraciada com o prêmio Antonieta de Barros – Jovens Comunicadores Negros e Negras.

Um dos seus desejos é que o livro seja adotado por escolas do ensino básico, mas destaca que, muitas vezes, ser mulher, negra e nordestina é um obstáculo. “Eu valorizo demais e tenho orgulho de ver tantas escritoras negras ganhando o mercado. Mas, às vezes, é como se fosse só aquele pequeno nicho, as pessoas não estão tão dispostas a conhecer pessoas de outras regiões, comprar do novo”, explica. 

A partir do financiamento, Jaqueline conseguiu realizar seu MBA; participou de cursos de marketing digital para auxiliar na divulgação de seus livros; adquiriu equipamentos e livros que atendessem às necessidades do seu trabalho. E, graças à rede com quem teve contato durante o Programa, conheceu outras mulheres com quem criou a Coletiva Negras que Movem, que tem uma coluna coletiva no portal Geledés.

A construção desta rede proporcionada pelo Programa fez diferença no trabalho de Jaqueline. A jornalista já fez entrevistas e escreveu matérias tendo como fontes mulheres que conheceu através do Baobá. “São projetos que querem levar pessoas negras, mulheres negras em especial, para locais que ainda são muito embranquecidos, e isso dialoga muito com o Programa” relata.

Mas, a pandemia também impactou as metas iniciais. Em maio de 2020, o pai da jornalista faleceu, e seus planos precisaram de uma pausa. Alguns ficaram inconclusos, como o curso de inglês avançado que queria fazer de forma presencial e não pôde terminar.

“Sigamos criando e ocupando espaços, porque a gente tem que ocupar os que nos foram negados e precisa criar os que sejam nossos”, é um dos lemas da comunicadora. Ela acompanha o conteúdo produzido pelas mídias negras, e acredita na importância de ocupar as redações tradicionais, para “tentar modificar o sistema por dentro”. 

Tendo ingressado em um jornal tradicional na área de colunismo social, surpreendeu o público ao trazer mais pessoas negras como personagens dos seus textos. Nesse processo, também produziu uma série para o site  Roberta Jungmann, colunista social da Folha de Pernambuco sobre a negritude pernambucana, em que entrevistou personalidades negras do estado que ganharam o mundo nas suas áreas de atuação. 

Quando passou pela editoria de cultura, levantou pautas com escritoras negras da região. Hoje na editoria de cotidiano tenta, ao máximo, trazer pessoas negras como fonte para debater os mais diversos assuntos. De economia à medicina.

“E não são só jornalistas negros que têm esse papel. Deve ser um objetivo da mídia fazer jornalismo pautado no antirracismo” defende. “Eu trabalho muito com histórias de exceções. As mulheres que eu entrevistei sempre são as únicas mulheres negras nos seus espaços. E a gente não quer mais que aconteça dessa forma”.

 

“Vozes Pretas – o poder da comunicação no combate ao racismo”

Já na vida de Marina Ribeiro Lopes, a comunicação se encaixa em outro lugar. O aprimoramento das habilidades como jornalista e comunicadora e a divulgação do trabalho de outras mulheres negras foi seu objetivo ao se inscrever para o edital com o projeto “Vozes Pretas – o poder da comunicação no combate ao racismo”.

Nascida em Santa Maria da Vitória, interior da Bahia, Marina vive há muitos anos em Aracaju, capital sergipana. Dentro do movimento negro organizado, ela fez parte do Grupo Abaô de Capoeira Angola. Também integra a Auto-Organização de Mulheres Negras de Sergipe Rejane Maria, e a diretoria do terreiro Ile Axé Opo Osogunlade. 

Como profissão, ela nunca passou pela área do jornalismo. Atua como bombeira militar, e com auxílio do Programa, agora também está experimentando a carreira de escritora. “Foi bem doido fazer esse projeto dentro de uma pandemia, no meu caso, além da pandemia, uma gestação e um parto, eu tive que mudar algumas coisas”, conta.

A ideia inicial de Marina era trabalhar as habilidades com a comunicação, para iniciar um projeto dentro do Grupo Abaô com crianças e adolescentes negras e negros, a fim de ajudar no desenvolvimento desses jovens. 

“O que atrapalhou mesmo minha comunicação foi ser uma criança negra dentro dessa sociedade. Eu sempre me omitia, não queria aparecer, histórias comuns às pessoas negras, às crianças principalmente”. Mas, por conta da pandemia, o Grupo Abaô perdeu a sede, e pouco depois a comunicadora descobriu que estava grávida. 

O projeto então foi redirecionado. O recurso se voltou para um projeto que Marina já vinha desenvolvendo, o Mercado Negro Aracaju, uma plataforma onde pessoas negras cadastram seus serviços e produtos. “Às vezes a gente quer ir a um médico, a uma costureira, ou qualquer serviço, e queremos dar prioridade às pessoas negras, e não sabemos onde encontrar. É dessa necessidade que surge a plataforma”, relata. 

Com ajuda do Programa, ela conseguiu uma parceria para auxiliar na produção de conteúdo para o site e para as redes sociais da plataforma, o que resultou em crescimento de acessos e de cadastros. A outra ação que Marina desenvolveu, surgiu por acaso, foi o livro QUARTA ÀS 9, que assina como autora, e nasceu da publicação de seus textos no Facebook.

“Eu tinha muita vergonha de mostrar o que eu escrevia, e como minha habilidade a ser desenvolvida era a comunicação e a gente estava na pandemia, eu acabei experimentando escrever e publicar”. Mesmo com medo de se expor, depois do convite de uma pequena editora independente de um casal de amigos da cidade, a IPADÊ – Estúdio Gráfico – Marina aceitou o desafio. Começaram uma campanha de financiamento coletivo e, junto com os recursos do Programa, o livro foi lançado em setembro deste ano. 

“Não sei se tenho dimensão do quanto esse projeto impactou minha vida. Acho que minha maior dificuldade era trabalhar no âmbito individual, porque sempre falei enquanto parte de coletivos. Minha maior transformação foi a coragem de falar que eu não sou somente uma pessoa em um grupo”. 

O foco de Marina hoje é a filha recém-nascida. Mas depois da experiência e da iniciativa de lançar um livro, ela pretende se esforçar para continuar na trajetória de escritora. Tudo isso, afirma, sem abrir mão de tentar colocar em prática seu objetivo inicial, trabalhar com a comunicação de jovens negros através do Grupo Abaô de Capoeira Angola.

 

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Conexão e cura através da arte: um impulso para transformar criativamente as condições opressivas que nos cercam

Três iniciativas contempladas pelo Fundo Baobá têm em comum o objetivo de impulsionar mulheres negras a ocupar espaços culturais a fim de protagonizarem suas próprias histórias

Por Júlia de Miranda*

 

A filósofa norte-americana Angela Davis defende que a arte é uma forma peculiar de consciência social que tem o poder de despertar nas pessoas tocadas por ela um impulso para transformar criativamente as condições opressivas que as cercam. Aqui no Brasil, muito da nossa cultura é oriunda do continente africano: comida, música, a nossa própria língua (o ‘pretuguês’ como chama Lélia Gonzalez), danças e muitas tradições. Conectar arte e ancestralidade negra de maneira responsável possibilita a abertura de processos de cura, pessoais e coletivos.

Projetos voltados para a arte e cultura ancestral foram contemplados na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. 

Os projetos: “Negras e Tecnologia – Produção Musical Enegrecida”, da produtora musical, cantautora e multi-instrumentista Andressa Ferreira, de Porto Alegre (RS); “Meduza a Vez e a Voz Dela”, da pedagoga Renata da Silva, de São Paulo (SP); e “Enegrecendo o artvismo: multilinguagem na luta antirracista”, da produtora cultural de Campina Grande (PB), Carolina Brito; foram três iniciativas que têm em comum o objetivo de impulsionar mulheres negras a ocupar espaços culturais e protagonizar suas próprias histórias. 

Renata Santos

 

Contornando os desafios 

Renata da Silva articulou atividades culturais de capoeira e graffiti, mas com a pandemia os encontros e oficinas aconteceram em sua maioria de forma virtual. Algumas poucas presenciais, com número menor de pessoas e os cuidados necessários de distanciamento social. Já o projeto de Andressa Ferreira surgiu da necessidade de ter mais autonomia nos trabalhos em que participa, e também pela urgência de tornar o ambiente da produção musical menos hostil para mulheres, principalmente as negras e indígenas, cis e trans. “Isso se deve ao fato de que a área do áudio e da tecnologia ainda é dominado por homens brancos cis”, pontua.

O ‘Enegrecendo o Artvismo’, projeto de Carolina Brito, nasceu diante da falta de diálogo sobre a questão racial em sua cidade, no interior da Paraíba. A iniciativa foi baseada num caminho que a produtora já vinha percorrendo há 4 anos desde o seu trabalho de conclusão de curso, o “Enegrecida”. Ele evoluiu e virou atividade formativa e palestra, passou a ser iniciativa social, loja e página de produção de conteúdo. 

Com o apoio do Fundo Baobá, Carolina vivenciou algo inédito, a possibilidade de olhar para si com mais carinho e dedicação: começou uma pós-graduação em História e Cultura Afro-Brasileira e também a psicoterapia. “O desenvolvimento pessoal acabou sendo a principal parte do meu projeto, estamos sempre olhando para fora ao invés de olhar para dentro primeiro e esse foi um ensinamento muito grande que o projeto me deu”, conta a artivista que chegou a ter início de depressão durante o processo e obteve ajuda no Programa. “Fizemos uma série de atividades on-line com mulheres negras sobre saúde mental e turmas de trabalho sobre o pensamento de Angela Davis”, relembra Carolina. 

Adequando o projeto para uma nova roupagem remota e virtual, Andressa conseguiu acessar os conhecimentos em relação a áudio e tecnologia, área onde existem ainda vários desafios por se tratar de um espaço que é majoritariamente branco, masculino e elitizado. Ela comenta que trabalhar com isso requer alto investimento em equipamentos tecnológicos que não são acessíveis para a maioria da população negra, indígena e periférica. “Consegui montar um home estúdio itinerante; ampliei redes; conheci outros produtores (as); fiz cursos de formação; aulas de inglês e dei início a um novo empreendimento voltado para produção musical e inclusão de mulheres negras e indígenas cis e trans na área do áudio e tecnologia: o MAAT, Mulheres Afro-indígenas Áudio e Tecnologia”, elenca Andressa.  

Carolina também financiou cursos de edição de vídeo, investiu em livros, e comprou alguns equipamentos para colocar em prática o conhecimento no audiovisual. A execução do seu trabalho envolveu encontros virtuais para debates sobre raça e também o Slam das Pretas, que contou com a participação de mulheres do Nordeste e poetisas da Colômbia, Moçambique e Angola. 

