Memória e cultura negra nos desfiles das escolas de samba

Escolas de samba e seus grandes espetáculos reforçam a sabedoria e resistência de grandes nomes da história do povo preto brasileiro

Por Gabi Coelho

O Carnaval brasileiro, além de ser considerado um dos maiores eventos do mundo, também contribui para a movimentação da economia a partir do turismo e do comércio, visto que a última estimativa feita pela Prefeitura da Cidade do Rio de Janeiro aponta que, somente em relação à cidade, o carnaval movimentou aproximadamente R$ 4 bilhões no ano de 2020

O Carnaval, como uma das manifestações populares ligadas à cultura negra, está inserido em um dos eixos trabalhados pelo Fundo Baobá para Equidade Racial, que é o da Comunicação e Memória. Nele, o Baobá incentiva a valorização e a difusão de bens culturais materiais e simbólicos, com música, dança, teatro,  literatura, canto, vertentes presentes no Carnaval. 

Para a História, a memória atua como um importante mecanismo de compreensão não só dos acontecimentos, mas também do cotidiano, dos hábitos e das culturas dos mais diversos povos. Dessa forma, podemos entender que as escolas de samba, enquanto manifestações culturais extremamente ricas, também possuem seu lugar na memória nacional.  Historiadores que voltam suas pesquisas para o carnaval tomaram como “marco inicial” das escolas de samba a fundação do que inicialmente seria um bloco carnavalesco, a “Deixa Falar”, no ano de 1928 no bairro do Estácio, no Rio de Janeiro, ainda que existam agremiações fundadas anteriormente.

Mas e a grande questão: onde a memória e cultura negra se encaixam nesse cenário? Em uma entrevista, o escritor e sambista Haroldo Costa afirmou para o jornal O Globo  que na época do Entrudo (um tipo de festa popular que antecedeu o carnaval moderno,   onde pessoas lançavam farinha, água, areia etc umas nas outras e entrou em declínio no ano de 1854 por repressão policial),  os ex-escravizados não possuíam participação nas brincadeiras carnavalescas. Isso só foi acontecer no momento em que senhoras negras vestiram-se de branco e entoaram canções em procissões religiosas, o que teria dado origem às alas de baianas do atual carnaval. Apesar disso, diz Haroldo, somente após a virada do século XIX para o século XX, os negros passaram de fato a  ter destaque na festa, uma vez que os blocos de subúrbio surgiram e deram origem a escolas como a Estação Primeira de Mangueira (década de 1920). 

A temática da negritude apareceu de fato em 1950 até que, em 1960, a Acadêmicos do Salgueiro homenageou o primeiro negro na história do carnaval, Zumbi dos Palmares, com o samba enredo “Quilombo dos Palmares. De lá para cá, diversas outras escolas de samba compreenderam a importância e necessidade de falar sobre a vida, história e cultura do povo preto, o que mais colaborou para o enriquecimento do carnaval. E é justamente por tamanha contribuição que o carnaval, lá no início, foi ganhando a fama de uma festa popular, uma festa que podia ser frequentada por todas as classes, mas que era majoritariamente preta em sua frequência e elaboração. 

Rafael Rezende, estudante de mestrado e integrante do Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF),  ao falar sobre sua pesquisa em relação ao carnaval afirmou: “A maior contribuição do negro nesse processo creio ter sido na elaboração de gêneros musicais apropriados para a folia, como o samba, o samba-enredo, o maracatu, o afoxé e o axé”, afirmou. Ademais, “os negros ainda participaram ativamente das várias modalidades da festa, criando os cordões, as escolas de samba e muitos blocos famosos, além da temática negra ser comumente explorada nos enredos das escolas de samba”. 

A efeito de exemplificação da representação dessa cultura negra escolas de samba de São Paulo, como Colorado do Brás, Vai-Vai, Mocidade Alegre e Unidos de Vila Maria voltam a  mostrar na avenida enredos que preservam a cultura e a memória da história negra. A Colorado vai mostrar Carolina, a Cinderela Negra do Canindé, sobre a escritora, cantora e atriz Carolina Maria de Jesus.  O Vai-Vai leva para a avenida o conceito africano  da Sankofa, que é a busca do passado para trabalhar melhor o futuro. A Mocidade Alegre mostrará a obra e a vida de Clementina de Jesus (Quelémentina, cadê você?), uma das grandes damas do samba,  e a Unidos de Vila Maria enaltece a igualdade entre as raças (O Mundo precisa de cada um de nós). 

Ainda em São Paulo, mais especificamente na Praça da Liberdade, a fundadora da Sociedade Recreativa Beneficente Esportiva da Escola de Samba Lavapés Pirata Negro, Deolinda Madre, mais conhecida como Madrinha Eunice ou tia Eunice, recebeu uma linda homenagem no dia 2 de abril de 2022: uma estátua de bronze de aproximadamente 1,70m de altura. Fundada na fronteira entre o bairro da Liberdade e Cambuci, a Lavapés que conta com a atuação do ator, sambista  e grande defensor da cultura sambística, Ailton Graça na presidência desde o ano de 2019. A informação que circula entre a população paulistana em relação ao nome escolhido por Madrinha Eunice seria de que as pessoas negras descalças vinham de diferentes lugares da cidade e utilizavam o chafariz daquele local para lavar seus pés e assim dar continuidade à sua rotina que poderia incluir ir à igreja, ao samba ou ao trabalho.

 No caso do Rio de Janeiro, a escola de samba Beija-Flor de Nilópolis trará para a Sapucaí neste carnaval o samba enredo “Empretecer o Pensamento é Ouvir a Voz da Beija-Flor” cujo tema central é a contribuição intelectual negra como ferramenta para contribuir para um Brasil mais africano. Outra novidade deste ano é a presença de Helena Theodoro, intelectual negra, que está à frente do enredo da Escola de Samba Salgueiro, mostrando a resistência e sabedoria da mulher preta. 

Já no grandioso carnaval de Salvador, três blocos afro se destacam: Bankoma, Cortejo Afro e Ilê Aiyê. O último, por exemplo, traz forte inspiração do movimento negro norte-americano. Todos esses blocos são retratados no documentário “Samba de Santo – resistência afro-baiana”, que foi dirigido pelo músico e produtor Betão Aguiar e sua estreia aconteceu na 44ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo entre os dias 22 de outubro e 4 de novembro de 2020.