Recuperação econômica e fortalecimento de territórios negros é um dos caminhos para a justiça social

No dia 20 de dezembro, encerram-se as inscrições do Programa de Recuperação Econômica de Pequenos Negócios de Empreendedores(as) Negros(as), iniciativa do Fundo Baobá para Equidade Racial, que tem apoio do Instituto Coca-Cola Brasil, Instituto Votorantim e Banco BV, com a premissa de dar suporte financeiro a pequenos empreendimentos, liderados por pessoas negras, em comunidades periféricas ou territórios em contexto de vulnerabilidade socieconômica no país. 

A pandemia do novo coronavírus acentuou as desigualdades em nosso país, o que gera discussões sobre o que significa desenvolvimento econômico. Para o mestre em sociologia e professor na FGV (Faculdade Getúlio Vargas), Márcio Macedo, há controvérsias nas definições e formas de se medir o desenvolvimento econômico: “Para os economistas mais ortodoxos, o desenvolvimento econômico pode ser medido a partir de parâmetros como PIB (Produto Interno Bruto), renda per capita e níveis de consumo da população. O que é considerado nessa forma de se medir desenvolvimento econômico é o tamanho da economia e do mercado consumidor. Hoje somos a nona economia mundial, nosso PIB gira em torno de US$ 1,8 trilhão. Com essa definição, o Brasil se encontra à frente de países como o Canadá. Contudo, se olharmos os índices de competitividade da nossa economia, o Brasil vai para uma posição 34º na lista das economias mundiais. Além disso, se levarmos em consideração o IDH (Índice de Desenvolvimento Humano – unidade de medida utilizada para aferir o grau de desenvolvimento de uma determinada sociedade nos quesitos de educação, saúde e renda), o Brasil, atualmente, encontra-se na 79º posição no ranking do IDH mundial (uma lista com mais de 180 países), como divulgado pelo PNUD, em 2018”, afirma Márcio. 

Márcio Macedo, mestre em sociologia, professor e coordenador de diversidade da FGV EAESP

Curiosamente, o Brasil encontra-se há três anos nessa posição, o que pode ser considerado uma estagnação. “De forma geral, podemos dizer que o Brasil é um país com grandes desigualdades e paradoxos. Assim, eu diria que não podemos nos considerar desenvolvidos economicamente porque temos uma desigualdade social e econômica enorme”, finaliza.

Para a empreendedora na Ceilândia (DF), formada em serviço social e pós-graduanda em Gestão, Empreendedorismo e Inovação Empresarial, Wemmia Santos, o que dificulta o desenvolvimento econômico e a redução das desigualdades é a manutenção de privilégios das classes favorecidas: “Vale dizer que somos cada vez mais afetados para perder as dimensões que desvinculam o consumo do exercício da cidadania, haja vista que o modelo de inclusão adotado para o desenvolvimento econômico se deu via políticas públicas de estímulo ao consumo de bens e serviços. Ao olhar com mais cuidado para essa estrutura, fica exposta a não opção pela dissolução/diminuição das desigualdades, e também fica evidente que quanto menor seu poder de renda,  menor seu exercício de acesso ao direito de ter direitos. A face dessa realidade desafia a temática de desenvolvimento econômico, bem como denuncia outras restrições no que se refere a questões ambientais e socioespaciais”.

É aprendizado básico de economia que os recursos são escassos e que não é possível dividir com todos, mas para Wemmia Santos é preciso romper com esse mito: “As ‘crises’ e a suposta escassez de recursos são os pretextos utilizados pelo Estado para justificar sua retirada da responsabilidade social, especialmente no campo das políticas sociais. Desse modo, o desenvolvimento econômico que deveria beneficiar toda população, fomentando o acesso à cultura, esporte e lazer com garantia de mobilidade que atenda a todos, é desfavorecido em favor do capital que tenciona a construção de instrumentos baseados unicamente no planejamento público tecnicista que limita a equidade e distribuição justa de bens e serviços, favorecendo apenas os estratos privilegiados”.

Wemmia Santos, pós-graduanda em Gestão, Empreendedorismo e Inovação Empresarial e empreendedora na empresa RAIX

