Empreendedorismo negro: Chefs investem nas comidas africanas e têm sucesso

“No tabuleiro da baiana tem: Vatapá, Caruru, Munguzá…”  O verso do compositor Ari Barroso (1903-1964), feito em 1936 e imortalizado na voz de Dorival Caymmi, mostra como a culinária africana está incorporada à cultura do Brasil. Afinal, os povos negros, sequestrados de África e trazidos à força para cá, conferem ao país outros universos de conhecimentos, cores e sabores, desde 1530.

As comidas são algumas  das mais ricas fontes culturais de um povo. Porém, ao contrário do que ocorre com a culinária dos povos europeus que colonizaram o Brasil – e que figuram nos cardápios dos mais caros restaurantes das capitais brasileiras -, as diferentes culinárias  encontradas nos 54 países que compõem a África sofrem rejeição, apesar de terem  muitos de seus elementos em alguns dos mais cultuados pratos da cozinha brasileira. Acarajé, xinxim, vatapá, caruru, amalá, abará, cuscuz, mungunzá, angu e feijoada:  essas iguarias e inúmeras outras estão inseridas dentro do que se chama hoje de comida brasileira. A origem de muitas delas, porém, está nos porões dos navios negreiros que aportaram na costa de Pernambuco, da Bahia e do Rio de Janeiro ainda antes de 1550. 

A diversa culinária africana permanecia invisível, até que uma polêmica televisiva chamou a atenção para sua existência. Houve uma zombaria a uma comida, o Ugali, feita por um camaronês, o chef Sam. Os envolvidos na prova do Ugali mencionaram que poderiam morrer depois de comer. A manifestação viralizou na internet, gerando protestos. 

A dedicação em produzir a culinária dos países africanos  tem sido o meio de vida de muita gente envolvida com gastronomia.  Uma empreendedora que apostou nisso é Rosilene Rodrigues dos Santos, 60 anos, mais conhecida no Recife (Pernambuco) como Rose Tabuleiro. “Tabuleiro é um instrumento onde se expõem as mercadorias ou quitutes para venda. Era muito usado pelas mulheres negras alforriadas ou escravizadas, para vender nas ruas os quitutes produzidos por elas mesmas”, explicou Rose Tabuleiro, revelando de onde vem o apelido. O tabuleiro se transformou no Tabuleiro Culinária Afro Brasileira, empreendimento de Rose que já está no segmento de restaurantes há 20 anos. 

Segundo dados de 2020 do Global Entrepreneurship Monitor (GEM),  há cerca de 24 milhões de mulheres empreendedoras no Brasil.  A Taxa Total de Empreendedores (TTE) entre pretos é maior do que a de brancos, de acordo com a pesquisa do Instituto Brasileiro da Qualidade e Produtividade (IBQP), Sebrae e GEM 2019: 16,5%. Empreendedores brancos são 15,2%, respectivamente. Um dos eixos programáticos do Fundo Baobá para Equidade Racial é o do Desenvolvimento Econômico. Para nós, promover o desenvolvimento econômico da população negra significa apoiar iniciativas de formação de cidadãos e cidadãs para o ingresso no mercado de trabalho formal ou para o seu aprimoramento, nos mais diferentes setores; que estimulem o empreendedorismo como  engrenagem para o emprego e geração de renda; defendam a diversidade e a equidade como um valores  na indústria, comércio, serviços e demais áreas; ou mesmo o apoio a iniciativas que protejam os direitos das trabalhadoras e trabalhadores domésticos ou ampliem o acesso da população negra ao crédito. 

Rosilene Rodrigues dos Santos – Rose Tabuleiro – Tabuleiro Culinária Afro Brasileira

A jornada de Rose Tabuleiro não foi fácil. Um dos motivos, o estigma que existe em relação à culinária africana. “Existe um preconceito histórico com relação a tudo que é considerado africano no Brasil. Em relação à culinária, isso é percebido quando não se ressalta nas preparações da comida brasileira a contribuição do povo africano nos pratos desta culinária. Muitas vezes se referem a esses pratos como preparações regionais, mas não ressaltam a identidade do povo de origem”, afirma Rose.

Rose vê como fruto do racismo estrutural a pouca difusão da culinária dos países africanos. “No Brasil,  o racismo é estrutural. Ou seja, está na base de todas as nossas relações. Nessas relações, tudo que se refere ao povo preto, consequentemente com raiz africana, é taxado como não tendo valor. Portanto, não deve ser difundido”, afirma. 