 

Expectativas e autoestima 

Renata descreve a sua participação no Programa como “um momento mágico” na sua vida. Ela conseguiu ter tranquilidade financeira para se organizar, e estar próxima, mesmo que virtualmente, de outras lideranças. “No decorrer do projeto aproveitei o momento de isolamento social para estudar editais e escrever projetos, um deles veio ao encontro com o triste momento vivenciado em março de 2020. O ‘CapoELAndo na Luta por Direitos Fundamentais’, nos possibilitou auxiliar centenas de famílias com produtos de higiene, cestas básicas e conscientização na região de Sapopemba, no município de São Paulo”, explica Renata. 

O principal objetivo do seu projeto foi alcançado enquanto liderança feminina negra e também no desenvolvimento de atividades culturais, realizadas de forma remota, ligadas ao graffiti e capoeira. Com o apoio do Fundo Baobá, Renata conseguiu  remunerar mensalmente 15 pessoas, e indiretamente dezenas de artistas, agentes culturais, músicos, grupos de capoeira e outros coletivos. 

Para Andressa o período também foi de “grande benção” e muito crescimento e colheita que a ajudou bastante a passar pela pandemia conseguindo visualizar novos horizontes e possibilidades. “Me sinto apta e autorizada a me apresentar e atuar cada vez mais como produtora musical, pois além de ter uma formação, tive várias oportunidades para colocar em prática os conhecimentos adquiridos ao longo da execução do projeto”, comenta a produtora. Ela conta que graças às aquisições dos equipamentos, realizou a produção musical de diversos trabalhos, além de mentorias para pessoas da comunidade LGBTQIAP+. “Compartilhei e sigo compartilhando saberes com mulheres negras, e também com algumas comunidades indígenas Mbya Guarani a convite da Tela Indígena, em parceria com a Comunicação Kuery”, comemora  a produtora. 

Carolina Brito, através da experiência oferecida pelo Fundo Baobá, também enxerga hoje todo o seu potencial enquanto líder. A única parte do seu projeto que não foi concluída foram as oficinas nas escolas (escrita criativa afrocentrada, identidade racial e vídeos-poemas). Como tudo estava fechado durante a pandemia e agora as aulas presenciais retornaram, essas atividades serão realizadas com os estudantes do infanto-juvenil. “Ser uma mulher negra que trabalha com audiovisual e que está no mercado com autonomia das suas produções, isso é revolucionário para a minha história. Tenho agora uma equipe formada para fortalecer essas atividades culturais comigo”, afirma. 

Andressa pretende continuar atuando na área para adquirir mais experiência e, se for possível, realizar mais algumas formações técnicas para aprimorar os trabalhos que vem desenvolvendo e assim poder abrir mais portas. Além disso, quer organizar novas oficinas e vivências estimulando outras mulheres negras e indígenas a ocuparem a área de produção musical. “A oficina que eu ofereci para mulheres negras e indígenas cis e trans foi um sucesso e me fez confirmar a demanda e vontade de outras mulheres de acessarem esses conhecimentos”, afirma. 

Para ela o Fundo Baobá realiza mudanças efetivas na nossa sociedade, conseguindo fomentar projetos que contribuem de fato na construção de uma sociedade mais equânime. “Tive a oportunidade de participar das formações políticas junto com as outras lideranças apoiadas, e esses encontros foram de extrema importância para que eu alcançasse meu objetivo. Hoje eu, assim como todas as mulheres contempladas por esse edital, podemos estar aqui planejando nosso futuro e potencializando não só a nossa trajetória como as das próximas gerações”, prevê a produtora musical.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Dança ancestral: ferramenta de cura e conexão para o corpo negro

Leandra Silva e Juliana Jardel apostam na dança como ferramenta de ascensão da potência negra e comentam sobre seus projetos apoiados pelo Fundo Baobá

Por Júlia de Miranda*

 

Pensar a dança como ferramenta de cura não é algo novo. Movimentar e ocupar o próprio corpo conscientemente, compreendendo que é da natureza humana dançar, faz parte do paradigma civilizatório que o continente africano reverbera ainda hoje: os africanos estão sempre dançando em seus rituais e cerimônias. A escritora estadunidense Alice Walker foi cirúrgica quando afirmou que “tempos difíceis exigem uma dança furiosa”, e que ela é crucial na manutenção do equilíbrio. Acordar o corpo adormecido e reaprender os passos no ritmo frenético dos novos tempos requer um olhar interior atento para perceber que a força de uma coreografia solo (o processo do autoconhecimento) tem poder, e que quando esses dançarinos fortalecidos se juntam (a potência do coletivo), as mudanças acontecem. 

A dança ancestral foi contemplada na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. Através dos projetos Movimentos Atlânticos, da bailarina, professora de dança e doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal de Goiás (UFG), Juliana Jardel; e VERVE- DÉJÀ VU AFROTURISTA 1º ATO- ANCESTRALIDADE HIGH TECH, proposta da também bailarina, professora e jornalista Leandra Silva, ambas mulheres de Axé.

Juliana Jardel

 

Leandra Silva

 

Leandra relata que fazer parte do Programa foi uma das melhores coisas que poderia ter acontecido, e foi a primeira vez que ela vivenciou esse nível de investimento profissional. Ela acredita que a iniciativa do Baobá, em querer formar lideranças negras, vai na contramão do que o Brasil está acostumado. “Essa bolsa me deu um chão e essa é uma das coisas mais revolucionárias que eu vejo na proposta do Baobá, que é o investimento financeiro direto e real em mulheres negras; aí eu tive a dimensão do quanto eu posso chegar simplesmente tendo um investimento mínimo”, relata a coreógrafa.

A paulistana dança e atua como professora há 20 anos e reconhece ali um lugar de cura onde a partir de tecnologias ancestrais consegue ancorar processos criativos que possibilitam o crescimento de sua autoestima. Leandra já passou por algumas importantes escolas de dança, por isso sabe que essa arte não é tão acessível e os lugares de aprendizado podem ser torturantes para pessoas negras. Passar por esses lugares e manter autoestima, criatividade, brilho e não desistir, é um grande desafio. “O mundo branco da dança é bastante complicado para a autoconfiança e saúde mental; e foi justamente dessas experiências de alegria, cura e também de discriminação dentro dos espaços brancos de aprendizado que eu fui forjando a minha experiência como dançarina”.

O projeto foi pensado para que Leandra pudesse ter as devidas condições financeiras, e conseguisse pesquisar e se fortalecer como coreógrafa e líder da companhia Verve de Arte Negra. O ‘Déjà vú Afrofuturista Ancestralidade High-Tech’ é o primeiro espetáculo coreografado por ela e discorre sobre a guerra do Orí, o conflito para ser dona da própria cabeça. Ele se chama Déjà vú porque carrega a ideia de que nós não estamos inventando a roda, e que na cultura negra a gente passa pelo processo de recriação, cocriação e inovação devido ao tempo de civilização e história. 

“No primeiro espetáculo, todas as pessoas [negras] que estavam no palco relataram alguma experiência de ouvirem que elas não poderiam dançar seja pelo corpo inadequado, a cor, o lugar, a idade e todas essas coisas que no Brasil são colocadas na hora de você ter preparo para se tornar um artista. Nenhum corpo é impedido do palco e da experiência com a dança negra contemporânea, e nem por isso ela deixa de ser criteriosa”, reitera Leandra. 

A pandemia da Covid-19 surgiu no auge do lançamento do espetáculo, e com o projeto do Fundo Baobá aprovado o foco se voltou para buscar os recursos financeiros que possibilitassem a permanência da equipe virtualmente. Foram grandes os desafios e as mudanças na rota possibilitaram novas narrativas: por envolver muitas pessoas, ‘Déjà vú’ saiu de cena e surgiu a ideia de produzir o Festival FERVE – projeto idealizado por Edvan Mota, com a sua companhia. O festival aconteceu virtualmente em agosto de 2021, com apoio da  Lei Aldir Blanc, e durou 6 dias, trazendo o tambor como centro em variadas temáticas, contando com uma gama de artistas de distintas gerações. Dentro do festival, Leandra criou  a dança solo ‘Firmamento’ que é o trânsito entre o tradicional e o contemporâneo. Mesmo tendo somente a artista nos holofotes, a produção envolveu uma equipe técnica de 20 pessoas. 

O Fundo Baobá possibilitou para a dançarina uma estrutura pessoal que permitiu a dedicação dela em outros projetos que somaram na melhoria da Cia de Dança. A realização do festival é fruto deste investimento. 

“O desenvolvimento do projeto se deu com muitas transformações e altos e baixos. Tive assessoria de um coach do Baobá, oficinas, reflexões e muitas trocas com outras mulheres negras agraciadas pelo Fundo.  Foi bastante inspirador estar com essas mulheres de tanta criatividade e coragem. Mulheres gigantes de distintas trajetórias”, recorda Leandra. A dançarina conquistou, além de formação e conhecimento, a aprovação em outros editais. O dinheiro captado não foi para o próprio benefício, todavia trouxe paz, alegria e trabalho com todos da sua comunidade de dança. 

Sobre o que está por vir, Leandra costuma dizer que o hoje é um futuro que foi sonhado pelos seus ancestrais. Celebra com orgulho a conquista de ser a primeira mulher da família que ocupou a cadeira numa universidade (fez parte da primeira turma com cotas raciais na Universidade Federal da Bahia – UFBA). “Eu entendi que se eu esperasse do mundo o devido papel e o devido lugar, eu nunca estaria no palco da forma como a minha potência exige e merece. Eu coreografo porque escolhi trilhar um futuro onde eu tenha voz, poder, autonojmia e autoridade para escolher sobre em que corpo e em que pele está à luz”. 

 

Dançando com as águas da diáspora africana 

Ser um corpo negro no mundo, como sugere a cantora Luedji Luna, significa ter cor e corte. É carregar as dores da diáspora africana no Brasil que ainda não reconhece mulheres e homens negras e negros como valiosos protagonistas no desenvolvimento social, econômico, cultural e intelectual da nossa história. 

O projeto Movimentos Atlânticos de Juliana Jardel, já existia e é a metodologia em dança que ela desenvolve há alguns anos. O nome é inspirado no documentário Orí, da cineasta e socióloga Raquel Gerber, que tem a intelectual Beatriz Nascimento como protagonista. Após perceber que as alunos negros chegavam à sala de aula rígidos e envergonhados do próprio corpo, mesmo os que já tinham consciência racial e trabalhavam a valorização da cultura negra.  Quando iam para a prática desse corpo coletivo e individual essas pessoas eram muito travadas. Juliana decidiu trabalhar com esses corpos no movimento da dança, algo semelhante à fluidez de um rio na pulsação da vida. 

A ancestralidade é fator marcante em alguns pontos específicos do método que relembram a infância da dançarina na fazenda observando o ato de pilar realizado pela avó, e também a sua proximidade com o candomblé. Quando saiu o edital do Fundo Baobá, Juliana vislumbrou a possibilidade de utilizar o recurso financeiro e ainda estabelecer conexões com outras pessoas negras, potencializando o seu projeto em Goiânia, cidade onde vive. 

