O legado de Marielle Franco na história das mulheres brasileiras

Por Fernanda Lopes, Diretora de Programa e Giovanni Harvey, Diretor Executivo no Baobá – Fundo Para Equidade Racial.  

 

Uma tragédia brasileira que tomou conta da mídia nacional e internacional completa cinco anos: o ataque brutal que vitimou a vereadora Marielle Franco e seu motorista, Anderson Gomes, ocorrido no bairro do Estácio, região central do Rio de Janeiro, na noite de 14 de março de 2018. Um crime hediondo, que causa repulsa na opinião pública até hoje, gerando a recusa de um libelo que não encontrou responsáveis até o momento. A sociedade exige que o crime seja solucionado. Marielle Franco tornou-se um símbolo da luta pelos direitos humanos e fonte inspiracional para um sem número de mulheres que, a partir do exemplo dela, estão mudando seus horizontes.

Euclides da Cunha escreveu que o sertanejo é forte. O favelado também o é. Marielle Franco cresceu como favelada na Maré, uma das comunidades que compõem o Complexo da Maré. Em suas aparições públicas ou no púlpito da Câmara do Rio de Janeiro, ela sempre se apresentava como mulher negra, mãe, socióloga e cria da Maré. Para ocupar o púlpito e um gabinete na Câmara, foi eleita em 2016 com 46.502 votos para um mandato de quatro anos que não chegou a concluir. Uma mulher negra eleita, parte da comunidade LGBTQIAP+. 

A opressão funciona como o lodo e suas impurezas, em meio às quais coisas boas podem florescer. Na natureza, a flor de lótus é um exemplo. Na história de Marielle, foi o assassinato da amiga Jaqueline que a fez decidir por um trabalho voltado à defesa e promoção dos direitos humanos, à vida digna e sem violência nas favelas e por uma crítica acirrada aos métodos e processos de trabalho das Unidades de Polícia Pacificadora, as UPPs. Ao decidir militar em prol dos direitos humanos, em ser a voz dos migrantes nordestinos menos favorecidos e peitar o sistema de discriminação e morte contra os que têm orientação sexual oposta àquela considerada norma, Marielle Franco sabia que teria que batalhar em inúmeros fronts. Mas ela era uma guerreira ímpar. Era figura que vergava, mas não quebrava, como o bambu. Ela se impunha, reivindicava e não descansava enquanto não obtinha resultados. Gente com esse perfil é taxada de incômoda. Marielle era a linguagem do povo, por ser sua representante legítima. 

 A representatividade de Marielle Franco ganhou corpo nas eleições municipais de 2020. A tradução do empenho das mulheres negras em ter suas vozes sendo ouvidas, suas ações definindo agendas e influenciando o cenário político, foi estampada em números: concorreram a postos nas Câmaras Municipais do país 84.418 mulheres negras, 856 concorreram ao cargo de prefeitas em suas cidades. O movimento Eu Voto Em Negra surgiu de articulações femininas e se baseou em uma frase dita por Marielle Franco: “podemos ser diversas, mas não somos dispersas!”. Os dizeres da vereadora geraram uma onda de afeto e solidariedade feminino-negra que, até então, não havia sido vista em termos de presença política. 

O nome de Marielle já tinha alcançado projeção internacional por ser ela uma defensora dos direitos humanos. A sua morte, porém, o elevou a um fenômeno mundial. A repercussão internacional foi muito grande. Alguns dos principais veículos da imprensa mundial, como The New York Times, The Wall Street Journal e Washington Post (Estados Unidos), The Guardian e BBC (Inglaterra), Le Monde e Le Figaro (França), El País (Espanha) e Der Spiegel (Alemanha) abriram e abrem seus noticiários para falar do agressivo acontecimento com a vereadora e seu motorista. E a história não fica por aí: todos os anos esses veículos cobram um desfecho conclusivo da investigação criminal. Isso tornará a acontecer neste 2023. 

O fenômeno no qual o seu legado se transformou é uma força da natureza, influenciando todo lugar por onde passa. Nos Estados Unidos, a Universidade Johns Hopkins, em sua Escola de Estudos Internacionais Avançados, criou a Bolsa Marielle Franco, após receber uma doação anônima. O programa é voltado aos estudos de relações internacionais, com foco na América Latina. O Marielle Franco Community-Design Award é um prêmio de 10 mil euros criado em Portugal para incentivar arquitetos que trabalham com favelas ou áreas em que vivem pessoas em vulnerabilidade social. Uneafro, Pré Vest Comunitário, Emancipa e outras iniciativas educacionais criaram cursinhos pré-vestibulares voltados a alunos, alunas e alunes negros, negras e negres visando facilitar o caminho de acesso ao ensino superior.  

