Conexões em Movimento, a newsletter mensal do Movimento Bem Maior, inspira filantropos, promove a troca de ideias e fortalece conexões para a justiça social. Neste mês, nossa conversa é com Giovanni Harvey, diretor executivo do Fundo Baobá, uma das mais importantes instituições de promoção da equidade racial no Brasil.
Na filantropia, Giovanni Harvey é uma exceção que busca questionar as regras sob as quais o campo funciona. Ocupa uma posição singular, à frente de uma organização única no contexto brasileiro, o Fundo Baobá para Equidade Racial . Suas bases construídas nos movimentos sociais e na vivência como homem negro sustentam o pensamento crítico que marca sua trajetória.
Com 61 anos, Giovanni é de uma geração que se constituiu politicamente no final dos anos 1970, em meio ao fim do regime militar e às mobilizações pela redemocratização do país. Aproximou-se do movimento negro aos 17 anos — não apenas para “se associar”, mas, como ele diz, para “se alistar”, assumindo um compromisso vitalício com a causa.
Hoje, lidera um endowment que garante a sustentabilidade da própria organização e permite que toda captação seja destinada exclusivamente a ampliar as doações, enquanto o patrimônio continua crescendo. Ao mesmo tempo, atua para incidir sobre o ecossistema da filantropia, ocupando espaços de governança e atraindo novos investidores para agendas historicamente negligenciadas.
Na entrevista a seguir, Giovanni fala sobre os desafios e contradições do campo filantrópico, o conceito de “filantropia recreativa” e o que considera essencial para o amadurecimento do debate racial no Brasil.

- Você provoca reflexões diretas sobre o papel da filantropia e do investimento social privado. Queria começar com uma que você trouxe no Congresso do GIFE, sobre “filantropia recreativa”. Como você vê essa prática no campo hoje?
Quando eu fui chamado pela Sueli Carneiro e pelo Hélio Santos para o Baobá, eu sou obrigado a refletir sobre qual é o meu papel como ativista político, qual é o papel dessa instituição e quais são as contradições nas quais a instituição está inserida.
Uma instituição que tem hoje 170 milhões de reais aplicados no mercado financeiro, comparativamente com outras instituições filantrópicas financeiras, é um fundo pequeno, mas está em uma condição completamente diferente das organizações do movimento negro tradicionais. Isso me empurra a olhar o que está sendo feito a minha volta.
Percebo que existem várias filantropias e que algumas não têm alinhamento com causa alguma. Se constituem em verdadeiros jardins de diversão, onde as pessoas muitas vezes estão mais preocupadas em ilustrar suas biografias, suprir suas próprias carências e preencher um determinado tipo de vazio do que, servir a uma causa.
Foi isso que chamei de uma filantropia sem propósito, uma filantropia recreativa. É como qualquer outra atividade na vida. Se eu não tenho objetivo claro para estudar, trabalhar, praticar uma atividade física… aquilo vira apenas recreação.
Gosto de uma formulação do futurista norte-americano Joel Barker: uma visão de futuro é um sonho carregado de ação, e um sonho que não gere ação é só um passatempo. Para mim, filantropia com propósito é um sonho carregado de ação; sem propósito, ela não passa de passatempo.

- O Fundo Baobá tem uma trajetória singular — e, infelizmente, ainda ocupa um espaço único em termos de capacidade de investimento e articulação de organizações negras. De que forma vocês têm posicionado o Baobá no ecossistema atual?
Somos um fundo patrimonial independente, cuja gestão é feita integralmente por nossa equipe — liderada por Hebe Da Silva , uma mulher negra, do Mato Grosso. Nosso fundo patrimonial é de R$ 170 milhões, oriundos principalmente da Fundação Kellogg, Fundação Lemann , B3 , Mackenzie Scott e outros parceiros estratégicos. Além disso, gerimos cerca de R$ 20 milhões de recursos de terceiros, como Fundação Ford, Instituto Ibirapitanga , Open Society Foundations e Instituto Unibanco .