“O racismo se dá diretamente no corpo, e após observar os meus alunos eu percebi que aqueles corpos ainda tinham questões para serem resolvidas. Do entendimento que esse corpo é diariamente atacado, e ele funciona como um receptáculo que guarda informações, eu procurei no projeto cuidar dele evidenciando que ali é o primeiro alvo a ser violentado nessa estrutura racista. O corpo coletivo e individual é um lugar de morada, Beatriz Nascimento dizia que o negro precisa entender no corpo que ele não é mais um cativo”, reflete a dançarina.

Pensar a libertação do próprio corpo, entendendo-o como potência, fez com que Juliana encarasse uma dança turbulenta. Ela foi desligada do mestrado em dança durante o processo de desenvolvimento do projeto e pôde contar com a assessoria jurídica e rede de apoio do Baobá para reverter a situação. Concluiu o mestrado em Performance Culturais e engatou na sequência o doutorado. 

O Fundo ainda possibilitou o investimento em livros, cursos e materiais para as aulas no grupo Corpo Suspeito, montado pela professora. Ela pôde ainda se resguardar no período pandêmico (sem dar aula de forma presencial) e projetar sua carreira. “Pude ampliar a minha rede de conexão com essas mulheres que conheci. Hoje eu me vejo mais conectada, rápida, atenta às mudanças do mercado e com segurança de me lançar. O projeto me ajudou profissionalmente como artista e acadêmica, estou perdendo o medo da escrita”, afirma Juliana. 

Para o futuro, ela pretende seguir no doutorado e continuar ampliando as redes sem perder o contato com a que foi construída através do Baobá. Ser uma colaboradora nos próximos editais do Fundo faz parte de seus planos, além de seguir dançando. E nas palavras de Luedji: sendo a sua própria embarcação e sorte.

E você, já dançou hoje!?

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Tecnologia afrofuturista: mulheres negras impulsionando a ciência e o conhecimento

Projetos voltados para a ciência de dados da saúde da população negra, tecnologia da informação e design apontam novos futuros nas carreiras profissionais de lideranças negras

Por Júlia de Miranda*

 

Pensar na modernidade dos tempos atuais envolve refletir e planejar um futuro cada vez mais conectado, onde as diversas tecnologias nos levam para um mundo novo. Afrofuturismo é uma forma de imaginar o futuro em que nós, pessoas negras, existimos como criadores numa sociedade marcada pelo intenso desenvolvimento tecnológico, pela cultura e estética africana sem esquecer a conexão com a nossa ancestralidade. Futuro e tecnologia são ambientes construídos estrategicamente na caminhada política coletiva no presente, e pretos e pretas são agora os protagonistas de suas próprias narrativas. Escrevemos história no passado, presente e no afrofuturo.

As mulheres negras da Ciência e Tecnologia foram contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. O apoio foi para os projetos: “Black Data – Uma preta na ciência de dados”, de Jéssica dos Remédios (RJ); “Inspirar e atrair mais mulheres negras na área de Design e Tecnologia a partir da minha liderança”, da Taís Nascimento (PE); “Pretas Tech: Mais Mulheres Negras na Tecnologia”, de Bárbara Aguilar (MG); e “BotDandara”, da Vitória da Silva (SC).

Bárbara Aguilar

 

Vitória da Silva

 

Adaptações devido a pandemia 

O projeto da designer Taís Nascimento, que já possui quase 20 anos de carreira em Tecnologia da Informação, precisava de uma “mão amiga” para sair do papel. E foi justamente isso que o Fundo Baobá proporcionou: recurso e apoio para planejar de forma consistente e investir em seu desenvolvimento profissional e acadêmico. Taís teve o intuito de fortalecimento pessoal para se tornar mais competente em formar e empoderar outras mulheres negras na área em que atua,  a UX Design, em tradução literal “design de experiência do usuário”. Área responsável para que  usuários tenham a melhor experiência de uso.  

“Nesta época, já havia um grupo articulado e apoiado por mim, de mulheres negras, em transição de carreira para área de UX Design e era com esse grupo que eu pretendia promover ações educacionais”, recorda a designer. Porém os planos foram prejudicados pela pandemia, e pelos poucos recursos tecnológicos da maioria das integrantes do grupo. “Outro objetivo prejudicado pela pandemia foi a conquista da proficiência em inglês. Boa parte dos recursos recebidos seria utilizada para realizar um intercâmbio profissional, a partir de cursos na língua e na área de Design e Tecnologia fora do país”, comenta.   

Bárbara Aguilar, também da área de design, contou que a KilomboTech nasceu em 2019, de um encontro com a historiadora e cientista de dados Allana Cardoso, após vivenciarem inúmeras situações de apagamento e racismo nos espaços do mercado de Tecnologia da Informação (TI). Optando por navegar em outros mares profissionais, ambas estavam sem referências negras e sentindo na pele a baixa representatividade nas empresas de tecnologia. “A pandemia infelizmente nos fez adiar e recalcular toda a rota do projeto, mudamos o foco principal das aulas e treinamentos presenciais e focamos no fortalecimento de nossa rede e comunidade online com outras mulheres negras”, analisa a participante. Ela seguiu construindo uma forte e engajada rede profissional e tem sido reconhecida por outras empresas e comunidades de tecnologia; agora também realizando palestras, aulas e mentorias individuais.

 Jéssica dos Remédios, pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) também estava num momento de querer visualizar novos horizontes quando foi contemplada com o Programa. “Eu já tinha um desejo que era me voltar para a ciência de dados, um mercado que estava em ascensão. Diante disso, eu escolhi fazer uma especialização em data science e informática para a saúde no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e direcionei o meu recurso para isso”, recorda Jéssica. Tudo que foi vivido fortaleceu o processo de transição de carreira e hoje ela trabalha com saúde pública voltada para análise de dados e saúde da população negra, ambiente que, no passado, ela tinha dificuldade de encontrar informações de qualidade. 

A CEO no LAB the Creator, Vitória da Silva, ambicionou a ideia de ter uma plataforma onde pudesse pensar no afrofuturismo, imaginar o futuro de forma afrocentrada e ver pessoas negras criando através das suas próprias perspectivas. A sua meta era construir projetos inovadores a partir de tecnologias emergentes, todavia ela não encontrava esse lugar em Florianópolis (SC). “Uma das principais coisas que eu aprendi com as ferramentas que o Fundo Baobá forneceu para mim durante esse período, foi pensar em mim e como eu poderia me desenvolver, e devolver isso, para o coletivo”. Vitória conta que foi um desafio pensar em si como uma referência, por questões de autoestima, autocuidado e de desenvolvimento pessoal. “Isso foi um exercício difícil porque eu estava muito acostumada a estar e ser para os outros e pouco voltava o olhar para mim”, analisa.  

 

Mulheres negras no front 

A colheita de Taís com a vivência proporcionada pelo Fundo Baobá foi de êxito profissional, acadêmico e financeiro. Ela foi promovida e passou de uma profissional de nível pleno para consultora em UX Design. Além disso, tornou- se líder técnica, professora, palestrante e mentora nesse curto período de tempo. A execução do projeto ficou prejudicada no contexto trazido pela pandemia, porém ao mesmo tempo Taís salienta que foi essencial atravessar essa turbulência mundial tão crítica estando conectada a tantas mulheres potentes que foram trazidas pelo Programa. “Entendo que a estruturação de um plano de carreira aliada à disposição de recursos foi primordial para efetivar tais conquistas. Mesmo nesse contexto, e embora tenha sido necessário reconfigurar o meu trabalho para aquela realidade de isolamento social, vejo que os resultados foram satisfatoriamente alcançados”, avalia a designer.

Para Bárbara os próximos passos estão focados na estruturação, formalização da Kilombo Tech como uma EdTech/TechCommunity (startup tecnológica) e ganhar escala para impactar outras mulheres em diversas regiões, e não apenas localmente. Ela descreve que a sua experiência com o Fundo “foi espetacular” e que conseguiu investir em seu crescimento profissional. Atualmente se prepara para alavancar a carreira e priorizar ainda mais o desenvolvimento da Kilombo Tech. “Meus objetivos foram alcançados com sucesso, mesmo com os ajustes na pandemia. Conquistei reconhecimentos e promoções no meu trabalho e também houve a visibilidade da Kilombo Tech dentre as comunidades de tecnologia”, comemora Bárbara. 

Quando planeja o futuro, Vitória diz estar buscando articular parcerias em novas tecnologias emergentes para poder alçar voos em 2022. Com o Fundo Baobá ela alcançou estabilidade maior na carreira e investiu em hardwares e estrutura para home office, que ajudou a enfrentar as mudanças no mundo em situação pandêmica. 

Já Jéssica analisa que o que mais a marcou no processo foi abrir espaço para que as pessoas consigam falar da saúde da população negra e tenham informação de qualidade para poder discorrer com profundidade sobre o tema. “O que ficou de legado foi trabalhar com ciência de dados e estar com outras mulheres negras potentes do Brasil inteiro. Ter construído junto com elas um coletivo que chama Negras que Movem (virou até uma página nas redes sociais)”, destaca. Ela ainda quer conseguir financiamento para um projeto que foque na qualificação de registros, principalmente no quesito raça/cor, e todas as informações relacionadas aos diversos agravos de saúde da população negra.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Mulheres negras lutam pelo direito à cidade como uma garantia para as populações negras e periféricas

Ana Caminha e Sarah Marques são ativistas pelo direito à cidade e debatem sobre o espaço urbano, moradia e racismo em suas comunidades

Por Júlia de Miranda*

 

Num passeio pela sua cidade, você consegue perceber a forma como a ocupa e quais são os sentimentos que emergem sobre pertencer a esse espaço? Qual a relação da arquitetura e urbanismo com os habitantes ali? Exclui, limita ou convida e agrega? Depende da região? Percebe como os problemas que acompanham a formação histórica do nosso país (questões de raça, gênero e classe, que hierarquizam as vivências) são materializados nos espaços da cidade? 

Tudo isso passa despercebido para muitos moradores, mas, de acordo com a escritora Joice Berth, arquitetura e urbanismo não são neutros. O geógrafo Milton Santos traz o pensamento da cidadania mutilada: se a gente não vivencia as cidades de uma maneira igualitária, justa, equilibrada e integral, nós não podemos dizer que somos cidadãos ou cidadãs. O sociólogo Boaventura de Sousa Santos fala em “racismo do apartheid”, para ele a segregação social dos excluídos se dá através de uma cartografia urbana que divide as cidades em “zonas selvagens” e “zonas civilizadas”.

O conceito “direito à cidade” foi originalmente cunhado pelo sociólogo francês Henri Lefebvre, em 1968, e significa o direito dos cidadãos figurar sobre todas as redes, circuitos de comunicação, de informação e de trocas. Será que quando falamos da população negra esses tais direitos valem? 

