Precisamos falar sobre homem negro e o mercado formal de trabalho

No país no qual a população negra é a maioria, representando 56,1%, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), quando o assunto é mercado de trabalho e espaço de tomadas de decisões a situação é bem diferente. 

O estudo Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil, do IBGE, feito em 2018, mostra que as pessoas negras representavam 64,2% da população que não tinha emprego no país. Aos que integraram o mercado de trabalho, boa boa parcela atua na informalidade: 47,3% das pessoas negras têm trabalhos informais, enquanto o percentual de pessoas brancas é de 34,6%.

O mesmo estudo mostrou que pessoas negras no mercado formal de trabalho eram maioria, sendo um total de 57,7 milhões, enquanto o número de brancos era 46,1 milhões, refletindo a composição padrão da população brasileira. Porém, esses números se invertem quando entram na equação dados sobre o ensino superior e cargos de chefia. Dados apresentados pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), em 2017, mostra que a população negra correspondia a 32% das pessoas com ensino superior completo. Mas quando o recorte era a população com 25 anos ou mais, apenas 9,3% dos negros tinham ensino superior completo, enquanto na população branca havia chegado a 22,9%.

Aos negros que conseguiram se formar no ensino superior, enfrentam o desafio de não exercer a sua profissão no mercado formal de trabalho. Um estudo realizado pelo Instituto IDados, com base em dados da Pesquisa Nacional por Amostragem de Domicílios (PNAD Contínua) do IBGE, no primeiro trimestre de 2020, mostra que 35% dos negros com ensino superior trabalham em cargos que dispensam diploma, ou seja em cargos de nível médio ou fundamental. O percentual é superior ao de pessoas brancas que têm formação de nível superior em cargos com menor exigência educacional, que somam  28,5%. 

Sobre cargos de chefia, uma pesquisa do Instituto Ethos mostrou que os negros ocupam apenas 4,9% das cadeiras nos Conselhos de Administração das 500 empresas de maior faturamento do Brasil. Entre os quadros executivos, representam 4,7%, enquanto na gerência, apenas 6,3% dos trabalhadores são negros. 

Para falar sobre a presença do negro no mercado formal de trabalho, sobretudo do homem negro, o Fundo Baobá conversou com três profissionais de diferentes áreas, que contaram a sua trajetória profissional e a forma como tem atuado para abrir caminhos para mais pessoas negras no mercado de trabalho.

Para o empresário e contador Carlos Norberto Ribeiro, ser um homem negro foi um desafio em sua carreira profissional: “Aquela velha história: sempre com a qualificação superior comparada à de um colega não negro, no entanto com mesma remuneração e sendo preterido nas promoções e nos postos de liderança”. Hoje, aos 43 anos de idade, Carlos Ribeiro, além de ter MBA em Finanças e Auditoria, é proprietário da Pappo Consultoria, que atua diretamente com consultoria financeira, contabilidade estratégica, planejamento tributário e societário, além de atuar na área de recursos humanos, com recrutamento e seleção, treinamento e desenvolvimento, coaching e consultoria em diversidade: “A Pappo Consultoria surgiu da ideia de que poderíamos prestar um serviço de qualidade para pequenos empreendedores, sobretudo afro empreendedores, com a mesma qualidade e resultados alcançados nas grandes empresas para as quais eu, atuando na área financeira/contábil/tributária, e minha sócia – e esposa – Érika Damasceno, que atua na área de RH, treinamento e desenvolvimento, trabalhamos, trazendo melhorias nos processos, economizando milhões em créditos tributários e tornando as equipes mais produtivas, com sustentabilidade e humanidade”.

