“É nós por nós”: 25 anos de Conaq e de luta pela sobrevivência quilombola

No dia 12 de maio, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) celebrou 25 anos de existência. No dia 14 de maio, durante a live Diálogo Intergeracional: avanços e retrocessos na luta pela terra e território, que celebrou as duas décadas e meia de histórias e lutas da Coordenação quilombola, a educadora, mestra em Políticas Públicas e Gestão da Educação, doutoranda em sociologia e coordenadora executiva da Conaq, Givânia Maria da Silva, fez questão de parabenizar o movimento: “Salve a Conaq! Viva a todos que vieram antes, viva os que estão e os que virão. A Conaq somos todos nós. Não é de um grupo, não é de uma comunidade, é do povo brasileiro, é um patrimônio do povo negro e de todos nós”. 

Live comemorativa de 25 anos da Conaq

Muito antes de ser oficializada em 1996, a trajetória da Conaq iniciou na década de 1970, mais precisamente no estado do Maranhão, conforme relembra a tecnóloga em gestão ambiental, educadora popular e coordenadora executiva da Conaq no Maranhão, Célia Pinto: “Maranhão foi o estado pioneiro na identificação das comunidades quilombolas no país, através do Centro de Cultura Negra (CCN), que fazia um levantamento da população negra rural”. Segundo Célia, esse levantamento acabou gerando um projeto chamado “Vida de Negro”, que existe até hoje, e na época foi o responsável pelo mapeamento das comunidades negras rurais do Maranhão.

Como resultado desse mapeamento ocorreu, no ano de 1986, o 1º Encontro de Comunidades Negras Rurais: Quilombos e Terras de Preto no Maranhão. Célia Pinto faz questão de lembrar que o encontro aconteceu dois anos antes da Constituição Brasileira ser promulgada e muitas das reivindicações apresentadas pela população quilombola no encontro ajudaram a pautar medidas e decretos de proteção. “Naquela época já se começava a se pensar em políticas para essa população.”

Célia Pinto, tecnóloga em gestão ambiental, educadora popular e coordenadora executiva da Conaq no Maranhão

O Maranhão realizou mais quatro encontros estaduais de quilombolas incluindo resultados do mapeamento de comunidades negras rurais que ocorriam em outras regiões do país, com a apoio de outras instituições e movimentos, como o Movimento Negro Unificado (MNU). Até aquele momento 412 comunidades quilombolas eram conhecidas. O exercício de mapeamento e reconhecimento culminou no 1º Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado em Brasília, no ano de 1995. Durante o evento foi criada a “Comissão Nacional Provisória das Comunidades Rurais Negras Quilombolas”.

Cartaz do “1º Encontro Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas”, em Brasília em 1995

No ano seguinte, 1996, aconteceu o segundo encontro nacional, dessa vez na cidade de Bom Jesus da Lapa, na Bahia, e foi justamente lá que a Comissão Nacional Provisória deu lugar à Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas, a Conaq. “Como diz Socorro Guterres, a Conaq nasceu em Bom Jesus da Lapa, mas ela foi gestada no Maranhão”, em complemento, Célia Pinto brinca “e eu tive o privilégio de participar dessa gestação desde o início”.

Atualmente, a Conaq está presente em 24 estados e, a partir do processo de identificação e visibilidade das comunidades quilombolas, articula um universo com mais de 3.500 comunidades, em todas as regiões do país. 

Se Célia Pinto teve o privilégio de participar da gestação da Conaq, até chegar a coordenação executiva da mesma em 2011, ela também esteve presente nas principais conquistas da coordenação para a população quilombola brasileira, como a sanção do decreto 4.887, de 20 de novembro de 2003, que regulamenta o procedimento para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação e titulação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos. 

Quinze anos depois desta importante conquista coletiva, a Conaq se viu lutando contra o Supremo Tribunal Federal (STF) para manter a constitucionalidade deste decreto: “Foi um processo muito difícil pra gente, muito doloroso. Nós fizemos várias idas a Brasília, várias mobilizações, várias caravanas e quando chegávamos lá, na hora, a votação era suspensa”, relembra Célia. Finalmente, no dia 8 de fevereiro de 2018, o STF decidiu que o decreto era constitucional: “Não foi por unanimidade não! Porque ainda teve dois votos imparciais e um voto contrário, mas no final das contas nós conseguimos que o STF votasse como constitucional”, lembra Célia.

Para a coordenadora executiva, além da importância de manter as demarcações e o reconhecimento das terras quilombolas, a mobilização da Conaq por essa causa gerou uma grande visibilidade para o movimento: “Nós tivemos parcerias de várias organizações, tanto políticas como jurídicas e também de comunicação. Nós elaboramos campanhas e tivemos o apoio de vários artistas”. A campanha citada por Célia é a mobilização “O Brasil é Quilombola! Nenhum Quilombo a Menos!”, que contou com o apoio e a participação de atores globais como Ícaro Silva, Sérgio Malheiros, Letícia Colin e Sophia Abrahão, além de lideranças ativistas como a professora Vilma Reis, a coordenadora geral da ONG Criola, Lúcia Xavier e a jornalista e apresentadora Maria Paula de Andrade, entre outros: “Até então, a gente vinha fazendo essas lutas, vinha fazendo esses enfrentamentos, mas muito ainda na invisibilidade. Essa questão da votação fez com que a gente também pudesse ter essa visibilidade mais pra fora, até internacionalmente. Isso pra mim foi um marco muito importante”.