A agenda política “População Negra e Direito à Cidade” foi contemplado na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. Os projetos da comerciante Ana Cristina da Silva Caminha, de Salvador (BA), e Sarah Marques do Nascimento, educadora popular do Recife (PE), debatem sobre o espaço urbano e o direito à cidade e moradia, combatendo o racismo e fortalecendo a resistência comunitária. 

Ana Caminha | Reprodução: Instagram

 

A luta para transformar as comunidades

Ana e Sarah são duas mulheres negras que assumiram a liderança em seus territórios. No caso da pernambucana, a comunidade Caranguejo Tabaiares, localizada na zona Oeste do Recife, instalada numa Zona Especial de Interesse Social (Zeis) de tradição pesqueira. Seu processo de despertar para a consciência de que era necessário resistir com os seus se deu em 2018, quando a prefeitura municipal ameaçou remover os moradores do local (76 casas na época) devido a uma obra. Prometendo levá-los para outro espaço, tirando seus vínculos e profissão, a comunidade não aceitou a decisão e Sarah mergulhou de vez em sua militância. “O Fundo Baobá me proporcionou condições para me aprofundar na minha luta. Nós somos os donos dessa terra, o projeto foi pensado para evidenciar as nossas raízes e escutar as mulheres idosas para a produção de uma revista que circularia por toda a cidade divulgando a nossa história e resistência”, conta a educadora popular. 

Com a pandemia da Covid-19 os planos precisaram mudar, pois o acesso à terceira idade ficou restrito diante do distanciamento social. A proposta foi adaptada para um projeto de sustentabilidade, alimentação e autocuidado com todos os moradores da região. Foram arrecadadas cestas básicas e álcool para serem distribuídos nas casas, além de um dedicado trabalho de comunicação social informando a todos sobre noções de higiene pessoal e os cuidados necessários para não pegar o coronavírus. Tudo foi adaptado e produzido numa linguagem acessível para as ribeirinhas. Com o apoio financeiro do Fundo, Sarah conseguiu ficar mais tempo em casa protegida, pôde pagar as contas, comprar equipamentos de trabalho e alimentos para doação na comunidade.  

Hoje ela se considera uma mulher de forte liderança e isso foi impulsionado pelo Programa, que ofereceu formação direta e a apresentou para outras lideranças negras de todo o país. “Conheci mulheres negras que estão na academia e isso me fortaleceu mostrando que estou no caminho certo sendo uma líder comunitária. A nossa discussão, que é o direito à cidade, é ampla e isso fala do acesso que todos deveríamos ter por direito. Quando são para poucos, isso se chama privilégio”, defende Sarah.

Para o futuro a intenção é que as mulheres da comunidade, maioria chefes de família, encontrem uma maneira de se auto sustentarem. Elas normalmente assumem subempregos, sem ter os seus direitos garantidos. A ideia, que já está em curso, é manter a horta e cozinha comunitária para que todos usufruam e ainda abrir para projetos de artesanatos.

Uma assessoria jurídica garantiu a regularização fundiária para a comunidade Caranguejo Tabaiares, e a prefeitura revogou o decreto. Sarah e suas companheiras e companheiros seguem firmes na luta por direito à terra. 

Já Ana Caminha foi contemplada com o Fundo Baobá quando sua atuação política estava bastante intensa em defesa dos direitos da comunidade negra, periférica e pesqueira da Gamboa de Baixo, em Salvador (BA). Ela também atua em outras localizações do Centro Antigo da capital baiana. Naquele momento ela tinha notado como era importante se aprofundar no antirracismo e nos movimentos das mulheres negras, mas precisava de tempo e apoio para amplificar sua voz. “Sou uma liderança antiga, mas com dificuldades financeiras para me dispor e estar atuando no movimento”, enfatiza. Para a comerciante, a iniciativa do Baobá caiu como uma luva, já que precisava ter tempo livre para entender mais sobre o processo político. “Pelo fato de eu representar a articulação Centro Antigo de Salvador, vi na situação a possibilidade de voltar a estudar e me apropriar de informações que possibilitam uma atuação ainda mais ativa e firme”, explica Ana.

O período pandêmico foi turbulento e exigiu que a proximidade com as tecnologias chegasse à comunidade. Ana precisou adaptar sua atuação para o formato de lives, cortejos virtuais e a comunicação com outras organizações, cursos e universidades. Ela avançou seus conhecimentos na língua inglesa, porém a imersão no idioma prevista para acontecer nos EUA ainda não aconteceu. Ana pretende agora investir na carreira acadêmica. “Para mim foi uma vitória e uma conquista aprender a lidar com tecnologia e fazer luta neste espaço. Nós, da periferia, não temos tanto acesso às tecnologias e adaptar o projeto durante a pandemia me obrigou a imergir no virtual”, avalia.

O investimento do Fundo Baobá promoveu o contato de Ana com outras lideranças negras e possibilitou, maior disponibilidade para ela se debruçar no conhecimento político acadêmico. Ela também formou um grupo de mulheres negras na Gamboa para somar no ativismo.

Continuar os estudos, representar as comunidades do centro na luta por moradia e fazer frente às ações políticas antirracistas completam a lista de Ana. O objetivo é se tornar uma referência e exemplo para as mulheres negras da sua comunidade, do centro e diversos espaços soteropolitanos onde mulheres e homens negros são segregados. Seu desejo é transformar a atual precariedade e garantir  direito à cidade à população negra e periférica do Centro de Salvador.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Dia Mundial da Saúde: Pouco a celebrar, muito a reivindicar

Hoje, 07 de abril, é celebrado o Dia Mundial da Saúde. A data foi criada no ano de 1948, durante a primeira Assembléia Mundial da Saúde, no qual também foi criada a Organização Mundial da Saúde (OMS). A primeira celebração ocorreu em 1950.

O objetivo da data é garantir o melhor nível de saúde para as pessoas em todo o mundo, através da divulgação de temas importantes para a sociedade e que possam contribuir com a melhoria da qualidade de vida.

Hoje, 71 anos depois da primeira celebração, não há muito o que comemorar. Com a pandemia do novo coronavírus em curso, há um ano, na última terça-feira (6), o Brasil bateu o recorde de morte diárias pela covid-19, foram, ao todo, 4.195 vidas perdidas em 24 horas. Até o momento, já perdemos 337 mil vidas.

No dia 17 de janeiro, a esperança parecia renascer quando Mônica Calazans, uma enfermeira negra, foi a primeira pessoa a ser vacinada no país, no mesmo dia que a Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) autorizou o uso emergencial de duas vacinas contra a covid-19 no Brasil: a CoronaVac, produzida pelo laboratório chinês Sinovac em parceria com o Instituto Butantan (SP), e a vacina da Universidade de Oxford/AstraZeneca, que será produzida no Brasil pela Fiocruz (RJ). Porém, dois meses depois, os dados de pessoas vacinadas não avançam com a velocidade que deveriam, os últimos dados revelam que apenas 2,78% da população brasileira foi imunizada com a segunda dose da vacina

Mônica Calazans, a primeira pessoa a ser vacina contra a Covid-19 no Brasil (Foto: Divulgação)

Quando o plano nacional de imunização foi apresentado, populações quilombolas e ribeirinhas foram incluídas no grupo prioritário de vacinação. Entretanto, a realidade é outra. Uma reportagem feita pela Agência Pública, confirma que 28% dos brasileiros vacinados até agora são negros, enquanto brancos representam mais de 52% dos imunizados. Esse número mostra a desigualdade racial em nosso país considerando que 56% da população brasileira se autodeclara negra, segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas). O  estudo Raça e Saúde Pública, coordenado pela Vital Strategies, mostra que homens negros são maioria no índice de mortalidade por Covid-19 no país, sendo que este grupo representa o dobro do que é formado por mulheres brancas.

De acordo com a Pesquisa Perfil da Enfermagem no Brasil, feita pela Fiocruz em parceria com o Conselho Federal de Enfermagem (Cofen), entre os profissionais de enfermagem brasileiros, 42,3% são brancos, enquanto 53% são negros, portanto, é ainda maior o número de profissionais negros na linha de frente do combate ao coronavírus.

Ainda sobre os profissionais da saúde, em especial as enfermeiras negras,  uma pesquisa feita pela Fiocruz Minas e a Rede Covid-19 Humanidades, da Escola de Administração de Empresas de São Paulo (Easp/FGV), sobre a situação dos profissionais da saúde no combate à Covid-19, mostra que as mulheres negras foram as que mais declararam sensação de despreparo (58,7%) e ocorrência de assédio moral no trabalho (38%). Elas também sentiram medo (54%), desconfiança (28%) e tristeza (53%) em maior proporção do que outros grupos. Por outro lado, homens brancos que afirmaram sentir despreparo para lidar com a crise estão em 33,5%, enquanto aqueles que sofreram assédio moral, 25%.

A Covid-19 jogou luz sobre as desigualdades raciais e sociais existentes em nosso país. Caso não sejam implementadas políticas e ações pró-equidade eficazes, o SUS não se consolida como mecanismo de justiça social e não haverá possibilidades de contribuir com a principal premissa do Dia Mundial da Saúde: a garantia de saúde para todas as pessoas do mundo.

Mulheres negras traçam estratégias para incidir na saúde e no bem-estar das populações negras

Lideranças apoiadas pelo Fundo Baobá se especializam para criar estratégias de cuidados específicas para este segmento da população

Por Morgana Damásio*

 

“Esse é o produto do meu luto”. Magna Barbosa havia acabado de perder um filho quando decidiu se inscrever para a 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. “Eu precisava me recolocar no mundo novamente, não dava pra ser mais a mesma mulher que antes. Precisava deixar um outro tipo de legado e eu acho que a partida do meu filho foi isso”, partilha Magna, que é psicóloga, mestre em psicologia social e gestora pública. “Então eu precisava sobretudo me amar, eu era sim essa pessoa preta merecedora. Pensei no meu trabalho, nas coisas que eu faço e falei:  é isso aqui que eu vou fazer, é nisso que vou investir”, complementa. 

 

Magna Barbosa
Magna Barbosa

 

Desde 2009 ela é Coordenadora da Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Doméstica e Sexual de Suzano (SP), onde realiza um monitoramento das pessoas que chegam até o SUS por uma necessidade de saúde decorrente da violência. A ação é feita a partir da ficha de notificação nos Pronto Socorro e nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Magna explica que os/as pacientes iam embora e, posteriormente, não se sabia se o ciclo da violência havia se rompido. “Com o passar do tempo eu entendi que isso tinha um recorte racial forte, na sua maioria  as mulheres pretas e pardas eram as mulheres que estavam ali vivenciando as questões de violência em todas as gerações, desde muito pequenas, adolescentes e mulheres adultas e idosas. Era uma violência estrutural”.

A partir dessa percepção, Magna construiu o projeto Racismo e a interface com a violência doméstica na Saúde, que objetiva desenvolver ações de formação que possam impactar nas condições de saúde da população negra por meio da oferta de formações para profissionais do sistema público de  saúde. “Se você olhar para a maioria dos profissionais de saúde com nível superior, são pessoas brancas. O quanto isso não fica também impactando nas questões do atendimento das pessoas que sofrem violência?”, questiona.