Para muitos, a principal forma de se emergir economicamente é empreendendo, ou,  como dizem, se tornando o seu próprio patrão e dono do próprio negócio. Muito tem se discutido sobre o empreendedorismo, muito se tem estudado sobre os melhores formatos de se investir, empreender e obter lucro, mas, considerando a deficiência no desenvolvimento economico do nosso país, pouco se dialoga sobre a formalização do empreendedorismo negro. Wemmia recorre à história para demonstrar que o debate sobre empreendedorismo, mesmo com a proliferação da internet, está longe de ser algo recente. Ela cita inclusive, a Irmandade da Boa Morte, que teve a sua fundação no século XIX, em Salvador, vindo posteriormente a se estabelecer na cidade de Cachoeira, na Bahia: “As mulheres da Irmandade vendiam quitutes e com o lucro das vendas ajudavam seus afiliados e outros negros, fugidos da escravidão, pagando suas alforrias. Ainda hoje, elas preservam essa motivação inicial, em memória ao sofrimento dos escravizados pela busca da liberdade e, dessa forma, se mantêm um exemplo notório de luta e resistência contra a escravidão. São, portanto, revolucionárias desde aquela época. Transformaram a falha de mercado do sistema escravocrata em oportunidade de viabilizar a liberdade de seu povo. Encontraram e encontram meios para solucionar questões relacionadas à redução da pobreza e desigualdade, em um cenário nada propício à participação ativa da mulher, com ênfase nas mulheres negras”.

Para Wemmia, é importante conhecer a história, justamente para compreender os territórios negros: “Quando resgatamos a história do Brasil, antes mesmo do sistema capitalista, fica evidente a manutenção do racismo estrutural nos territórios que a população negra se concentra e nas faixas de rendimento entre negros e não negros. Para nós é necessário conhecer e preservar a história para, só assim, consolidar ações mais igualitárias”.

É dentro deste contexto histórico que Marcio Macedo acredita que, quando falamos em empreendedorismo negro ou afro empreendedorismo, há uma perspectiva política envolvida.  Ou seja, são negócios de pessoas negras, que podem envolver algum tipo de relação com elementos das culturas negras e ainda ser voltados, de forma prioritária, para o consumo de pessoas negras: “Apesar de isso não ser algo novo, ele tomou um novo significado em um contexto que o mercado consumidor e a economia como um todo passam a ser vistos como  espaços de questionamento da desigualdade racial. Falar que a invisibilidade do empreendedorismo negro é efeito do racismo estrutural e empresarial é simplificar o problema. Entender o fenômeno do empreendedorismo é olhar para as relações entre raça, classes, desigualdades das mais variadas entre negros e brancos,  além da reconfiguração do mercado de trabalho dentro de uma economia neoliberal”.

Pesquisa realizada pelo Sebrae em 2018, a Global Entrepreneurship Monitor (GEM) revela que 40,2% das micro e pequenas empresas no Brasil são comandadas por negros. A mesma pesquisa, também nos mostra que apesar dos empreendedores negros liderarem o número de micro e pequenas empresas no Brasil, quando olhamos para o faturamento é maior a proporção de empreendedores negros que possuem renda familiar mais baixa do que empreendedores brancos e – ao contrário – é maior a proporção de empreendedores brancos que possuem rendas maiores: “Esses números discrepantes seguem a mesma linha ou dimensão da desigualdade vista entre negros e brancos no Brasil. Há diferenças nas formas, modos e tipos de negócios ou empreendimentos de negros e brancos. É preciso abrir os números para verificar com mais acuidade essas diferenças e desigualdades, mas diria que estamos comparando universos bastante distintos”, afirma Márcio.

Outra grande dificuldade da pessoa negra que empreende diz respeito à obtenção de créditos. Um estudo realizado pela PretaHub, em parceria com o instituto de pesquisas Plano CDE e o banco JP Morgan, mostrou que 32% dos empreendedores negros tiveram crédito negado, sem explicação. Márcio Macedo diz que ter acesso a crédito no Brasil é, em geral,  algo bastante difícil e caro e mais ainda para quem é pobre: “Há uma mistura de desinformação, desconfiança e seleção prévia realizada por bancos. O ponto central é: não há linhas de crédito com taxas de juros que não sejam exorbitantes para serem oferecidas para empreendedores e microempreendedores negros, porque a maior parte deles está alocada nas faixas de classe menos abastadas, que sofrem com problemas de formalização ou com questões às vezes bastante simples de serem resolvidas, mas que impedem o acesso ao crédito”.

A Pandemia de Covid-19 acentuou ainda mais as desigualdades sociais e raciais. E, no caso do empreendedorismo negro, um estudo do Sebrae mostrou que durante esse período 46% dos empreendedores estavam com dívidas em atraso. Sessenta e um por cento dos que buscaram empréstimo não conseguiram, mesmo tendo pedido valores mais baixos do que os brancos: “A pandemia afetou todos os negócios, tanto de brancos como os de negros. Contudo, a pandemia também se orientou pelas desigualdades na maneira como afetou de forma desproporcional a população. Ou seja, houve uma socialização desigual dos impactos negativos da pandemia, com um número maior de mortes e perdas de pobres e negros”, ressalta Márcio Macedo. “No caso dos empreendimentos negros, a forma de resiliência tem se dado através de apoio de redes familiares e de amigos. Muitas vezes não necessariamente na manutenção do negócio, mas na tentativa de dar conta das despesas de manutenção pessoal e familiar. Muitos empreendedores negros dependem dos seus negócios para pagar suas contas mensais, ou seja, sua subsistência está vinculada ao negócio. Na impossibilidade do negócio/empreendimento funcionar, algo que ocorreu no período mais crítico da quarentena, boa parte deles ficou sem renda e teve que recorrer à ajuda do Estado, dinheiro vindo do auxílio emergencial liberado pelo governo federal, ou buscou ajuda, como já disse, com familiares ou redes de amigos”, completa.