Carlos Ribeiro ao lado da esposa e sócia Érika Damasceno, proprietários e diretores da Pappo Consultoria

Com 40 anos de idade e com formação em administração, Gilvan Bueno atua hoje  como especialista em finanças, gerente educacional da Órama e compõe a estrutura de governança do Fundo Baobá, como membro do comitê de investimentos. Sendo um homem negro, ao retratar os desafios encontrados em sua carreira profissional, ele afirma que eles podem ser divididos em três variáveis: renda, tempo e espaço. Segundo o administrador, estudos mostram que quanto menos conhecimento intelectual e educacional você tem, menos renda você terá. E, com isso, você perde a capacidade de competir por melhores oportunidades financeiras e alocação no mercado: “Na minha vida, eu consegui enxergar isso cedo pela criação da minha mãe e avô, assim minha caminhada profissional ficou pautada em competir com pessoas de melhores soft skills (habilidades comportamentais) e renda. O fator raça trouxe um olhar atento dos meus gestores em construir um ambiente em que todos respeitassem meu trabalho”.

Falando no fator tempo, para Gilvan Bueno é importante fazer um recorte temporal. Se estamos falando no século XXI, ele acredita que houve avanços na discussão, mesmo que pequenos. “Podemos trazer conceitos importantes, como ESG (Governança, Social e Ambiental), que mostra a relevância de ter diversidade e maior responsabilidade social. Estes critérios têm sido importantes para negros, mulheres, indígenas e pessoas com diferentes orientações sexuais”, diz o especialista em finanças, que também reconhece que o século XX foi importante para presenciamos os grandes debates sobre racismo nas instituições, a falta de diálogo e a restrição dos direitos e oportunidades em diversos campos produtivos da formação de capital privado e público: “Não quero dizer que hoje é muito melhor, mas as instituições privadas estão preocupadas com isso e querem aumentar seu comprometimento social e ambiental. O desenvolvimento da caminhada profissional está dentro da construção do século XXI, os desafios aconteceram, mas sempre fui respeitado nas instituições que trabalhei pelos meus resultados. A regra sempre esteve bem definida”.

Gilvan Bueno, administrador, especialista em finanças, gerente educacional da Órama e membro do comitê de investimentos do Fundo Baobá

Ao falar de espaço, Gilvan diz que é preciso reconhecer em qual espaço o percurso para a profissionalização é mais árduo: “Em ambientes com alta competitividade, os desafios são maiores e é necessário ter um bom conteúdo educacional e ser automotivado para persistir e vencer. Quando olhamos para espaços com pouco desenvolvimento humano, temos uma grande perda intelectual, social e econômica. E a população negra está em muitos destes locais e acaba sendo atingida e fica distante de aumentar sua renda para acessar outros espaços”, afirma Gilvan, que também acredita que o acesso a educação está atrelado ao crescimento profissional: “Alguns conceitos da educação empreendedora das escolas públicas e de cursos de extensão me ajudaram na caminhada profissional e a minha história é um misto dessas duas situações: quando aumentei meu nível educacional,  consegui novos espaços para me desenvolver, o que acelerou o meu crescimento profissional”, completa.

Sendo o mais jovem entre os três, com apenas 27 anos de idade, o jornalista Ruam Oliveira é fruto desse mercado de trabalho do século XXI, atento às diversidades: “Durante minha trajetória profissional tive o privilégio de estar envolvido com organizações e instituições que trabalham em favor da diversidade”, destaca. Mas reconhece que ser um homem negro também impôs desafios em sua jornada profissional: “Acho que senti isso muito mais na faculdade e na busca por estágios, por exemplo. Isso misturado ao fato de ser alguém da periferia pode ter tido um peso maior. De alguma forma aprofundou a minha percepção a respeito das dificuldades encontradas. Vejo também que o racismo atravessa todas as esferas da nossa vida e, somente há pouco tempo, venho fazendo as conexões necessárias sobre as respostas negativas que já tive”.