A Conaq e a Covid-19

Ao longo dos 25 anos de atuação a Conaq sempre teve que lidar com questões envolvendo a política de demarcação e reconhecimento de terras quilombolas; racismo ambiental mas,  no ano de 2020, a população quilombola teve que enfrentar um novo e imenso desafio, a pandemia do novo coronavírus. Segundo dados apresentados pela própria Conaq, em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA), com base no monitoramento das secretarias estaduais de saúde do país, até o dia 6 de maio deste ano foram confirmados 5.345 casos de Covid 19, em 21 estados e um total de 272 óbitos em 19 estados, sendo o Pará o recordista com 80 mortes, seguidos por Rio de Janeiro (42) e Amapá (35). Para Célia, os números ainda não representam a totalidade: “Para gerar esse boletim, nós solicitamos o apoio das lideranças. Eles pegam os boletins com as secretarias municipais, mas, infelizmente, não são todos os municípios que fazem isso. Tem estados que a gente tem mais facilidade, tem estado que a gente tem mais dificuldade, inclusive de reconhecer a população quilombola como sujeito de direito. Portanto, sabemos que mesmo esses dados que a gente tem dentro da nossa plataforma, são dados que, na verdade, não são reais. Infelizmente há muitos mais mortos”, lamenta.

Aliás, foi conquista da Conaq incluir a população quilombola como grupo prioritário no plano nacional de vacinação, através da Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPF) 742/2020, votada e aprovada pelo STF. Até o momento, apenas 9,4% da população brasileira foi vacinada contra a Covid-19 e isso, obviamente, reverbera nas comunidades quilombolas: “Do total de vacinas que estavam destinadas para a população quilombola no Maranhão, veio apenas 63%. Portanto, o número de vacinas disponibilizadas não condiz com a realidade. Ainda mais considerando que os dados que o governo possui, a respeito das comunidades quilombolas, são de 2010, são 11 anos de defasagem”, frisa Célia, que ainda revela outra triste constatação em relação à vacinação da população quilombola no estado do Maranhão: “Aqui estima que temos em torno de 1.500 comunidades quilombolas espalhadas em 117 municípios. Porém, apenas 90 municípios chegaram a receber doses de vacinas, e destes, três informaram que não têm população quilombola, mas mesmo assim receberam vacinas para vacinar quilombolas”.

Equipe da Conaq em Brasília para a “Arguição de Descumprimento de Direito Fundamental (ADPF) 742/2020”, que incluiu a população quilombola como preferencial no plano nacional de vacinação contra à Covid-19 | Foto: Walisson Braga

Diante de todos esses entraves, Célia Pinto revela de onde vem a força da Conaq para lutar cada vez mais pelas comunidades quilombolas no país: “Como costumamos dizer por aqui, somos sempre nós por nós! É um cuidando do outro, buscando os nossos saberes ancestrais, buscando essas nossas energias vitais e cronológicas. É através disso que a gente tem vencido esses desafios”. 

Em 25 anos de atividade, apesar de muitos desafios, houve muitas conquistas: a titulação de territórios quilombolas através do Artigo 68 da Constituição; o programa de Educação Escolar Quilombola; o Programa Nacional de Habitação Rural, que viabiliza a construção ou a reforma de unidades habitacionais rurais, por meio de parcerias com as Entidades Organizadoras (EO), destinadas às famílias enquadráveis no âmbito, entre elas quilombolas e indígenas; o Programa Brasil Quilombola, que compreende um conjunto de ações voltadas para a melhoria das condições de vida e ampliação do acesso a bens e serviços públicos da população quilombola, entre muitas outras que tiveram as mãos da Conaq e de muitos parceiros. 

Como Givânia fez questão de frisar na live de aniversário: “A Conaq não nasceu sozinha, a Conaq não é uma ilha, não é uma organização isolada, ela tem e bebeu na ancestralidade e essa ancestralidade não é quilombola, ela é negra”. Célia Pinto, que  compartilha o mesmo pensamento, completa:  “A Conaq nunca fez isso sozinha, ela sempre contou com grandes parceiros que até hoje estão conosco. Nesses 25 anos de luta e de resistência, tivemos muitos braços e muitas pernas construindo junto conosco. Falar da Conaq é falar que todo quilombola é Conaq. Onde estiver um quilombola, uma quilombola, lutando por garantia de direitos, lutando pela garantia da vida, é um Conaquiano. A Conaq somos todos nós”.