Magna destaca que, a partir do apoio do Fundo, foi possível construir um instrumento que possibilitasse entender a interface entre violência e  racismo estrutural, apontando quantas mulheres vítimas de violência estão em atendimento, em acompanhamento ou que tiveram alta (ou não). Também foi elaborada uma classificação de risco  a partir das vulnerabilidades sociais e marcadores sociais que ajudam a organizar a prioridade no atendimento “para que haja manutenção da vida e da subjetividade dessas mulheres”, explica. Ela destaca que mulheres negras e transexuais estão mais vulneráveis, como apontam os indicadores sociais. 

O projeto é desenvolvido em 44 unidades de saúde e tem três etapas: o  monitoramento do cuidado, a capacitação e a implementação dos núcleos de prevenção à violência. Para a capacitação de qualificação e gestão foram desenvolvidos 5 encontros sobre temáticas da violência. “Ao invés  de eu ficar só conceituando o que é a violência, como ela acontece, eu vou trazendo as discussões do dia a dia, que foram dores que doeram em mim enquanto profissional de saúde no atendimento na UBS. Eu procuro trazer no cotidiano exemplos que as pessoas vão se identificando, cada encontro é uma temática diferente”, sinaliza. 

Em reconhecimento ao impacto que o projeto tem proporcionado, Magna recebeu neste ano o Prêmio Viva, iniciativa do Instituto Avon em parceria com a Revista Marie Claire, que busca reconhecer as práticas de pessoas que se destacam no cuidado, acolhimento e proteção das mulheres no Brasil. Ela também foi convidada a lecionar em uma faculdade. Sobre seu fortalecimento enquanto liderança, a partir da experiência do Programa, ela destaca: “Você reconhece o seu lugar e o tamanho da sua potência, isso ninguém mais te tira”.

 

“Precisamos quebrar um pacto de que a gente tem que dar conta de tudo”  

Eu estava emocionalmente debilitada, então uma companheira me falou assim: a militância não vai deixar de acontecer se você parar um pouco, ela vai continuar acontecendo e é saudável que dentro da militância algumas parem, outras retomem e a gente avança. É preciso que a gente se dê essa autorização”, compartilhou Mayne Silva, de Serra Grande (BA). Mãe solo, que em meio a pandemia experimentou ainda mais a sobrecarga dos 17 anos de militância, os 4 últimos como gestora comunitária de uma ONG. Sentiu que era o momento de fazer a transição de carreira e se dedicar às atividades como terapeuta. Mayne também é uma das contempladas no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco.

Para tornar esse sonho concreto, ela escreveu o projeto Novos espaços de poder, re-existir e seguir tecendo a rede. A iniciativa apoiou  processos formativos  e de aprofundamento nas habilidades terapêuticas, facilitação de processos comunitários e fortalecimento da atuação como profissional e liderança. Hoje se dedica ao estímulo do cuidado e autocuidado entre mulheres e ativistas, sobretudo outras mulheres negras. “ Eu uso as ferramentas para apoiar mulheres a tratarem suas dores, emoções e assumirem sua expressão, sua voz, sua potência, seu lugar no mundo”, diz.

Mayne explica que o fortalecimento da ampliação das ferramentas como terapeuta a fortaleceu para que  assumisse a sua voz e partilhasse seus escritos com o mundo. Já são três participações em publicações, um livro solo lançado e mais dois em planejamento, além de convites para festivais nacionais e fora do país. “É esse lugar que o Baobá me trouxe no encontro com outras mulheres e também nas formações terapêuticas: de assumir a minha imagem, a minha voz, a ancestralidade, mas também a arte como uma permissão de expressão”. 

Ela acredita que é preciso desmistificar essa ideia de mulher preta que precisa ser sempre forte. “É preciso quebrar uma corrente de que a mulher das comunidades, a mulher preta, pobre, dá conta de tudo sem se cuidar, porque ela tá ali pra se sacrificar. Para as lideranças isso ainda é ainda mais forte, eu vivenciei isso”, conclui a terapeuta.

 

“ A descoberta do quanto podemos ser potentes quando somos acreditadas é a mais significativa”  

“O que me impulsionou a me inscrever no Programa [de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco] foi o ineditismo de investir financeiramente em mulheres negras para que pudessem realizar projetos de alcance comunitário e/ou investir no desenvolvimento de suas carreiras”, explica Evania Maria, especialista em Medicina Comportamental e instrutora de mindfulness (atenção plena). 

Evania Maria

Evania também atua como educadora em saúde, e concretizou com o apoio do Programa, a pós-graduação em dor pelo Hospital Albert Einstein. Outro resultado do projeto foi a realização do seu desejo de difundir, por meio de um site, o potencial da atenção plena para a promoção da justiça social. Reativou também as atividades do Grupo de Estudos Reverter Conceitos, iniciado em 2017 com outros profissionais parceiros com o intuito de oferecer conhecimentos e técnicas para reduzir o preconceito implícito presente na cultura. 

A especialista aponta que o alto custo da formação em dor, que no Brasil ainda é bastante elitizada, é uma das causas  que contribuem para a falta de acesso ao tratamento. “A informação e a educação sobre dor tanto para profissionais de saúde como para a população em geral, são os pilares para ampliar o acesso. Pois, as pessoas estarão mais informadas sobre seus direitos e poderão pressionar o poder público para criação e/ou ampliação de políticas públicas que possibilitem o acesso ao tratamento da dor”, explica. Ela destaca ações estratégicas que vêm sendo desenvolvidas como o Programa de Reabilitação da Pós-Graduação em Dor do Hospital Albert Einstein, oferecido de forma gratuita; e o curso de Educação Continuada em Dor, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que possui um custo mais acessível para formação dos profissionais da saúde.

“Outras duas ações estratégicas que tenho trabalhado é, primeiro, a realização de programas de educação em dor para pacientes com dor crônica. Em segundo, em 2019, eu e o tradutor Nélio Schneider, traduzimos e adaptamos uma cartilha sobre dor, visando disponibilizar informações mais precisas e aumentar esse conhecimento entre a população”, comenta. De acordo com Evania, a cartilha é um material que oferece, em linguagem acessível, informações básicas sobre dor e formas de aliviá-la.

A especialista ressalta que devido às desigualdades sociais, a dor traz uma carga de incapacidade e sofrimento adicional para as pessoas de baixa renda que são as mais vulneráveis em termos de assistência à saúde e qualidade de vida. “A população negra em todas as faixas etárias é cotidianamente mais exposta a circunstâncias de estresse e violência, devido aos efeitos sociais, políticos e econômicos decorrentes do racismo estrutural”. 

Para a socióloga e instrutora de mindfulness já não se pode mais pôr em dúvida que, quando o estresse é constante e a pessoa não tem chances de reagir de forma adaptativa, ele se torna crônico. Isso leva a população negra a ficar mais suscetível a doenças e/ou agravamento de quadros clínicos decorrentes do estresse, como hipertensão arterial, dor crônica, diabetes, ansiedade e depressão. “Avanços de estudos no campo da medicina e psicologia relacionados aos efeitos do estresse na saúde explicam que o alto grau de ameaça que um indivíduo experimenta provoca nele respostas de estresse que se acumulam ao longo do tempo, levando eventualmente a uma má saúde mental e física”. 

A atenção à saúde mental foi também uma experiência vivenciada por Evania dentro do programa. “O edital surpreendeu, ele também proporcionou ações de autocuidado (as apoiadas poderiam investir seus recursos em serviços de saúde mental) e ofereceu formações com foco na cultura do autocuidado e da saúde mental”.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Desafios da Luta Quilombola no Brasil: Como as comunidades se articulam pela garantia dos seus direitos

Projetos de mulheres quilombolas trazem importância da coletividade e influência da ancestralidade no processo de lutas por mudanças sociais

Por Andressa Franco*

Lugar secreto para onde iam as pessoas escravizadas que fugiam das fazendas, minas e casas das famílias brancas coloniais, onde eram exploradas e sofriam maus tratos. Normalmente encoberto ou escondido em meio ao mato, como o mais famoso deles, o Quilombo dos Palmares. Essa é uma das definições encontradas no dicionário para a palavra “quilombo”.  Com o desafio de alcançar visibilidade e trazer as questões que pautam a luta quilombola no Brasil para o debate, é que os remanescentes dessas comunidades travam uma luta conjunta. 

Visando o aprimoramento das habilidades de liderança para darem contribuições ainda mais qualificadas na luta pelo direito à terra, Lucimar Sousa, Emília Costa e Tânia de Moraes, mulheres quilombolas, se inscreveram na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

 

Emília Costa
Lucimar Sousa
Tânia de Moraes

 

Coletividade e Ancestralidade 

A importância da coletividade e influência da ancestralidade na formação das atuais lideranças quilombolas e no processo de lutas por mudanças sociais, é um ponto em comum a ser ressaltado nos projetos de Lucimar, Emília e Tânia.

Maranhense de Pirapemas, mãe de oito filhos e quebradeira de coco, Lucimar Sousa decidiu apresentar o projeto “Mulher negra plantando sementes, cultivando redes de cuidado e colhendo justiça social”. Pensar formas de enfrentamento à violência contra a mulher, resgatar as práticas de medicina natural e da alimentação alternativa eram os principais objetivos da senhora de 64 anos. A ideia foi realizar oficinas com as mulheres do Quilombo Aldeia Velha voltadas para promoção da saúde fitoterápica, agroecologia e soberania alimentar.

“Esse é meu trabalho, faço com orgulho e vou em qualquer lugar do país, basta me chamar que vou fazer as oficinas, não tenho preguiça. Tenho vários cursos em reflorestamento, fitoterapia, a minha bagagem é bem grande”, afirma a maranhense. O projeto de Lucimar conseguiu implementar quintais produtivos que beneficiam nove famílias da comunidade, e que representam caminhos para garantir renda com a venda de hortaliças. Além de soberania alimentar e saúde popular aos desassistidos de políticas públicas. 

Com o recurso do Baobá, também foi possível instalar aviários e a implementação de estratégias de apoio emergencial a três comunidades quilombolas na região, ofertando roupas e outros itens básicos. Aparelhos eletrônicos também foram adquiridos a partir do Programa. “Foi um grande salto na minha vida ter ganhado este edital. Só tenho a agradecer, porque nesse tempo de pandemia eu não teria aguentado ver as famílias sofrendo sem poder alcançar algo, sem poder sair de casa”, relata Lucimar. Ela conta que no início não gostava da palavra liderança, devido ao medo das perseguições contra líderes comunitários. 

A quilombola ainda se dedica a oficinas de artesanato, especialmente das confecções de bonecas, cestos, tapetes. Também desenvolve oficinas voltadas para mulheres que colhem e vivem do coco babaçu. No Maranhão, muitas quebradeiras garantem o sustento da família através dessa prática. 