Outros dois nomes que trabalham com comidas africanas são Leila Ione Oliveira, 47 anos, e André Luis Maciel Lobão, 44. O interesse deles veio por meio da religiosidade. Ambos são iniciados no Candomblé. Leila há 10 anos. É Yabassé, cargo dado às mulheres para serem guardiãs dos segredos da comida sagrada e ritual dos Orixás. André Lobão é iniciado há 15 anos. É Egbomi (alguém que está na direção de ser Ialorixá ou Babalorixá). Ambos integram a comunidade do Ilê Axé Alagbedê Olodumare. 

A evolução de Leila e André na culinária africana deu origem ao Cozinha Ancestral, restaurante localizado em São Luís (Maranhão) e referência no local. Ambos reconhecem que há pouca difusão do seu tipo de trabalho no Brasil, mesmo o país contando com um contingente de 56% de gente negra. “Vivemos no Brasil um complexo cultural colonialista e racista que é estrutural. Ele nos impediu e nos distanciou da soberania alimentar africana, assim como de seus mitos e tabus. Além disso, a disseminação racista sobre a relação sacrificial do alimento, tradicionalmente presente na cultura africana, contribuiu para a construção de um imaginário preconceituoso, macabro e perverso sobre a origem, o manuseio e o propósito do alimento na culinária do povo africano e dos praticantes de seus ritos ancestrais na diáspora”, diz André Lobão.

Leila Ione Oliveira e André Luis Maciel Lobão, Cozinha Ancestral

Leila Oliveira, uma mulher afro-ameríndia, nascida em Belém, no Pará, cresceu dentro do mercado Ver-o-Peso, centro comercial e gastronômico da cidade. Aprendeu a base da culinária em meio a ervas, raízes, frutos e pescados ofertados pela floresta e pelos rios. Para ela, há pouco conhecimento sobre a cultura alimentar no Brasil. “O povo brasileiro, apesar de desfrutar de uma diversidade cultural na sua alimentação, pouco conhece a origem dos ingredientes, receitas, mitologias e tabus que envolvem o imaginário da herança dos povos africanos e indígenas. Fomos educados com um referencial civilizatório europeu e uma economia pautada no capital norte-americano. Esquecemos, porque nos foi negada, a história e a cultura do povo africano. A culinária de um povo é uma de suas principais manifestações culturais. Fala de como os ancestrais nos ensinaram a comer para ter longevidade e sermos felizes”, afirma. 

 “Costumo dizer que trabalho com culinária afro-brasileira e saliento que a contribuição do povo preto da África com o povo preto do Brasil foi e tem sido de extrema importância na formulação desta cozinha tão marcante e rica em qualquer um dos seus territórios. Qualquer preparação advinda destes povos nos representa e reafirma o quanto eles contribuíram para que este país seja engrandecido e enegrecido nesta área”, diz Rosilene, a Rose Tabuleiro. 

André Lobão e Leila Oliveira fizeram um convite a quem for a São Luís: passar no Cozinha Ancestral e comer o Banquete do Caçador. Rose Tabuleiro mandou uma receita para ser experimentada pelos leitores e leitoras:  

Rose Tabuleiro

“Quero, nesta receita, ressaltar a parceria entre o povo indigena e o povo preto, que fez com que esta iguaria se tornasse patrimônio do povo brasileiro, a  Tapioca, uma raiz cultivada e transformada pelos povos indígenas e transformada em culinária saborosa e nutritiva pelas mãos negras.”

Tapioca Ensopada no leite de coco

Ingredientes:

500 gr de goma para tapioca (não é sagu)

500 ml de leite líquido (de caixinha)

300 gramas de coco ralado fresco

100 gramas de açúcar

sal a gosto

10 gramas de canela em pó

Modo de Preparo:

1- peneire a goma para tapioca e faça as tapiocas(de forma tradicional) e reserve,

2- coloque no liquidificador o coco ralado fresco com o leite líquido e coe. Adoce com o açúcar e parte da canela em pó,

3- em um refratário coloque as tapiocas em camadas alternadas com os leites reservados antes

4- polvilhe com o restante do coco ralado fresco e o restante da canela

5- leve à geladeira por pelo menos 2 horas antes de servir


Observações da chef:

1.  Se for servir como sobremesa sirva gelado
2. Se for servir no café da manhã ou jantar, sirva em temperatura ambiente