Ao longo de 15 anos, já doamos mais de R$ 22,4 milhões, via 23 editais, apoiando mais de 1.200 iniciativas em todas as regiões do país, nas áreas de educação, desenvolvimento econômico, comunicação, memória e direitos humanos. Estamos baseados em São Paulo, com uma equipe de 20 pessoas, e em breve teremos sede própria.
A própria Fundação Kellogg afirma não ter outra experiência semelhante à do Baobá em seu histórico. Mesmo no campo da equidade racial, há pouquíssimas iniciativas com essa capacidade de investimento e nosso objetivo é ampliá-la.
Nossa visão de futuro é alcançar R$ 250 milhões de fundo patrimonial até 2026/2027 e nosso endowment cresce porque reinvestimos anualmente 95% do rendimento médio dos últimos três anos, retirando no máximo 5%. Hoje já somos autossustentáveis operacionalmente, de modo que toda captação adicional é destinada exclusivamente a doações.
O segundo foco é a incidência sobre o ecossistema da filantropia. Participamos ativamente de redes como o GIFE e a Rede Comuá , que, no nosso entendimento, têm atuação complementar: o GIFE, mais voltado para o investimento social privado; e a Comuá, voltada para fundos independentes ligados à base social ou territorial. O Baobá é a única instituição da filantropia brasileira com assento no Conselho da Rede Comuá e no Conselho Deliberativo do GIFE, além de fazer parte de instâncias colegiadas e de gestão de várias outras organizações, como o Motriz , Todos Pela Educação e a Plataforma Alas, da Fundação Tide Setubal .
Buscamos incidir sobre o ecossistema levando nossa visão de filantropia e, muitas vezes, atraindo investidores ao colocar nosso próprio recurso à frente para que outros se engajem. Partimos do pressuposto de que, quando investimos, estamos enviando uma mensagem clara de que aquela agenda é importante. É o caso do apoio à Sociedade Protetora dos Desvalidos, a mais antiga instituição filantrópica em operação no Brasil, e à Marcha das Mulheres Negras. No entanto, mesmo assim, quase ninguém mais colocou recursos.
No apoio à Marcha das Mulheres Negras, destinamos R$ 1,25 milhão, tornando-nos seu maior doador até agora. Comparando nosso tamanho com outras instituições, fica evidente a falta de alinhamento do campo com uma agenda de extrema importância e que, em 2025, será a maior manifestação popular de luta por direitos no Brasil, em novembro, em Brasília.

- Como você enxerga essa distância que ainda existe entre grandes investidores sociais e os movimentos de base?
Eu acho que, primeiro, tem uma “financeirização”, uma absorção de uma cultura de mercado por várias dimensões da vida social. A educação, por exemplo. A linguagem no ambiente educacional está cada vez mais mercadológica. É “entrega”. Então, o aluno é avaliado pelas entregas que faz. Eu tenho severas críticas a esse tipo de linguagem. Acho que isso deseduca, isso adoece as pessoas.
Há uma “mercadologização” que está impregnando a sociedade brasileira. A filantropia começa a falar em entrega, não fala mais em causa. E, em alguma medida, passa a ser vista apenas como um campo de trabalho para o qual as pessoas podem migrar sem ter nenhum tipo de compromisso com causa alguma. Essas pessoas vão constituir burocracias que lidam com o investimento filantrópico e com o investimento social privado como se estivessem fabricando salsicha ou peça automotiva — sem perceber que estão lidando com pessoas, com anseios, com traumas, com lutas políticas, com processos históricos que, na maior parte das vezes, sequer são compreendidos.
Essa burocratização, falta de compreensão e despolitização fazem parte do pano de fundo dessa “recreação”. Nós nos contrapomos a isso. Defendemos filantropia com propósito. Não necessariamente o mesmo que o nosso, porque existe mais de um tipo. Toda filantropia é legítima. O que eu cobro é que se diga: “Eu faço filantropia para isso.” “Eu faço filantropia para a caridade, eu acredito que o assistencialismo é importante…” E é. Eu li a entrevista que Fernanda Camargo concedeu aqui em que ela diz que até certa linha, precisamos do assistencialismo para poder olhar para impacto. O primeiro impacto é ter oferta de comida.