Ruam Oliveira, jornalista e idealizador do Banco de Talentos Negros

Além de atuar como repórter na área de educação, hoje Ruam está à frente do projeto Banco de Talentos Negros, criado em 2019, ao lado da jornalista Beatriz Sanz e da publicitária Angel Pinheiro. Trata-se de uma iniciativa que auxilia profissionais da área da comunicação a ingressarem no mercado de trabalho: “O Banco de Talentos Negros surgiu de alguns esforços isolados da Angel e da Beatriz inicialmente. Elas tinham planilhas com alguns contatos para indicação em jornalismo e publicidade. Quando a Beatriz me contou do projeto, decidimos juntos criar um drive, organizar em pastas, separar por estados e áreas e assim começamos. Focamos na comunicação por ser nossa área de atuação. As empresas começaram a nos procurar pedindo indicações e sugerindo vagas. Hoje conseguimos cadastrar mais de 400 profissionais espalhados por todo o Brasil e contamos com uma gama grande de instituições que nos procuram solicitando acesso ao Banco”.

O fato de Carlos, Gilvan e Ruam serem três homens negros com curso superior completo, atuando dentro da área na qual se especializaram e estando presentes em espaços de tomadas de decisões, é algo a ser celebrado, mas revela um imenso caminho a ser percorrido. As dificuldades de acesso ao ensino superior, de certo modo ajuda a entender essa falta de pessoas negras em cargos administrativos. Uma pesquisa do IBGE, realizada no ano de 2018, mostrou que um terço dos brasileiros entre 19 e 24 anos não havia conseguido concluir o ensino médio naquele ano. Entre os que não conluíram esta etapa, 44,2% são homens jovens negros. Para Gilvan Bueno, este alto número de evasão escolar está atrelado à questão profissional: “Os homens acabam desistindo de concluir o ensino médio e não almejam o nível superior porque acreditam que é mais oportuno ganhar recursos no curto prazo ou, em muitos outros casos, precisam sustentar sua família”. 

Ações afirmativas para ingresso do negro no ensino superior, como cotas raciais e programas como o ProUni (Universidade para Todos), geraram aumento de pessoas negras nas universidades. Se em 2015, o IBGE registrou 1,7 milhão de homens negros no ensino superior, em 2020 esse número chegou a 2,7 milhões – um aumento de 59%. Mesmo assim, o número de homens negros no ensino superior ainda é inferior comparado ao número de mulheres negras (4 milhões), homens brancos (5,4 milhões) e mulheres brancas (6,8 milhões).

Sobre a ausência do homem negro na universidade, o que também ocasiona na sua ausência no mercado de trabalho qualificado, Gilvan Bueno acredita que é uma questão bem mais ampla: “Envolve melhor distribuição de renda, melhora do índice de desenvolvimento humano e criação de cursos profissionalizantes de curto prazo para criar um aumento de renda nas famílias e permitir que tanto homens quanto mulheres possam se dedicar de maneira integral aos estudos”.

Para Carlos Ribeiro, o aumento da presença de mulheres negras nas universidades é em razão do empoderamento feminino e o feito deve ser celebrado: “Pelo fato das mulheres negras serem as grandes mantenedores do lar, da família, do sustento, trazendo unidade, mesmo enfrentando o abandono, a violência doméstica, creio que por conta disto tudo, a mulher se potencializou, se empoderou, se esforçou mais, e o resultado é que a mulher negra acaba almejando mais, e isto responde porque a mulher negra ocupa uma posição em muito casos, superior a do homem negro”. Entretanto, ele acredita que isto não venha de alguma forma minar a posição do homem negro: “Obviamente há outros fatores que acabam por contribuir com esta estatística, e um deles, pode se explicar pelo genocídio da população negra, que é maior em homens negros”.

