Em um país tão desigual, ingressar no ensino superior é chave de mudança para milhares de pessoas pretas, pardas e indígenas
Por Midiã Noelle Santana
Completada 10 anos, a Política de Cotas foi uma das principais ferramentas para inserir jovens pretos, pardos e indígenas dentro dos espaços acadêmicos. A Lei nº 12.711/2012 garantiu que 50% do total de vagas nas universidades e institutos federais fossem reservadas para alunos que vieram de escolas públicas. Nesse recorte de 50%, as vagas são também oferecidas para pretos, pardos e indígenas. “No começo dos anos 2000, a cada 100 universitários, apenas 2 eram negros. O Movimento Negro Unificado começou a formular propostas para a inclusão de cotas”, afirma Givânia Maria da Silva, co-fundadora e coordenadora do Coletivo de Educação da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ).
Para Denise Carreira, coordenadora institucional da organização social Ação Educativa, doutora em educação pela Universidade de São Paulo (USP) e integrante da Coordenação do Consórcio da pesquisa sobre o Balanço da Lei de Cotas, é preciso estar de olho na revisão da lei que está prevista para acontecer ainda este mês. “A revisão visa o aprimoramento e o fortalecimento da política de cotas e não o fim, porém também oferece riscos devido ao momento que estamos vivendo. As cotas sempre foram atacadas, o que oferece risco ao enfrentamento das desigualdades, especialmente o racismo que corrói a nossa sociedade”.
E mesmo com a inserção de jovens pretos, pardos e indígenas no espaço acadêmico ter ocorrido, a realidade está fora do que deveria ser proporcional pensando na população brasileira composta por 54% de pessoas negras. Por isso, a importância do Edital Identidades Negras: Políticas de Equidade Racial, promovido pelo o Fundo Baobá com o apoio da Imaginable Futures e da Fundação Lemann. Com a proposta de combater o racismo e promover a equidade racial no setor da Educação, será oferecido aporte de R$ 2,5 milhões para 10 organizações, grupos e coletivos negros que atuam na educação, implementam ou fomentam estratégias de enfrentamento ao racismo em instituições educacionais formais e não formais e buscam fortalecer a liderança e a representação da gente preta em espaços de decisão e poder por meio de programas, ações e políticas públicas.
“Pretendemos estimular mudanças tanto nos espaços de educação formal – escolas de educação infantil, ensino fundamental, médio, ensino superior-, como em espaços não formais – organizações de base comunitária, espaços populares que preparam jovens e adultos para os vestibulares, afinal nestes espaços também se dão as ações educativas, se ampliam oportunidades e se busca romper com as estruturas que o racismo nos submete”, afirma Fernanda Lopes, diretora de Programa do Fundo Baobá para a equidade racial.
Entre exemplos de iniciativas que já acontecem, pensando nesse viés proposto pelo Edital, está a ORÍentação Afetiva, que fornece acolhimento pautado no quilombismo e decolonialidade como prática política, teórica e afetiva. “Acompanho nove alunos que se encontram em conflito e adoecimento causado pelo racismo institucional do ensino superior e, consequentemente, se sentem desmotivados para finalizar o trabalho de conclusão de curso. Tais discentes residem em diversos estados brasileiros, dentre eles Bahia, Minas Gerais, São Paulo, Natal e Brasília”, diz Obirin Odara, idealizadora do projeto, mestra em políticas sociais pela Universidade de Brasília e integrante do Perifa Connection, uma das organizações à frente da Campanha de 10 anos da Lei de Cotas no Brasil, que através de uma coalizão de iniciativas monitora a revisão da 12.711 para que ocorra de maneira justa e democrática.
O acompanhamento dos universitários acontece sempre pautado na escuta ativa, em construir toda uma narrativa de orientação individual. “Desde que iniciamos, três alunos entregaram a monografia e os seis demais seguem firmes”, diz. Para a idealizadora, em sua vida, as cotas serviram para um momento de reflexão quanto ao se enxergar no mundo. “Ser negra, até então, era algo que eu escondia e tentava fugir. Para a seleção de cotas, em contrapartida, foi o primeiro momento em minha vida que me recordo de falar com orgulho da cor de meus mais velhos e da minha cor. Era como se ali entendessem a importância disso, e eu me senti como quem rasga o silêncio com um sussurro”, afirma.
Midiã Noelle Santana é jornalista e produziu o texto para o Fundo Baobá e Perifa Connection. Apoio de Imaginable Futures e Fundação Lemann