Lucimar não está sozinha. No projeto “Recontando nossas Histórias como instrumento de luta pelo Chão Sagrado”, Emília Costa se dedicou a viabilizar seu fortalecimento como líder, para representar melhor seu território. Além de fortalecer outras mulheres negras quilombolas que estivessem se descobrindo lideranças nos quilombos. Ela vive na comunidade quilombola de Santo Antônio do Costa, localizado no município de São Luiz Gonzaga, também no Maranhão. 

Articuladora do Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM) e da Articulação de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, Emília também atua no movimento Guerreiras da Resistência, voltado para o empoderamento feminino. Além disso, trabalha como auxiliar administrativa na Secretaria de Igualdade Racial do município. 

“O Programa me ajudou bastante, comprei muitos livros que me ajudaram. As formações que foram realizadas, foi tudo bem interessante pro meu desenvolvimento pessoal”, pontua. Ela diz que hoje se vê como uma liderança mais madura. Para isso, conta que se concentrou em leituras sobre o feminismo negro, lives, formações e entrevistas com anciãos para rememorar a ancestralidade da comunidade “a partir do chão em que pisam”.

Alguns dos resultados observados a partir do seu projeto, foram: a maior incidência de mulheres e jovens no fortalecimento da organização do território; promoção de reuniões no quilombo, no MOQUIBOM; na Articulação das Mulheres do Cerrado; participação em oficinas e formações; e da compra de um notebook como equipamento para se aprofundar nos estudos. “Esse era meu intuito, criar uma relação maior nos outros e também em mim, de pertencimento ao território”, explica Emília.

Já Tânia de Moraes propôs o projeto “Mulher Quilombola na Defesa dos Direitos e pela Vida!” focada no fortalecimento de mulheres quilombolas nas comunidades, com conversas, diálogos e vivências, resgatando os históricos de luta. Tânia pertence ao Quilombo das Ostras, localizado próximo ao município de Eldorado, em São Paulo. Mas, desde novembro de 2020, vive no Quilombo Sapatu, localizado a aproximadamente 35 km do centro da cidade de Eldorado. A base da economia da comunidade é a agricultura, o turismo e a venda de artesanato. As famílias locais se sustentam a partir da colheita de banana, arroz, feijão, milho e inhame.

Aos 30 anos, seu principal espaço de atuação hoje é a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (EAACONE), onde trabalha há sete anos. Uma entidade juridicamente constituída, sem fins lucrativos, que trabalha para que o artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal, cumpra os requisitos que dizem respeito ao direito à terra dos Remanescentes de Quilombo. Para isso, assessora as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira com o intuito de que se auto-identifiquem como quilombo, recuperem sua história e seus valores culturais e encaminhem a documentação aos órgãos públicos demandando o reconhecimento e a titulação coletiva de suas terras. 

Com toda a experiência acumulada na entidade, Tânia viu no Programa uma oportunidade para investir em sua própria formação e capacidade como liderança e contribuir de forma mais ativa nos territórios. O que inclui a defesa das ameaças que cercam esses territórios, como barragens, Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH), mineração, entre outros. “O meu projeto era voltado para me fortalecer enquanto mulher negra, sair um pouco da assessoria da EAACONE, e ter mais voz ativa fora, trazendo mais mulheres para fortalecer”, explica Tânia, que também integra o Movimento dos Ameaçados por Barragens (MOAB).  

 

Impactos da Pandemia nos Quilombos

A chegada da pandemia de covid-19 no Brasil trouxe à tona uma série de desigualdades que impactaram diretamente nas comunidades quilombolas. Esse cenário não poderia deixar de impactar no segmento dos projetos elaborados pelas mulheres quilombolas. Para Lucimar, foi essencial ficar ao lado das famílias do seu quilombo, apoiando durante os momentos difíceis da pandemia. 

Durante esse período ela quebrou a perna, e precisou ficar seis meses de cama. Foi um momento de adaptação para seguir com todas as suas atividades por meio da tecnologia, algo que não estava habituada. “O aprendizado foi um sucesso na minha vida, mexer com celular, computador, internet, conversar com pessoas que nunca vi do outro lado da tela”, comemora Lucimar. Uma das adaptações do projeto foi utilizar o recurso para as cirurgias e remédios. “Mesmo quando me quebro não fico parada, já me quebrei várias vezes e estou aqui, sinto orgulho da minha luta e de ser mulher negra”, completa.

Já Emília precisou remodelar a ideia das visitas a locais sagrados com os membros da sua comunidade. Devido à pandemia, o grupo foi bem menor. O mesmo aconteceu com as visitas planejadas para outros quilombos da região. “Fui adaptando, fazendo entrevista individual com os mais velhos; visitas com duas ou três pessoas nos quilombos vizinhos. Pra gente poder entender um pouco mais da nossa ancestralidade, criar uma relação maior de pertencimento”, explica. Um de seus objetivos era realização de leituras sobre feminismo negro, no que ela obteve sucesso. 

Apesar de não ter sido possível participar de diversos encontros de mulheres negras devido à pandemia, a liderança conseguiu levar seis jovens do seu território para um Encontro de Juventude do MOQUIBOM. O período de isolamento também deu a Emília a oportunidade de adotar a prática do autocuidado, o que também aprendeu entre as trocas com as mulheres que conheceu através do Fundo Baobá. “Eu percebi que se eu não cuidar de mim, eu não vou estar bem para cuidar do próximo”, pontua.

As comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, onde Tânia vive, adotaram medidas sanitárias, promovendo o controle de acesso de visitantes e turistas. Elas continuam na luta pelo andamento da regularização fundiária de suas terras. Tânia conta que a EAACONE em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) apoiou as comunidades através das licenças das roças tradicionais solicitando que elas fossem autorizadas em caráter de urgência. “A gente tem esse problema do racismo ambiental, porque você tem que pedir uma licença pra roça, um tempo para plantio. E quando não tem essa licença muitas lideranças acabam fazendo assim mesmo, e mesmo em terra coletiva, acaba tendo uma multa super alta”, explica.

Mas, apesar da pandemia, Tânia não deixou de seguir com os planejamentos do seu projeto. Ela realizou pesquisas, através de aplicativos de mensagens, com mulheres das diferentes comunidades, e produziu um diagnóstico dos principais problemas enfrentados por essas mulheres. Considerando as dificuldades de acesso à internet nesses espaços, não alcançou o número de mulheres desejado. A própria Tânia hoje tem melhor acesso devido ao recurso do Baobá, contudo percebe através da pesquisa o interesse dessas mulheres de ocupar os espaços de coordenação e articulação dos seus quilombos.

Já as rodas de conversa presenciais nas 13 comunidades em que atua, não ocorreram. Ela então focou nas pesquisas, leituras e no resgate histórico. “Mesmo eu tentando fazer um projeto individual, o projeto não é de hoje, é um trabalho de luta e resistência que já vem sendo construído desde 1991, e eu consegui trazer essas lembranças”, diz. Entre outros resultados, está a participação no Fórum Povos de Comunidades Tradicionais; atuação organizada no combate ao coronavírus, com distribuição de cestas básicas, produtos de limpeza, máscaras e reivindicação pela prioridade na vacina.

Outro feito de que se orgulha no período da pandemia, foi a construção do Protocolo de Consulta Prévia dos Territórios Quilombolas do Vale do Ribeira – SP, lançado no dia 20 de novembro de 2020, Dia da Consciência Negra. Os Protocolos de Consulta e Consentimento são documentos elaborados por cada povo indígena ou comunidade tradicional sobre a forma e processo em que querem ser consultados, de modo que respeite suas culturas, tradições e organização social. “Neste 20 de novembro (2021) a gente fez um encontro por município para entregar o protocolo em mãos. Foi uma demanda que aconteceu mesmo na pandemia, com dificuldade, mas que hoje a gente pode se orgulhar”, acrescenta.

 

Desafios da Luta Quilombola no País

É consenso entre as representantes quilombolas contempladas pelo Programa, que o direito à terra é o principal desafio a ser alcançado . Hoje, o Brasil soma mais de 6 mil quilombos, e aproximadamente 16 milhões de remanescentes. Apesar dos obstáculos, os quilombos sempre mantiveram sua identidade étnica e cultural voltada à preservação do meio ambiente e à manutenção das práticas tradicionais herdadas de seus ancestrais. 

A experiência com o Fundo Baobá inspirou Lucimar, por saber que existem mais companheiros de luta espalhados pelo país. “A gente não pode parar nos territórios, nos quilombos, com a demarcação da terra. Precisamos de políticas pública, os negros, os pobres estão sofrendo muito por causa do latifúndio”, destaca.

O mesmo vale para Emília, que enxerga a militância como intrínseca à sua vida pessoal. “A gente não tem vida pessoal, nossa vida pessoal é lutar pelo território livre, pela libertação dos povos, não tem separação. O nosso principal desafio é a titulação do território. Esse é um entrave crucial”. 

A perspectiva de Tânia é de esperança, principalmente a partir da juventude presente na luta pelo território. “O fortalecimento da base é fundamental. Nada impede que a juventude saia, estude e volte para ajudar e assessorar as comunidades dentro do território. É um avanço grande”, afirma. Enquanto isso, se dedica a levar para as comunidades onde atua o conhecimento sobre seus direitos. 

Mas Tânia não tira a atenção das ameaças que rondam as comunidades do Vale do Ribeira, por ser uma região rica em biodiversidade. “Nós, lideranças, nos encorajamos para ter nosso direito de terra, plantio, roça, tradição. Não é para ter aquele olhar que todo quilombola tem a mesma casinha de barro, a mesma vivência, que não pode melhorar seu desenvolvimento de vida. O que fica é a valorização, a cultura, a vivência dos mais velhos, a medicina, e isso é um fortalecimento rico”, finaliza.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Lideranças negras se fortalecem e criam redes nacionais e internacionais para debater encarceramento de mulheres negras e luta antiproibicionista

Projetos chamam atenção para o impacto da “guerras às drogas” e o encarceramento em massa de mulheres negras e pobres no país

PorAndressa Franco*

Quando se discute encarceramento e abolicionismo penal a partir dos atravessamentos que há em relação às mulheres negras, alguns dados chamam atenção. O relatório “Mulheres em Prisão: enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal”, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), aponta que 68% das mulheres encarceradas são negras e 50% têm apenas o ensino fundamental. O estudo lançado em 2019 também mostra que a maioria é mãe, não possui antecedentes criminais, estava envolvida com atividades relacionadas ao tráfico de drogas e possui dificuldade de acesso a empregos formais.