O Fundo Baobá para Equidade Racial, em 2019, baseou-se no impulso influenciador que a atuação da mulher negra, vereadora, favelada e LGBTQIAP+ havia deixado como legado e criou o Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Seu objetivo: ampliar e consolidar a participação de mulheres negras em posições de poder e influência, por intermédio de investimentos em seus planos de desenvolvimento individual, formações políticas e técnicas, além da promoção do fortalecimento das organizações, grupos e coletivos liderados por elas. Isso ressalta a importância do financiamento com foco no desenvolvimento social, cujo impacto está nas transformações pelas quais as pessoas passam e, por consequência, são transmitidas a outras pessoas de seus territórios. O programa, que está em andamento, tem como parceiros Kellogg Foundation, Ford Foundation, Instituto Ibirapitanga e Open Society Foundations. Na primeira edição, selecionou 59 mulheres e 14 organizações, sendo que cada uma recebeu diretamente R$ 40 mil para investir em seu projeto e cerca de R$ 20 mil em investimentos indiretos (assessorias, coach, apoio psicossocial, formação política). Considerando os apoios coletivos e individuais, foram cerca de 200 beneficiárias diretas, 520 mil pessoas indiretamente impactadas e R$ 4 milhões de investimento direto. 

Organizações como a Abayomi – Grupo de Juristas Negras, de Pernambuco, por exemplo, têm o objetivo de ampliar a participação de mulheres negras no sistema nacional de Justiça. Hoje, após um início com cinco mulheres, já congrega quase uma centena de mulheres negras com atuação no Judiciário e lidera a mobilização nacional em defesa de mulheres negras no STF (Supremo Tribunal Federal). Esses espaços e cargos são, atualmente, ocupados por homens e mulheres brancos. 

Pesquisa feita pelo Conselho Nacional de Justiça em 2020 apontou a porcentagem de negros e negras nas diferentes esferas do Judiciário: entre os magistrados, a Justiça do Trabalho tem 15,9%; entre os servidores, a Justiça Eleitoral tem 34,7% e entre os estagiários, a Justiça Federal tem 59,4% de pessoas negras. 

Clara Marinho, graduada em administração e mestre em Desenvolvimento Econômico, é outra profissional apoiada pelo Programa Marielle Franco. Ela elaborou o projeto Construindo a Liderança na Administração Pública Federal, recentemente foi convidada a assumir o cargo de Coordenadora-Geral de Estudos e Acompanhamento de Temas Transversais e Investimentos Plurianuais no Ministério do Planejamento e Orçamento. Outra que se inspirou nos ventos deixados por Marielle foi a jornalista Jaqueline Fraga, autora do premiado livro-reportagem “Negra Sou”, que narra a ascensão da mulher negra no mercado de trabalho. O Instituto Marielle Franco foi criado por iniciativa da família da vereadora para manter acesa a chama de seu legado e ampliar o processo de valorização das vidas negras, femininas e periféricas e ainda funcionar como um espaço de educação transformadora onde também se oferece auxílio psicológico, legal, se promove arte e literatura, se realiza oficinas e outras ações voltadas para a herança de luta pelos direitos humanos deixada pela vereadora. Anielle Franco, irmã de Marielle e ministra da Igualdade Racial, Marinete da Silva, mãe de Marielle e Anielle, que é advogada popular, além de Luyara Santos, filha de Marielle, que é estudante de educação física, tiveram os projetos de ampliação de suas habilidades de liderança apoiados pelo Fundo Baobá. 

 A sociedade brasileira, e as mulheres em especial, está convicta do que quer, pode e deve fazer com o legado de Marielle Franco. Ela se foi, mas como herdeira de Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Elza Soares, Benedita da Silva, Esperança Garcia, Conceição Evaristo, Sueli Carneiro e tantas outras, plantou sementes que germinaram, florescem e dão frutos. Permanece ativa, por intermédio de ideias e causas que defendia. Suas certezas e ideais seguem vivos em mulheres, homens e pessoas não binárias que ela inspira. Marielle está e estará, sempre, PRESENTE! 

 

Artigo originalmente publicado no Nexo em 13/03/2023 

  • Fernanda Lopes é bióloga, mestre e doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP). Co-coordenou o Programa de Combate ao Racismo Institucional, uma parceria entre o governo brasileiro, o governo britânico e a ONU Brasil. Por 11 anos compôs a equipe do Fundo de População das Nações Unidas, escritório Brasil. Desde 2019 lidera a área de programas e projetos do Fundo Baobá para Equidade Racial e foi a responsável pela elaboração da teoria da mudança que orienta a implementação do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. 
  • Giovanni Harvey é diretor-executivo do Fundo Baobá para a Equidade Racial e tem 30 anos de experiência como executivo na iniciativa privada, na administração pública e no terceiro setor. Foi presidente do Diretório Central dos Estudantes da Universidade Federal Fluminense (1988 a 1989), empresário no setor de seguros e previdência privada (1994 a 2004), fundador da Incubadora Afro-Brasileira (2004) e consultor do Programa de Incubadoras do Ministério da Economia de Cabo Verde (2007). Exerceu funções estratégicas nos três níveis da administração pública nas áreas de direitos humanos, trabalho, ciência e tecnologia, assistência social, governança e igualdade racial. Foi secretário nacional de Políticas de Ações Afirmativas (2008 a 2009) e secretário-executivo (2013 a 2015) da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República. 

 

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