No dia 25 de julho é celebrado no país o Dia da Mulher Negra. A data foi instituída no ano de 2014, juntamente com o Dia Nacional de Tereza de Benguela, líder do Quilombo do Quariterê em Mato Grosso no século 18. A história conta que, sob a sua liderança, a comunidade do Quariterê, que abrigava mais de 100 pessoas, com destacada presença de negros e indígenas, resistiu à escravidão por duas décadas.
Para a doutora em História, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), escritora e liderança apoiada do Programa de Aceleração e Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, Giovana Xavier, o dia 25 de julho é uma data muito importante porque oficializa o direito humano e o dever patriótico de celebrar a história de mulheres negras, além de suas ideias, emoções e projetos políticos: “Aprendi com a professora Ida Mara Freire um saber precioso: ‘ao celebrar saímos do automático’. Assim, o 25 de julho é o desvio de um olhar automático de inferioridade e objetificação para um olhar vivo, essencial para a missão de restituir a humanidade negada a mulheres negras pelo Estado brasileiro”.
Giovana acredita que este novo olhar impacta todos os grupos raciais: “Pois ao enxergar mulheres negras pelas vias do brilho, criatividade e protagonismo, transformamos positivamente as relações de ensino-aprendizagem, pesquisa científica, relações pessoais e política institucional”.
Entretanto, em um país com 56,4% da população autodeclarada negra (preta e parda) e onde as mulheres negras representam 27,8% da população brasileira (IBGE), ainda há um longo caminho para inserção deste grupo em espaços de poder e tomada de decisões. Giovana acredita que a figura e a história de Tereza de Benguela seja inspiração para outras mulheres negras: “Quando pensamos que, apesar dos indiscutíveis avanços, mulheres negras permanecem sub-representadas em espaços estratégicos de decisão como a ciência e a política institucional, a sua história é inspiradora, pois alude literalmente ao fato de que nossos passos vêm de longe.”
Para explicar a grandeza de Tereza de Benguela, Giovana faz questão de recorrer à reflexão feita pela assistente social e coordenadora geral da Ong Criola, Lúcia Xavier, sobre “sujeito político, mulher negra”: “Tereza é a materialização deste sujeito político, pois definiu nos próprios termos os sentidos de ser mulher e negra. Sentidos estes ligados à autonomia, coragem, governança, que foram combustíveis para colocar em prática o sonho da liberdade para a comunidade negra no Quilombo do Quariterê em Mato Grosso no século 18”.
História não contada
No ano de 2003, foi instituída a lei 10.639, que inclui no currículo oficial da rede de ensino do país a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”. Porém, mesmo com essa lei, histórias de mulheres negras como Tereza de Benguela, Maria Felipa, Dandara dos Palmares, Luísa Mahin, entre outras, seguem desconhecidas. Para a historiadora Giovana Xavier, existe uma grande diferença entre história desconhecida e história não contada: “As histórias destas mulheres podem até não ser contadas associadas aos seus nomes nos espaços formais de educação, o que, sem dúvida, é uma grande injustiça. Mas para expandir os horizontes, também é importante considerar que seus legados fazem-se presentes na maioria das famílias das classes trabalhadoras brasileiras, chefiadas por mulheres negras que mantêm viva a tradição de liderança em casa, ativismo político em comunidades, criação de definições de cuidado e maternidade, alinhados às suas experiências de vida e leituras de mundo.”, finaliza.
O nascimento do Dia da Mulher Negra no Brasil e a concretização da Marcha das Mulheres Negras
É importante ressaltar que o Dia Nacional de Tereza de Benguela e da Mulher Negra, instituído e celebrado no Brasil desde 2014, é inspirado no Dia Internacional da Mulher Negra, Latino-Americana e Caribenha. O reconhecimento desta data surgiu após o 1º Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas realizado entre os dias 19 a 25 de julho de 1992, em Santo Domingo, na República Dominicana, no qual levaram ao evento discussões sobre os diversos problemas e alternativas de como resolvê-los. A partir desse encontro nasceu a Rede de Mulheres Afro-latino-americanas e Afro-Caribenhas.
Quem participou deste encontro em Santo Domingo foi a historiadora, mestre em Educação, coordenadora executiva do Odara Instituto da Mulher Negra e do Fórum de Promoção de Igualdade Racial (FOPIR), também secretária-executiva da Articulação de Mulheres Negras Brasileiras, Valdecir dos Santos Nascimento, que faz questão de frisar a principal motivação da sua participação e de outras mulheres negras brasileiras neste encontro: “Nós nos organizamos em 1992 e fomos à Santo Domingo para protestar contra as celebrações dos 500 anos do Descobrimento da América. Nós somos um movimento em ressonância ou consonância com toda a conjuntura local, nacional e internacional. Portanto, a nossa participação não foi apenas por uma incidência contra a violência doméstica ou até mesmo contra o racismo, mas sim uma incidência contra um modelo que escravizou e colonizou os povos da América e os povos africanos que foram trazidos para cá”.