Duas pesquisadoras que fazem esse debate, Ingrid Farias e Enedina do Amparo, foram  contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

 

Trajetórias potentes e a luta por uma legislação menos desigual 

Com atuações que se intercalam entre trabalho, militância e vida pessoal, a pernambucana Ingrid Farias integra a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. Articuladora política de pessoas e recursos para defesa de Direitos Humanos, voltada em especial para mulheres e população negra, Ingrid viu no programa uma oportunidade de qualificar sua atuação enquanto ativista negra no advocacy. O objetivo foi realizar incidência política e influenciar na construção de alternativas ao atual modelo de política de drogas e segurança pública no âmbito do legislativo federal e estadual.

“Esse projeto mistura o tempo inteiro a minha ação política dentro dos coletivos e organizações que eu faço parte, assim como no espaço político profissional de acompanhamento da construção da legislação brasileira e da formulação das políticas públicas no país”, afirma a ativista. 

Também atuando na área dos Direitos Humanos, Enedina do Amparo tem uma trajetória pessoal e acadêmica extensa. Doutoranda em Ciências Sociais na área de Antropologia Social pela Universidade Católica de São Paulo, ela é mestra em Ciências Sociais na área de Antropologia, com ênfase em gênero, raça, agência criminal negra e geografias carcerárias, pela mesma universidade. Em 2015 defendeu a dissertação “Rés negras, Judiciário branco: análise da interseccionalidade de raça, classe e gênero na distribuição da justiça em São Paulo”. Advogada desde 2009, atua junto aos movimentos sociais urbanos e com organizações populares dos movimentos negro e feminista. Ela também é co-fundadora do Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas ADELINAS.

Enedina nasceu em Ituberá (BA), chegou em São Paulo em 1990, onde trabalhou no emprego doméstico, foi balconista, babá e enfrentou o racismo e a xenofobia por ser nordestina. Hoje, aos 47 anos, ela conta que se orgulha muito de suas origens: um pai trabalhador rural, que perdeu para a Covid-19 em janeiro de 2021; e uma mãe que criou nove filhos lavando roupa para as elites – sua primeira referência de ativismo.

Na faculdade, que começou em 2004 com apoio da ONG Educafro, Enedina já fazia debates que denomina “antiprisionais” e “antipoliciais”. Mas, foi a partir do primeiro estágio, no Ministério Público (MP – SP), que passou a observar a realidade do sistema de justiça mais de perto. O trabalho era na Vara da Infância e Juventude. “Ali eu vi a criminalização da maternidade negra… a produção de subjetividades submissas. Todas as frases utilizadas pelos promotores revelavam o olhar do poder judiciário e a visão patológica da mulher negra como mães de bandidinhos”, relata Enedina. Na época, a própria advogada sofria um tratamento racista e machista por parte dos promotores e até mesmo de outros estagiários.

A liderança permaneceu por um ano como estagiária no MP, e usou esse espaço para hackear o sistema como podia. Dava informações para essas mães, acompanhava até a Fundação Casa, orientava sobre como poderiam se comportar nas audiências.

 

Os percalços e mudanças de rotas geradas pela pandemia

Dentre as atividades com apoio do Fundo Baobá, Ingrid participou do processo da constituição da Frente Parlamentar Feminista Antirracista no Congresso Nacional. A liderança afirma que a iniciativa tem acompanhado hoje de forma mais organizada, projetos de lei ligados ao ataque às vidas e direitos das mulheres. 

No entanto, com a chegada da pandemia, foi necessária uma adequação para repensar os planos. Entre esses planos, estavam algumas idas à Brasília: “é onde acontece o processo de institucionalização da nossa política, do acesso a direitos”, pontua Ingrid Farias. Mas novas estratégias foram aplicadas por meio de acompanhamento remoto. Assim, ela estreitou diálogos com deputadas feministas e participou de audiências públicas e reuniões de comissões da Câmara, sempre de forma virtual.

Com uma carreira construída em torno da agenda antiproibicionista, Ingrid destaca que o momento atual é extremamente desfavorável para perspectivas de construção de alternativas dentro do campo da segurança pública e da política de drogas. Para a ativista, a atual conjuntura nacional e institucional não dá oportunidade de avançar com esses debates. Ainda assim, destaca que há um avanço mínimo no que diz respeito ao uso terapêutico da cannabis, por exemplo.

“Tem muitas mulheres que são de periferias e não têm condições de fazer compra de óleos caros que são importados de outros países. E esse trabalho de advocacy tem ajudado a avançar, especialmente com o direito das mães de crianças que precisam fazer o uso terapêutico da maconha para ter uma sobrevida”, explica. 

Ingrid ainda chama atenção para as propostas que atingem diretamente a população negra brasileira e que tem avançado institucionalmente. Como por exemplo os softwares de reconhecimento facial, propostas de aumento de penas e do encarceramento.

Assim como para Ingrid, a pandemia também afetou o projeto inicialmente proposto por Enedina. A advogada investiu em terapia em decorrência do período. Além disso, estava previsto um intercâmbio para desenvolver o repertório linguístico, o que precisou ser modificado. Começou então um intercâmbio virtual com estudantes da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara. “Falando a língua do colonizador a gente entende as formas sutis e explícitas do racismo; analisa arquivos e dados estatísticos sobre assassinatos de mulheres negras no Brasil e fora do Brasil; acessa artigos em inglês e estabelece novas parcerias, sobretudo com as mulheres norte americanas feministas negras”, defende.

 

Criação de redes internacionais

Com o objetivo de criar redes e pensar quais são as produções de resistência que existem no campo da segurança pública e da política de drogas em outros países, Ingrid Farias também fez cursos de línguas. Com foco especialmente na América Latina, a liderança pretende expandir sua luta para além do Brasil.

Enedina do Amparo, por sua vez, se inscreveu no Programa de Aceleração justamente pensando na perspectiva de internacionalização da sua atuação. Refletindo sobre a própria trajetória, ela sentiu a necessidade de resolver algo que classifica como um trauma pessoal: o conhecimento da língua inglesa. E foi a fim de desenvolver o segundo idioma que se inscreveu no edital.

Para a ativista, hoje os padrões de exclusão são diferentes, e podem ser medidos no acesso ao treinamento da língua estrangeira. “Bell Hooks nos convida a pensar que, ao mesmo tempo em que a língua oprime, ela é o lugar onde nos fazemos sujeitos da nossa própria história. Apenas 5% da população brasileira sabe se comunicar em inglês. E, embora eu não tenha dados, as mulheres negras devem ser as últimas da fila”, comenta. Enedina está agora no terceiro módulo do curso de inglês, já em nível pré-intermediário. O objetivo é pensar a luta antiprisional e antipolicial fora do país.

 

Fortalecimento das lideranças

Atualmente, Enedina é assistente de acusação no Ministério Público no processo criminal sobre o assassinato de Luana Barbosa – mulher negra, lésbica, mãe e periférica, que foi espancada e morta por três policiais militares em Ribeirão Preto (SP). Com a participação no programa, a advogada conta que conseguiu fortalecer e construir novas redes, junto a este caso, em que ela é a única advogada negra atuando.

A contratação de uma assessoria em segurança digital também foi um destino para os recursos de apoio à advogada, que em 2019 sofreu um ataque nas redes sociais. Assim, ela investiu no conhecimento para se proteger nesse ambiente; Contratou uma assessoria de marketing para a produção de conteúdo nas redes sociais, com objetivo de ampliar o debate sobre abolicionismo penal e encarceramento em massa; e também se dedicou a organizar um livro que pretende lançar em 2022, fruto da sua dissertação de mestrado.

Para o futuro, a advogada vislumbra um PhD fora do país. Outra pretensão é a publicação de um livro em inglês, e tradução de seus textos para o idioma, como uma forma de fazer o debate ultrapassar as fronteiras.

Ingrid também relata que nestes 18 meses do projeto Baobá ela pôde acessar muitas oportunidades de qualificação, que influenciaram diretamente na sua atuação técnica e profissional. “Eu participei de formações dentro de grandes instituições do Estado como o Senado e a Câmara Federal. Então acho que a maior possibilidade que o edital nos deu foi tempo. Tempo para que a gente pudesse se dedicar a outras coisas e não estivesse só naquela luta eterna que nós mulheres pretas estamos pela sobrevivência”, finaliza.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

Mulheres negras se reinventam a partir de apoio no enfrentamento ao racismo religioso

Ana Bartira e Mãe Jaciara encontraram no apoio do Fundo Baobá um respiro para seguir na luta contra o racismo religioso e se fortalecerem como lideranças

Por Jamile Araújo*

É no contexto de enfrentamento ao racismo religioso e intolerância religiosa que as histórias de Jaciara Ribeiro dos Santos, Iyalorixá do Axé Abassá de Ogum em Salvador (BA), e Ana Bartira da Penha Silva, assistente social, membro da Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (Renafro)  e do Centro de Estudos Afro-Brasileiro Ironides Ribeiro (CEABIR), de Niterói (RJ), se interseccionam. As lideranças negras que atuam no segmento de enfrentamento ao racismo religioso foram contempladas pela 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

Apesar da laicidade do Estado brasileiro, e da garantia na Constituição de 1988 da liberdade religiosa, na prática essa liberdade está longe de ser plena. Nos últimos anos no Brasil houve aumento das denúncias de intolerância religiosa no Disque 100, canal de denúncias de violação de direitos humanos. Até outubro de 2021 foram realizadas 462 denúncias, um aumento de 90,9% em relação ao ano de 2020, onde 243 denúncias foram realizadas. Os números são da Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos (ONDH), ligada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH)

Manifestado de diversas maneiras, desde depredações, incêndio de terreiros e violência física, ou assédio e perseguição em ambiente de trabalho e escolar, o racismo religioso está presente na vida dos povos e comunidades de axé. “O racismo religioso condena a origem, a existência, a relação entre uma crença e uma origem preta”, afirma Sidnei Nogueira, professor e Babalorixá, em seu livro “Intolerância Religiosa”, da coleção Feminismos Plurais. Ele defende que não se trata apenas do eixo religioso, que o racismo não incide apenas entre as pessoas pretas que praticam as religiões de matriz africana, mas sobre as origens, práticas e crenças da religião.  “É provável que o termo ‘intolerância religiosa’ seja mais aceito por conta dos mitos da democracia racial e da democracia religiosa (laicidade)”, acrescenta. Em seu livro, Sidnei também analisa os dados do disque 100 dos últimos anos, e confirma que as denúncias de intolerância contra pessoas das religiões de matriz africana correspondem à maioria das realizadas.

“Nossos passos vêm de longe”

Mãe Jaciara explica que desde os três anos de idade está dentro do candomblé, mas que se tornou ativista da luta contra a intolerância religiosa a partir da morte de sua mãe, a Iyalorixá Gilda de Ogum. Fundadora do Axé Abassá de Ogum, Mãe Gilda sofreu um infarto fulminante e faleceu, em decorrência do racismo religioso, em 21 de janeiro de 2000. “A Igreja Universal do Reino de Deus pegou uma imagem dela, que saiu na revista ‘Isto é’,  e colocou na Folha Universal com a tarja preta no rosto escrito ‘macumbeiros, charlatões lesam o bolso e a vida de clientes’”, relata.

