Por Anna Suav* e Tamara Mesquita*
A partir de diagnósticos dramáticos resultantes da pandemia da Covid-19 sobre como seus efeitos nocivos também afetaram a saúde mental de comunidades quilombolas localizadas nos municípios de Baião e Oeiras do Pará, regiões do Estado do Pará que reúnem um conjunto de comunidades remanescentes de quilombos, é que o projeto ‘Saúde Mental Quilombola: Direitos, Resistência e Resiliência’ se propõe a ter como frente de atuação o incentivo à vida, na aplicação de ações de educação, comunicação, audiovisual, direito, enfermagem e psicologia para essas comunidades, buscando apresentar, aprofundar e naturalizar a temática da saúde mental da, e para, a população negra e quilombola no território amazônida.
É um exercício para além de si, das obviedades, das temporalidades, dos sujeitos, espaços, e da ciência moderna, a busca por um sentido que venha a ser coletivamente aplicável para a palavra saúde, seja ela física ou mental. Das subjetividades individuais e do que é capaz de contemplar um grupo, eis o desafio lançado, uma vez que o viver enquanto comunidade quilombola na Amazônia, é resistir três, quatro vezes mais, é cotidianamente revisitar a história plantada no passado como forma de nutrição para um possível futuro.
Promovido em conjunto pelo Baobá – Fundo para Equidade Racial, Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e Coordenação Estadual das Associações de Comunidades Remanescentes de Quilombo (Malungu/Estado do Pará), Associação das Comunidades Remanescente de Quilombo de Igarapé Preto a Baixinha (ARQIB), o projeto “Saúde Mental Quilombola”, iniciado em dezembro de 2022 com apoio da Johnson & Johnson, visa dialogar com lideranças comunitárias, trabalhadores da saúde, juventude, homens e mulheres, em uma espécie de coligação na criação de estratégias para o resgate da autoestima de pertencer a um quilombo.
Pois, afinal, o que é quilombo? A palavra quilombo é originária do idioma africano quimbunco, que significa: sociedade formada por jovens guerreiros que pertenciam a grupos étnicos desenraizados de suas comunidades. Para avançarmos em direção ao objetivo essencial do projeto, é fundamental fazermos o movimento de Sankofa, retornar, para nos lembrarmos da motivação primária: o resgate. Para a moradora de França e artesã, Claudilene Rocha, “ser quilombola é se identificar com a nossa cultura, nosso conhecimento, é continuar o que nossos ancestrais passaram para gente’’.
Aquilombar é um processo de resistência, é um mecanismo de defesa na luta pelo direito à vida, à liberdade. “Aos remanescentes das Comunidades de quilombos que estejam ocupando suas terras, é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes títulos respectivos” – Art. 68/ADCT/CF1988.
“A propriedade quilombola é inalienável, impenhorável e imprescritível. Isso quer dizer que a terra não pode ser cedida, transferida nem vendida; também não pode ser retirada do patrimônio da associação para quitar eventuais dívidas; e o título não prescreve, não pode ser revogado nem cancelado”, Malungu*.
Em sua quarta viagem ao território quilombola dos municípios de Baião e Oeiras do Pará, e a partir da convivência coletiva e análise pela equipe técnica, foi entendido que as demandas de saúde mental e emocional das comunidades são engatilhadas por diferentes esferas. Como já fora apontado, a pandemia surge como marco de instabilidade, enfatizada pelo racismo historicamente operante, os contextos socioeconômicos e socioambientais contribuem com o desencadeamento de dificuldades na manutenção dos recursos necessários para a sobrevivência e manutenção das famílias, tornando a vivência e permanência nos quilombos algo desafiador, repercutindo negativamente na sociabilidade da comunidade, afetando a juventude, grupo identificado como o mais exposto aos impactos sofridos na saúde mental.
Frente a essas dificuldades, o projeto age a fim de trazer à luz o protagonismo fundamental das comunidades a partir das suas próprias tecnologias ancestrais, para o fortalecimento comunitário e o consequente avanço em fatores de proteção para demandas de saúde mental.
Sobre essa temática, o psicólogo Álvaro Palha relata sobre a metodologia utilizada nas atividades “A concepção de saúde mental que adotamos envolve uma visão ampliada sobre a constituição do sujeito, na compreensão de que o corpo é constituído por múltiplas e complexas dimensões e domínios (biológico, psíquico, histórico, territorial e político), ou seja, os processos de produção daquilo que chamamos saúde e doença inscrevem-se além de noções biomédicas centradas na individualidade e se expandem para pensar o trabalho a desenvolver, pela via da coletividade histórica, social e política”. O profissional afirma que, via de regra, em relação a qualquer trabalho em comunidades, o diálogo é o que norteia as ações, o entendimento das demandas do território e ver a partir deles (quilombolas) que tipos de manejos já estão disponíveis, para a partir disso decidir em conjunto que estratégias serão adotadas.
“O trabalho dos psicólogos na nossa comunidade veio num momento em que a gente estava precisando muito! A pandemia escancarou o que o nosso povo já estava sofrendo, e o trabalho deles foi de suma importância no nosso território, o quanto que ajudou, e o quanto ainda pode ajudar não só no aspecto profissional, mas enquanto seres humanos. Eles tinham horário para começar mas tinham pra terminar, eles ajudaram muitas pessoas, inclusive a mim, eu só tenho a agradecer. O trabalho deles foi além!”, relata Nilva Martins, Presidente da ARQUIB.
É preciso enfatizar que existe uma história sobre práticas de cuidado, dos conhecedores dos remédios tradicionais, das parteiras quilombolas, das técnicas de agricultura, da organização comunitária para atividades de coletas na mata, orientações sobre preparo de alimentos e manejo de suas restrições, conhecimentos sobre matérias primas e técnica, que se configuram em um legado. Como por exemplo, afirma Dona Deldete, morada da comunidade de Pampelônia, “Deus me deu o dom de puxar. Eu puxava a barriga, endireitava a criança”. Se tais saberes não são considerados na contemporaneidade e são descartados em prol de uma atualização, que não considera o passado, temos uma grande perda a nível de conhecimento, mas também do que significa saúde mental para comunidades tradicionais.
Bianca Tsubaki, psicóloga que também atua no projeto, ressalta ainda que “É interessante lembrar que a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) em diálogo com a Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PNPCT), instituída em 2007, orientam que a promoção à saúde deve ser por meio da prestação de um cuidado culturalmente seguro e eficaz, reconhecendo que os saberes tradicionais locais são constituídos e constituintes nas e pelas relações culturais e sociais, fundamentais para a construção de estratégias de atendimento à saúde”.
São as violações de direitos, a falta ou o pouco acesso aos recursos que possam garantir minimamente a dignidade de vida que impactam diretamente no adoecimento psíquico.
A equipe interdisciplinar do projeto vem trabalhando em vários segmentos que resultam em um mesmo propósito, e falar dos direitos básicos à terra e a sua própria identidade é reforçar o protagonismo de cada quilombola e fornecer subsídios para sua recuperação. E tratando-se dos territórios quilombolas da ARQIB, os saberes tradicionais mantêm-se vivos por meios do Samba de Cacete, do grupo de Quadrilha composto por adolescentes e jovens adultos, das ervas e plantas medicinais enquanto recurso locais no tratamento de doenças, bem como os saberes ancestrais do grupo de parteiras, da festividade do dia da Tiração de Rei, do festejo ao São José Operário, e mais.