Voltando à nossa visão: defendemos que quem faz filantropia coloque na mesa o que faz e para quê faz. E que tenha certa sofisticação intelectual para não cometer o equívoco — e eu falei isso no congresso do GIFE anterior — de confundir atender pessoas negras com enfrentar o racismo. Ter clientela negra não significa que a iniciativa enfrente o racismo. Posso apoiar iniciativas que atendem pessoas negras e, ainda assim, reproduzem relações de dominação.
É preciso que se diga: “Eu atendo pessoas negras para isso. Minha estratégia é essa, meu propósito é esse.” Eu não critico os propósitos. Critico a falta de transparência e a tentativa de confundir, fazendo uma análise equivocada que confunde público com causa.

- Em ambientes da filantropia e do ISP, vemos que algumas pautas — especialmente equidade racial — quando colocadas na mesa geram desconforto e são questionadas sobre de fato serem endereçadas. A que você atribui esse fenômeno?
A questão racial, para nós, ativistas do movimento negro, não é uma escolha. Somos colocados cotidianamente diante de situações nas quais precisamos nos posicionar – porque se não o fizermos, ninguém fará. E, quando um problema real não é enfrentado, a omissão só o agrava.
O debate racial no Brasil está na origem da nossa constituição como sociedade, no período pós-abolição, que coincide com o processo de construção da República. Isso funda as relações no país e desconhecer esse contexto é um equívoco histórico profundo. Ao tratar as desigualdades étnicas como se ninguém tivesse responsabilidade sobre elas, cria-se a ilusão de que, por “não termos mais escravidão”, o problema se resolveria por geração espontânea. Mas não foi algo que surgiu espontaneamente; foi construído e reforçado por decisões políticas, incluindo decretos presidenciais.
Essa distorção histórica alimenta um imaginário — presente na literatura, na sociologia e até na filantropia — de que o problema da população negra se resolve com escolarização. A ideia de que brancos e ricos “vão salvar” negros oferecendo oportunidades é um subproduto dessa concepção. Em ambientes onde está pacificado que “o problema do negro é falta de escolarização” e que “a culpa é da escravidão, mas o presente nada tem a ver com isso”, qualquer tentativa de cobrar ação efetiva dos atores políticos provoca desconforto.
Inclusive na filantropia, que muitas vezes se vê num “faz de conta” de doar para iniciativas que, na prática, reproduzem desigualdades, formam para profissões obsoletas e que nem sequer arranham a concentração de renda. Não há debate real sobre temas estruturantes como rentismo, taxas de juros e distribuição de riqueza. Assim, exceções são tratadas como regra, usadas para legitimar a ideia de que, quem não conseguiu furar esses bloqueios é mal sucedido e que a responsabilidade, por isso, são delas.
- Muitas lideranças negras se veem obrigadas a modular o tom, a linguagem e até omitir posicionamentos para conseguir “caber” em determinados espaços institucionais, mesmo na filantropia. É possível encontrar equilíbrio entre se fazer ouvir e manter a integridade do discurso?
Eu acho que é um desafio. E falo de um lugar confortável porque as condições do Baobá me permitem verbalizar coisas que sinto obrigação de dizer. Lembro de uma fala recente do presidente da República, na posse do atual presidente do BNDES. Ele disse: “Espero que você possa criticar as taxas de juros, porque eu não posso. Me elegi, e quando critico, gera problema. Alguém aqui precisa poder falar.”
Fazendo um paralelo: alguém precisa dizer determinadas coisas. Uma das contradições de uma sociedade que busca manter privilégios é a tentativa de silenciar as pessoas com a ilusão de algum benefício — pessoal ou institucional — se elas “se comportarem” e não afrontarem o status quo. Isso também acontece na filantropia. Lideranças de várias causas e segmentos modulam seu discurso para se tornarem “palatáveis” e aptas a receber recursos.