Ruam Oliveira também vê com bons olhos essa alta procura por mulheres negras em posições de poder e com chances de empregabilidade: “É preciso levar em consideração que, se observarmos o espectro de desigualdade social, a mulher negra ficou por anos em um patamar inferior ao homem negro. Além de sofrer as dificuldades e impactos do racismo, ainda carrega nos ombros as dificuldades do machismo e do sistema patriarcal. É uma questão desse campo estrutural que tanto se fala. A escala é: homem branco – mulher branca – homem preto e mulher preta”. A fala de Ruam Oliveira faz relação com um estudo realizado pela Organização Internacional do Trabalho (OIT), no ano de 2017, que mostrou que a média de salário do homem branco é R$ 2.507; a da mulher branca, R$ 1.810; a do homem negro, R$ 1.458; e a da mulher negra, R$ 1.071. “Não se trata de uma contraposição homem negro x mulher negra, mas apenas uma constatação de que, no jogo de poderes, já está na hora de as mulheres ascenderem também”, completa Ruam.

Ainda sobre o assunto, Carlos Ribeiro acredita que mesmo que haja políticas públicas a favor do homem negro, é necessário ter consciência de classe: “Eu acredito que se existir, por parte do homem negro, o sentido de unidade negra e o sentido de valorização da mulher negra, com ele se espelhando nela e a apoiando, isto fará com que este homem negro se empodere mais e, desta forma, eu creio que esta distancia será diminuída. Precisamos deixar de reproduzir o modelo europeu e machista, para reconhecer na mulher negra a grande força e influência que esta exerce, e muitas vezes é negada”.

Olhando para suas áreas de atuação, Ruam Oliveira, disse que a participação de homens negros no jornalismo ainda é pequena, mas tem aumentado: “Tem homens negros, sim, mas em menor escala. A minha área, cobrindo educação, já é bem restrita, com um número muito pequeno de repórteres e instituições se comparados a outras editorias”. Já Gilvan Bueno, que atua no mercado financeiro, chega a citar nomes de grandes referências negras na área, mas reconhece que conhece todos pelo nome, logo, são poucos: “Existem grandes nomes como Marcus Macedo, Ian Lima, Oscar Decotelli, entre outros. Contudo, acredito que precisamos trazer mais participantes para o mercado financeiro”. Carlos Ribeiro também reforça a ausência de homens negros na área de consultoria empresarial: “Há participação sim, mas em número infinitamente menor que homens brancos, e na maioria dos casos, sem ocupar posição de liderança”.

Questionados sobre qual o papel de cada um deles no apoio a outros homens negros no mercado formal de trabalho, Carlos Ribeiro faz questão de apresentar o trabalho realizado pela Pappo Consultoria na promoção da equidade racial no meio profissional: “Nas contratações da Pappo, damos preferência a afro descendentes; consumimos serviços e produtos de homens e mulheres negras, privilegiamos a qualificação profissional dos nossos colaboradores e colaborados; o investimento em formação técnica dentro da área de atuação na empresa”. Gilvan Bueno segue a mesma linha e reforça que as suas contribuições são tanto para homens negros quanto mulheres negras, pois os dois são diretamente atingidos pelos desafios de conquistar espaços que permitam aumento de renda e mobilidade social: “Posso destacar minha participação no programa de igualdade social no mercado financeiro realizado pela Infi-Febraban e Instituto Ser Mais. Conseguimos formar muitos talentos que hoje estão pelo Brasil em instituições financeiras. Temos também o programa de formação da edtech que sou sócio: Financier, que está levando muitos talentos para o mercado de trabalho”. Para Ruam Oliveira, que comanda o Banco de Talentos Negros de forma voluntária, ele acredita que a sua participação nesse espectro vai ainda mais além: “Eu sigo conversando e permanecendo aberto para conversas sobre o assunto. Me colocando à disposição de jovens pretos que buscam por uma oportunidade de emprego. Sigo atento para as muitas possibilidades que dão prioridade para essa tarefa difícil, porém necessária, de equilibrar a balança. O BTN é só uma das coisas que fazemos. Acho que o principal é ter uma postura de abertura para pensar, refletir e reforçar a necessidade de que aconteçam efetivamente processos justos, assertivos e que enxerguem a competência pouco explorada dos profissionais pretos na comunicação brasileira”, finaliza.

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