Com as dificuldades, no contexto da Covid-19, o empreendedorismo negro precisou pautar estrategias de resiliência negra para se manter vivo. Sendo empreendedora desde 2017 à frente da marca RAIX, atuando no ramo do vestuário com a valorização da cultura periférica,  e atuando também na Feira da Quebrada em Brasília e na Loja Colaborativa, Wemmia acredita que uma rede de parcerias com outros empreendedores negros pode ser eficaz na forma de aceleração e apoio de pequenos negócios. Márcio Macedo também vê de forma positiva a rede de parceria entre empreendedores negros: “Essa é uma estratégia que já vem sendo colocada por organizações como a Coalizão Éditodos, que visa captar recursos e apoiar negócios de empreendedores/as negros/as. A aceleração é algo que deve ser feita, contudo, é necessário experiência no universo do empreendedorismo. O processo de aceleração deve ser capitaneado por alguma organização que tem um papel importante e “know-how” no ecossistema empreendedor”.

Pensando nessa experiência no universo do empreendedorismo, Márcio Macedo está à frente do projeto “Raça & Mercado”, uma iniciativa conjunta da FGV EAESP – via FGVCenn e Coordenadoria de Diversidade – Feira Preta, AfroBusiness e Diaspora.Black. O projeto tem como premissa estimular a reflexão sobre o empreendedorismo negro e o fortalecimento do ecossistema: “Entre maio de 2019 e dezembro de 2020 realizamos onze fóruns de discussão nos quais foram convidados pesquisadores, empreendedores/as, empresas, organizações da sociedade civil e setores do Estado para discutir o tema do empreendedorismo negro a partir de diversas perspectivas. Publicaremos um relatório de atividades no início de 2021 com as principais conclusões”.

Atuando em seu território, Wemmia Santos é coordenadora do Programa LECria, (Laboratório de Empreendimentos Criativos) um edital de fomentos para empreendedores periféricos que, a cada ano, doa R $10 mil para 10 empreendimentos. Essa iniciativa surgiu após um estudo territorial: “Estudo realizado pela Codeplan (Companhia de Planejamento do Distrito Federal) aponta que Ceilândia, Águas Claras e Taguatinga são as três Regiões Administrativas com o maior número de microempreendedores individuais (MEI) no setor da cultura, nas atividades artísticas como espetáculos, fotografia e música”, segundo a empreendedora, são empresas criativas que estimulam o mercado e são responsáveis pelo aumento da qualidade de vida na região. “O LECria, tem como objetivo instigar ainda mais o empreendedorismo criativo na construção e ampliação da economia solidária entre a juventude, oportunizando a inclusão de novas formas de empreender nas artes, danças, música, comunicação entre outros nichos”. Completa.

Dessa forma, além de fomentar a criação a Feira da Quebrada, Wemmia traz o conceito de loja colaborativa, como forma de ligar o empreendedor com o cliente: “A loja colaborativa RAIX, na Praça do Cidadão, em Ceilândia, foi criada com o objetivo de fomentar o empreendedorismo entre jovens periféricos trazendo um formato colaborativo, que já é tendência validada, segundo o Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae). A ideia é sermos um veículo que conecta o vendedor ao cliente, cedendo o espaço por um valor justo e acessível, espaços compartilhados tem sido uma ótima solução para empreendedores iniciais e de pequena escala que buscam otimização de custos e escoamento de estoque, tendo em vista a impossibilidade de arcar sozinhos valores fixos, como aluguel, manutenção, funcionários, divulgação, dentre outros, fazendo assim que permaneçam por mais tempo na informalidade”, completa.

Márcio acredita que programas de recuperação econômica, como proposto pelo Fundo Baobá, são iniciativas louváveis e importantes para o desenvolvimento e fortalecimento do empreendedorismo negro no Brasil: “É necessário que outras organizações, públicas e privadas, sigam o exemplo do Fundo Baobá com vistas a possibilitar que inovações econômicas e sociais sejam conquistadas através do empreendedorismo de pessoas negras, que beneficia a todos/as, negros/as e não negros/as”. 

Wemmia Santos, que é uma das mulheres apoiadas pelo Fundo Baobá no Programa de Aceleração de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, também reforça o coro: “Se eu não tivesse participado de um edital de fomento, com certeza boa parte das ações que executamos hoje não seriam possíveis. Fico feliz em ver cada vez mais iniciativas que incentivam pessoas negras a buscarem seus sonhos de forma ampliada”.

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