Ela  também cita um ataque ao terreiro de candomblé e a sua mãe. “A Igreja Assembleia de Deus aqui na comunidade, invadiu o terreiro e tentou bater com a Bíblia na cabeça de minha mãe. Então são 21 anos da morte dela, e 21 anos que eu assumi esse papel de filha biológica, e que entendi que precisava denunciar esse racismo religioso”. Mãe Jaciara ressalta que foi um processo muito difícil,  porque teve que assumir o terreiro enquanto religiosa da comunidade e também se tornar uma mulher política ativista, sem nenhuma formação acadêmica ou preparação. “Mãe Jaciara é esta mulher que se reinventou a partir da dor da morte da mãe biológica”, diz.

Em sua trajetória no enfrentamento ao racismo religioso, Mãe Jaciara destaca a importância do diálogo inter-religioso bem como a necessidade de fortalecer a auto estima dos membros do candomblé. “Você não pode falar da sua dor só para o povo de candomblé, a gente deve levar isso para os espaços onde acomete essa dor para nós. Faço parceria com espíritas, com evangélicos, com pastores e padres. Tenho um trabalho de fazer roda de diálogo dentro do terreiro de candomblé, para orientar os nossos jovens a saber denunciar”, declara.

Ana Bartira Silva, conta que cresceu e se tornou adulta acompanhando a atuação de sua mãe, que foi militante do movimento negro na década de 80. “Ela participou do Centro de Estudos Brasil África (CEBA) e do Agbara Dudu, considerado o primeiro bloco afro do Rio de Janeiro. Além disso, fundou o CEABIR, organização que tem o combate ao racismo, machismo, sexismo, homofobia, violências e todas as formas de intolerâncias, como missão”. Ela explica que o CEABIR (Centro de Estudos Afro Brasileiro Ironides Rodrigues) é uma organização não governamental coordenada por mulheres negras, criada a partir da indignação e revolta após a chacina que vitimou sete moradores na favela da Coreia, no bairro da Engenhoca, em Niterói (RJ), no ano de 1989. “Fui me inserindo e influenciada desde a infância por minha mãe. E, atualmente, ainda continuo com ela à frente do CEABIR”, afirma. 

De acordo com Ana Bartira, sua participação na militância com os jovens de terreiros se iniciou por meio do Ogã José Marmo (in memoriam), que fundou a Renafro, motivado pela necessidade de criar um espaço público, político e democrático para jovens. O objetivo era proporcionar que estes jovens ocupassem o seu lugar de fala no que diz respeito à promoção da saúde, no seu sentido ampliado, no espaço de terreiro. “Em agosto de 2006 realizamos o primeiro Encontro Estadual da Juventude de Terreiros – RJ. Participei deste encontro como convidada, por ser uma jovem de terreiro. A partir desta data comecei desenvolver atividades e ações com esse público”.  

 

“Ajuda mágica para seguir”

Mãe Jaciara compartilha a sua felicidade em ter tido um projeto apoiado pelo Fundo Baobá e afirma que esse apoio é algo mágico, que vai muito além do apoio financeiro. “Ele vem como uma ajuda mágica que me deixou contaminada positivamente para seguir. Dá uma sustentabilidade, uma ferradura e arma na mão para eu seguir”, ressalta.

Ela relata que, após 21 anos de luta, percebeu que precisava sair do espaço do terreiro e ir para o mundo. “O projeto me deu essa possibilidade ao ser acolhida e escolhida em uma seleção que teve muitas mulheres inscritas. Já dá uma grande emoção ter sido escolhida para poder contar minha história e empoderar outras mulheres”. A Iyalorixá acredita que o apoio possibilitou como consequência, enquanto uma mulher de candomblé negra, o fortalecimento de outras mulheres em outros espaços.

Entre as ações realizadas durante a execução do projeto “Iyá Omi: O legado ancestral da Iyalorixá Jaciara Ribeiro na luta contra o racismo e a intolerância religiosa”, escrito por Mãe Jaciara, estão: o lançamento do coletivo nacional Iya Akobiodé – mulheres que transformam; lives do programa Candomblé e seus Caminhos; Campanha Mãe Gilda de Ogum 21 anos de Memória Ancestral, realizada todo dia 21 de cada mês; construção, diagramação e impressão da cartilha “Akoberê Aiyê – Racismo Ambiental e religião de matriz africana”; realização do II Festival de Oxum; reuniões de articulação política; articulação com Quilombo Caipora; entre outras atividades. 

Ana Bartira conta que, para ela, uma das etapas mais desafiadoras foi fazer o Plano de Desenvolvimento Individual, pois sua experiência sempre foi coletiva quando se trata de editais e apoios. “Então pensar um plano a partir da minha necessidade como mulher negra militante, ter a leitura do que o Programa tem para me oferecer, a partir da liderança, foi muito importante, desafiador e necessário”, diz.

Ana escreveu o plano no contexto das suas necessidade profissionais, e antes da pandemia seu objetivo era centrado na qualificação para ampliar a sua atuação política junto ao seu coletivo. A assistente social conta que uma das lições aprendidas é que “dentro de um todo é preciso nos colocar como prioridade também, pois ajuda muito na nossa saúde física e mental”.

Ao longo do Programa, Ana Bartira participou de diversas atividades: formações, oficinas, lives, rodas de conversa, cursos, podcast, atos e manifestações. “Nesses encontros tivemos a oportunidade de dialogar com expressivas intelectuais negras, dentre algumas delas: Sueli Carneiro, Érika Malunguinho, Lúcia Xavier, Magali da Silva Almeida, a jornalista Flávia Oliveira, Márcia Lima, Jurema Werneck”. A partir de sua participação no programa, um importante fruto foi conseguir transformar o CEABIR num Ponto de Cultura. Hoje o coletivo tem realizado palestras sobre cidadania, ancestralidade, identidade cultural, racismo e história afro-brasileira, oficinas de percussão, dança afro-brasileira para jovens, adultos, crianças e idosos.

 

“Sou como a haste fina que qualquer brisa verga, mas nenhuma espada corta”

A pandemia de Covid-19 gerou consequências no desenvolvimento das ações previstas nos planos das lideranças. Ana Bartira diz que mesmo com as mudanças na programação, o suporte dado pelo apoio do Baobá foi importante para que ela enfrentasse o período. “A bolsa foi fundamental para atravessar este período de desemprego, fome, morte e adoecimento de pessoas por sequelas da covid-19. Pois apesar disso tudo, consegui manter minha saúde mental, física, emocional”, reforça.

Entre as dificuldades encontradas por Ana estavam o acesso a internet e a falta de domínio da informática. “Me reinventei em meio a pandemia, a fim de manter as atividades dos coletivos nos quais estou à frente. Apesar dos desafios encontrados, consegui boas articulações com outras lideranças negras, com jovens de terreiros e alcancei outros públicos nas redes sociais”, relata.

“Foi frustrante para mim a pandemia ter chegado, porque eu tive que reestruturar totalmente o projeto”, destaca Mãe Jaciara. Ela diz que, como a proposta era ir presencialmente em locais de vulnerabilidade, em comunidades quilombolas, comunidades de terreiro, o isolamento social impossibilitou essa interação. “Foi muito ruim porque tivemos que estar silenciadas, foi através desta plataforma, do notebook, do celular, dessas redes sociais que a gente conseguiu fazer alguma coisa. E também  ter de lidar com essa nova ferramenta, acho que não atingi muitas mulheres que eu queria, porque muitas comunidades não tinham acesso à internet”, comenta. 

A Iyalorixá diz ainda que mesmo assim foi interessante, porque não se deixou abalar psicologicamente com a frustração e a interação virtual com outras mulheres contempladas no edital a fortaleceu. “Achei que o Baobá foi muito feliz nos temas que foram trazidos para gente dialogar. O racismo, a intolerância religiosa, a violência contra mulher, e outros assuntos que deixou as pessoas mais conectadas umas com a outras”. 

Ambas destacam que a pandemia despertou o olhar para algumas necessidades como o resgate do autocuidado, construção e fortalecimento de espaços coletivos, acolhimento, escuta, fortalecimento de laços. Sobretudo, a percepção de que quando cuidam de si, estão cuidando também de outras. 

 

“Aprender a ler pra ensinar meus camaradas”

“O Baobá ficou tatuado em minha mente como algo projetor, como uma flecha para eu voar longe”, diz Mãe Jaciara sobre a sua participação no Programa. Ela conta que esta foi a primeira vez que teve apoio de um edital desse tamanho.

Mãe Jaciara está dando continuidade aos projetos. Em setembro foi inaugurado o primeiro terreiro de candomblé dentro do Quilombo Caipora, onde também serão construídas 16 casas para 16 mulheres que transformam a vida de outras mulheres. “A minha vontade é que essas 16 mulheres que transformam o mundo, possam realmente ser essa força de união para uma estar cuidando da outra”. 

Ana compartilha que se sente orgulhosa e emocionada por ter participado do Programa, considera que agregou muito conhecimento, oportunidade, experiência e troca. “A participação no Programa potencializou meu processo de desenvolvimento de habilidades de liderança. Fortaleceu minha capacidade de produzir ideias, conhecimentos, leitura política e inovações, que dão sentido ao verdadeiro ‘aquilombar-se’”.

Outro ponto levantado por ela é o de reconhecer que o trabalho que realiza enquanto militante deve ser valorizado. “Entender que é um trabalho profissional e que toma, de forma expressiva, grande parte dos meus dias, fortalece em mim a necessidade de reconhecer quem eu sou, o que eu desenvolvo, minha responsabilidade e capacidade no processo de formação da juventude negra”, pontua.

Ana escreveu  seu trabalho de conclusão de curso da Especialização de Direitos Humanos, Saúde e Racismo: Questão Negra, do Departamento de Direitos Humanos, Saúde e Diversidade Cultural da Escola Nacional de Saúde Pública (DIHS/ENSP) sobre o programa do Fundo Baobá. “No trabalho intitulado ‘O Programa de Aceleração de lideranças Femininass Negras Marielle Franco: potencialização do processo de empoderamento das mulheres negras’ analisei como este Programa contribuiu no processo de empoderamento das ativistas negras contempladas no período de 2020 a 2021”. Ela mapeou as atividades das ativistas negras inscritas, buscando compreender como elas contribuíram para o os processos de continuidade de militância e liderança negra. 

Mãe Jaciara e Ana afirmam terem saído fortalecidas do Programa, qualificadas e impulsionadas a ir além e construir novos projetos. “Até hoje esqueço e acho que ainda estou sendo apoiada pelo Baobá e pelo edital Marielle Franco, mas não no financeiro, e sim nessa contaminação, dessa vitamina, que ficou em mim. Parece que eu tomei uma injeção e está no meu DNA, que é acreditar que nós mulheres pretas, especialmente de candomblé, somos mágicas, somos capazes de transformar as nossas vidas e de outras mulheres”, finaliza Mãe Jaciara.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.