14 de maio e a sobrevivência do negro

“No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia
Um dia com fome, no outro sem o que comer
Sem nome, sem identidade, sem fotografia
O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver”

(14 de Maio – Lazzo Matumbi)

O trecho acima é da canção 14 de Maio, de autoria do cantor, compositor e ativista baiano Lazzo Matumbi. A letra traça um panorama do que aconteceu com a população negra um dia depois do 13 de maio de 1888, o dia em que foi assinada a Lei Áurea, que concedia a libertação dos escravos em território nacional.

Nessa data, em torno de 750 mil negros e negras foram mantidos fora da competência do Estado, sem qualquer tipo de amparo legal ou medida afirmativa por parte do Estado e das próprias pessoas que detinham o poder, esse sustentado pelo trabalho, até então imprescindível, desses negros e negras. Sendo assim, o dia 14 de maio se tornou um dia de reflexão para a população negra ex-escravizada, que não tinha o que comer, o que vestir e onde morar, como canta Lazzo Matumbi. A cultura negra continuou a ser marginalizada e leis foram criadas para proibir sua exibição em público. Dois anos depois de a  Lei Áurea entrar em vigor, a Lei dos Vadios e Capoeiragem, de 1890, determinava que pessoas maiores de 14 anos que não trabalhavam e ofendessem “a moral e os bons costumes”  poderiam ser detidas. Dentro da mesma lei havia um decreto que tornava crime a prática da capoeira e de rodas de samba em ruas e praças públicas, considerando as duas manifestações artísticas uma “perturbação social”. 

Se Lazzo Matumbi canta que no dia 14 de maio o negro “subiu a favela pensando em um dia descer”, realmente, como completa a letra, ele nunca desceu. Não desceu por falta de políticas públicas que reintegrassem o negro, já não escravizado,  à sociedade. Segundo um estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) sobre o perfil da população das principais favelas do país, existe a predominância da população negra na periferia. O estudo mostra que 40,1% das casas são chefiadas por homens negros e 26% por mulheres negras, contra 21,3% por homens brancos e 11,7% por mulheres brancas. Os dados da Rede Nossa São Paulo, apresentados em 2019, mostram que 32% da população da cidade de São Paulo se identificam como negros, mas em bairros periféricos como o Jardim Ângela, na zona sul da cidade, a concentração dessa população chega a 60%. Em outros distritos da capital, como Capão Redondo, Parelheiros, Grajaú, Cidade Tiradentes e Itaim Paulista, a população negra chega a 56%. Na região considerada nobre da cidade, no bairro de Moema, por exemplo, apenas 5,82% se autodeclaram negros.

A não descida do negro também está relacionada com a política de segurança pública higienista que enxerga a população preta periférica como inimiga e pratica o extermínio sem culpa alguma, como aconteceu na favela do Jacarezinho no Rio de Janeiro, na última semana. Para a jornalista, escritora e doutoranda em direitos humanos Maíra Brito, a polícia agir dessa forma com a população negra periférica é herança do período escravagista: “O historiador Luiz Antonio Simas explicou a razão da polícia assassinar civis, considerando que a função da instituição era defender propriedade de terras e seus donos – algo que acontece ainda no século 21. Ou seja, o problema das polícias não é ter dado errado, mas, sim, ter dado certo até hoje”, afirma.

O Brasil foi o último país do ocidente a abolir a escravidão. Antes do dia 13 de maio, inúmeros protagonistas negros assumiram a luta abolicionista e atuaram pelo fim da escravidão do país, como Luís Gama (1830-1822), que nasceu livre e foi vendido como escravo pelo próprio pai. Ele foi alfabetizado aos 17 anos, conseguiu a sua própria alforria judicialmente, tornou-se advogado e passou a atuar como defensor dos próprios escravos. Ao lado de Gama, nomes como José do Patrocínio, André Rebouças, Joaquim Nabuco, entre outros, reforçaram a luta abolicionista, muito antes da assinatura da Lei Áurea. Mas um epistemicídio apagou esses nomes da história do nosso país, tirando qualquer tipo de protagonismo negro diante do feito da abolição da escravatura.

A historiadora Flaviane Ribeiro Nascimento, integrante da Rede de Historiadorxs Negrxs, em seu artigo O trânsito para a liberdade e a precarização do trabalho livre no final do século XIX, publicado pelo site do Instituto Geledés da Mulher Negra, explica a precarização que levou ao processo de abolição, muito diferente da suposta compaixão que a história nos fez acreditar que a Princesa Isabel teve dos negros escravizados por três séculos: “A abolição vai acontecer apenas no final do século XIX, respaldada por legisladores, depois de um conjunto de normas jurídicas que pretendiam uma ‘transição’ para o trabalho livre mediante a indenização das elites escravistas, do controle e da disciplina dessas trabalhadoras e trabalhadores que passariam a ter liberdade para negociar a força de trabalho”. Flaviane cita também outra historiadora, Wlamyra Albuquerque, para explicar o porquê da demora da abolição da escravatura em nosso país: “A resistência à abolição da escravidão foi justificada pela dependência do trabalho cativo e pela racialização do comportamento em liberdade dessas mulheres e desses homens, que seria marcada por insubordinação, desordens e perversão moral”.

É importante lembrar que antes da assinatura da Lei Áurea, o país teve outras duas leis abolicionistas assinadas: a Lei do Sexagenário, assinada no dia 28 de setembro de 1885, que libertava escravos com mais de 60 anos e considerada, por muitos, a grande “gargalhada nacional” pelo fato de praticamente nenhum escravo conseguir chegar vivo aos 60 anos. E antes, em 1871, houve a Lei do Ventre Livre, determinando que filhos de mães escravizadas fossem libertos – como se recém nascidos tivessem autonomia para seguirem suas vidas longe de suas mães escravizadas.

Completando 10 anos em 2021, o Fundo Baobá tem como missão promover a equidade racial em nosso país, investindo em iniciativas de organizações, grupos e coletivos negros, alinhados aos seus  eixos programáticos prioritários, entre eles o Viver com Dignidade. Se a escravidão retirou a dignidade do povo negro e, mesmo após a abolição, ele se viu sem trabalho, sem casa, sem saúde, sem direitos, levando a senzala na alma, como diz a canção de Lazzo Matumbi, o Fundo Baobá existe para transformar realidades, promover resistência, resiliência e reiterar que a sociedade brasileira não será uma sociedade justa, enquanto não houver liberdade e equidade racial para a população negra.