A Articulação de Mulheres Negras Brasileiras (AMNB) começou a dar os primeiros passos nos anos 1990, mas ela se consolidou em 2000, para fortalecer a participação das mulheres negras na 3ª Conferência Mundial Contra o Racismo, organizada pela Organização das Nações Unidas (ONU) e realizada em Durban, na África do Sul, em 2001. “Nós sempre atuamos no Brasil, no entanto não estávamos atuando de forma tão organizada, com uma articulação nacional. A partir deste momento, nós começamos a não apenas pautar questões prioritárias, mas como também a mobilizar esses debates em torno das organizações de mulheres negras no Brasil”, afirma Valdecir.
Para a secretária executiva, o marco histórico da AMNB e um importante acontecimento para potencialização das organizações de mulheres negras, foi a 1ª Marcha das Mulheres Negras, que teve toda a sua articulação em 2013, mas foi realizada no dia 18 de novembro de 2015, reunindo cerca de 100 mil mulheres em Brasília. “A Marcha com sua organicidade e com a sua clareza de quais são os próximos passos que ela vai demarcar, tornou-se um espaço político de qualidade de incidência política e de visibilidade do movimento de mulheres negras.”
Hoje, olhando para trás, vendo a sua participação na 1º Encontro de Mulheres Negras Latinas e Caribenhas em Santo Domingo, que gerou o Dia da Mulher Negra, além da sua atuação na AMNB que anos depois consolida na Marcha das Mulheres Negras, Valdecir enxerga avanços significativos: “Depois de todas essas ações, nós vimos aumentar o número de mulheres negras candidatas a cargos eletivos, o que nos mostra uma crescente. Mesmo que a eleição de 2020 não tenha expressado o número de concorrentes, de uma forma ou de outra você vai perceber que o número de mulheres trans e cis negras eleitas, começa a fazer pressão na sociedade brasileira”. A fala de Valdecir afirma a informação do Tribunal Superior Eleitoral, a respeito das eleições municipais de 2020. Em números totais, 84.418 mulheres negras foram candidatas a vereadoras em 2020, mas apenas 3.634 foram eleitas, representando 6% nas câmaras municipais.
A força da mulher negra
A ativista Angela Davis tem uma famosa frase que diz “Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se move com ela”, Valdecir faz coro à frase da norte-americana, ressaltando que não existiria movimento negro no Brasil sem a articulação das mulheres negras: “O movimento negro brasileiro é conduzido pelas mulheres negras, não tem como solapar o nosso protagonismo. É o movimento mais organizado no país, porque você tem quase todos os segmentos de mulheres negras organizadas, você tem jovens negras feministas, você tem ialorixás organizadas, mulher trans, além de mídia negra com o protagonismo de mulheres negras, produção literária, entre outras. Então, olhando o Brasil e essa mobilização de sujeitas políticas da nossa própria história, ela ganha cada vez mais força”.
A própria criação do Dia da Mulher Negra no Brasil, no dia 25 de julho, em 2014, Valdecir, atribui a essa força: “O Dia de Tereza de Benguela foi instituído porque o nosso movimento se apresenta como uma força política que precisa ser reconhecida, então essa data é evidência de que nós mulheres negras estamos atuando de forma qualitativa para mudança dessa nação”.
Justamente neste contexto, que a historiadora Giovana Xavier escreveu o livro Você pode substituir mulheres negras como objeto de estudo por mulheres negras contando sua própria história que, segundo a própria autora, tem a premissa de fazer as mulheres negras pensarem e refletirem sobre suas experiências e organizarem as suas ideias: “Lendo isso, parece óbvio, mas no dia a dia costuma ser desconsiderado uma vez que vivemos em um país no qual vigora uma história única da intelectualidade. Gosto de associar o livro, e todo o meu trabalho científico, à oferta de uma alternativa epistemológica na qual mulheres negras ocupam o centro e conduzem a análise”.
Isso faz Valdecir Nascimento relembrar a carta escrita pela organização da Marcha das Mulheres Negras, em 2015, apresentando o evento e mostrando a força da mulher negra: “Na carta nós escrevemos ‘nós não queremos reivindicar, nós estamos generosamente apresentando para vocês as possibilidades de fazer um outro Brasil’. Nós, mulheres negras, apresentamos para o Brasil uma estratégia e uma perspectiva de um outro projeto de nação onde a igualdade e a equidade sejam os pontos que estruturem as relações neste país”, finaliza.