Não considero errado. Jamais cobraria de uma instituição que se inviabilizasse no ecossistema por não fazer algum tipo de modulação. Mas faltam sinais, especialmente do investimento social privado. Quanto mais o interesse empresarial impacta essa agenda, mais difícil é aceitar a crítica. Vejo mais abertura na filantropia, com exemplos como o de Neca Setubal , que reconhece que parte da fortuna da família tem origem em relações de dominação no passado — algo corajoso e coerente. Essa postura permite conversar sem o “bode na sala” que limita tantas discussões.
Mesmo no Baobá, não saio falando tudo o que penso. É uma questão de responsabilidade no ecossistema e de preservar um mínimo de civilidade. Venho de uma geração que aprendeu, no movimento estudantil, a respeitar quem pensa diferente. Críticas precisam ser feitas de forma respeitosa, sem a pretensão de sermos donos da verdade ou apontar o dedo o tempo todo. Precisamos buscar consensos, elevar o nível do debate e encontrar soluções sustentáveis e honestas, capazes de mostrar à sociedade que, mesmo em um país que mantém historicamente segmentos em posição subalterna, ainda é possível construir caminhos de mobilidade e mudança.

- Em uma entrevista à Rede GIFE, você disse que “a subsistência de práticas ilusórias de inclusão de pessoas negras reflete o estágio de compreensão e da maturidade da sociedade brasileira”. Qual seria o passo possível nesse processo de amadurecimento?
Eu posso dizer a você, com todas as críticas que ainda faço à realidade brasileira, que me orgulho do estágio que o país alcançou no debate racial. Não imaginava que estaria vivo para ver a sociedade brasileira discutindo essa questão da forma como temos feito.
Demos saltos enormes na compreensão do tema, porque não poderia continuar sendo um debate restrito a nós, negros e negras — ele pertence à sociedade brasileira. Quando vejo, por exemplo, o Movimento Bem Maior, a Fundação Lemann, a Imaginable Futures pautando a questão racial, sinto orgulho.
Como próximos passos, acho que nós, movimento negro, e as pessoas comprometidas com essa causa, precisamos garantir que não haja retrocesso: que os espaços conquistados e a ampliação de atores e atrizes políticas que discutem o tema não recuem, garantindo que alianças estratégicas não retrocedam.
O segundo ponto é construir consensos mínimos: uma agenda qualificada que eduque sobre o que é, de fato, enfrentamento ao racismo e promoção da equidade racial, reduzindo a quantidade de pessoas que ainda acreditam que atender pessoas negras é o mesmo que enfrentar o racismo. O debate racial no Brasil exige estudo, esse é um debate científico, no sentido de que é preciso estudar história, sociologia… não depende de títulos acadêmicos para chegar nessa compreensão.
O terceiro ponto depende de todos, inclusive de nós, pessoas negras: precisamos nos apresentar para a sociedade como sujeitos que pensam o país, e não apenas nossos próprios problemas. Eu, como dirigente de organização social e ex-gestor público, sempre pensei a sociedade brasileira a partir do meu compromisso com soluções para a questão racial, mas sem restringir minha atuação a isso. O problema racial é o que mais me afeta, mas não é o único que existe.
As pessoas negras precisam discutir projetos de país, e as pessoas brancas em posições de gestão, seja monocrática ou colegiada, precisam se abrir a ouvir o que temos a dizer para além da questão racial. Eu, por exemplo, me recuso a ser o “bedel” que só fala sobre isso nos conselhos de que participo. Se o tema surge, muitas vezes fico calado. Quando me perguntam: “Você não vai se manifestar?”, respondo: “Quero ouvir o que vocês têm a dizer.”
Resumindo, são três pontos: não recuar, qualificar o debate para educar e discutir, conjuntamente, projetos para o país.
Entrevista e edição: Emanuely Lima / Analista de Comunicação no Movimento Bem Maior. Publicado originalmente na newsletter Conexões em Movimento, do Movimento Bem Maior. Fotos: Thalita Guimarães
























