Quilombolas: a arte de viver respeitando a natureza, as pessoas e as tradições

Uma conversa que envolve produção agrícola, agricultura de subsistência, agroecologia, escoamento de produção e venda final poderia muito bem juntar um engenheiro agrícola, um agricultor ecologista, um especialista em logística e um especialista em marketing e vendas. Mas quando a mesma conversa envereda para religiões de matrizes africanas, ancestralidade negra, poder das plantas medicinais, preservação cultural e a relação de tirar da terra o necessário para viver, sem exaurir o solo, aí é bom chamar quem tem alta especialização na área: quilombolas. As comunidades quilombolas são, segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 5.972 em todo o país, envolvendo cerca de 16 milhões de pessoas. Para o Fundo Baobá, investir em iniciativas que valorizam a história e promovam os direitos das comunidades quilombolas é prioridade.

Conversamos com duas líderes quilombolas. Luiza Cavalcante Santos Dias, que mora no Sítio Agatha, na Zona da Mata, em Pernambuco. E Selma Dealdina, secretária executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq). O Sítio Agatha é uma das organizações apoiadas pelo edital “A Cidade Que Queremos”. Lançado em 2018 pelo Fundo Baobá, em parceria com a OAK Foundation, o edital apoiou iniciativas das regiões metropolitanas do Nordeste do Brasil nas seguintes temáticas: Educação, Meio Ambiente, Segurança, Lazer e Cultura, Trabalho, Transporte, Habitação, Saúde e Serviços. Em 2021, com recursos remanescentes do edital, alguns dos projetos estão recebendo um pequeno aporte financeiro (2a onda de apoio), o Sítio Agatha é um deles.  A Conaq foi concebida em 1996, durante o Encontro de Avaliação do I Encontro Nacional de Comunidades Negras Rurais Quilombolas, realizado em Bom Jesus da Lapa em maio.  O tema da conversa com elas? Vida Quilombola. Algumas respostas serão compartilhadas por ambas. 

O que é um Quilombo hoje? 

Luiza Cavalcante – Os quilombos hoje,  na nossa concepção,  são comunidades negras que mantêm suas memórias,  tradições e cultura, além de uma forma própria de autogestão. O Sítio Agatha é sim um quilombo

Selma Dealdina – Os quilombos de hoje são continuidade dos quilombos liderados, né? E constituídos por Zumbi, Tereza de Benguela, Dandara e tantas outras Dandara e tantas outras lideranças que nos antecederam. Então nós seguimos o passo da luta coletiva, seguimos o passo de viver em comunidade. A maioria dos quilombos tem uma relação familiar. É quase noventa por cento ou mais.  Tem quilombo que é cem por cento composto por família. Dos troncos familiares, nós somos mais de seis mil trezentos e trinta quilombos no Brasil,  em vinte e quatro estados da federação. Aproximadamente dezesseis milhões de pessoas, isso computado através dos cadastros de programas sociais. 

Luiza Cavalcante Santos Dias, Sítio Agatha, Zona da Mata, em Pernambuco

A administração dos quilombos é feminina? 

Selma Dealdina – O papel das mulheres nos quilombos é fundamental. Primeiro que a luta é constituída por homens e mulheres. Segundo, nós tivemos vários quilombos que foram liderados por mulheres. Como o de Conceição das Crioulas  e o de  Salgueiro, em Pernambuco. Então a luta das mulheres e a presença das mulheres nesse espaço é fundamental,  inclusive para a continuidade dos quilombos.  As mulheres estão lá desempenhando seus vários papéis: estudando na academia, fazendo doutorado, mestrado, agentes de saúde, professoras, pedagogas, agricultoras. Temos também parteiras e  coveiras. Enfim,  o papel das mulheres é fundamental. Eu não consigo imaginar nenhuma organicidade de quilombos sem a presença das mulheres. 

Vocês trabalham com agroecologia. O que é isso? 

Luiza Cavalcante Bom, os conceitos são variados sobre agroecologia,  mas em geral é a maneira como a gente cuida da natureza. Como a gente preserva a biodiversidade. Como a gente estabelece relações, de fato, sustentáveis entre as pessoas e o meio ambiente. Mas para nós do Sítio Agatha,  a gente tem dito que a gente  vive afroecologia,  a agroecologia já não mais nos abarca. 

Selma Dealdina – Os quilombos produzem de tudo.  É como  aquele cântico que diz que a Terra é de todos. Tome, cultive e tire dela o seu pão. Então os quilombos produzem muito. A gente compõe os setenta por cento da produção familiar que vai pra mesa dos brasileiros e das brasileiras. Produzimos banana, cana, mandioca e aipim, abóbora, maxixe, quiabo, pimenta, pimenta do reino, café, criamos  animais de pequeno porte,  como frangos, frangos caipira, porcos caipira e, alguns quilombos, têm também gado. A terra, ela é fértil. Tudo que a gente planta, na terra dá. É isso que a gente tem feito, mesmo sem apoio de projetos e sem apoio de programas do Governo brasileiro, o maior violador das comunidades quilombolas. 

Qual é o ideal da população quilombola no Brasil? 

Selma Dealdina –  Os quilombolas não querem dividir miséria. Nós queremos dividir a riqueza.  Nós queremos ter uma boa moradia, nós queremos ter o mínimo de conforto,  que é algo necessário. Queremos ter carros bons. Nós não queremos viver na miséria, porque nós não somos corpos apartados da sociedade. Então,  a gente produz,  planta, colhe, vende o que é necessário para poder comprar o que a gente não produz. É  importante dizer que a comunidade negra em geral,  e aqui no caso os quilombolas,  não vive apartada do capitalismo. Nós vivemos numa sociedade capitalista. Nós vivemos numa sociedade que comercializa tudo.  Da vida à morte. Do nascer ao morrer. 

Selma Dealdina, secretária executiva da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq)

Como a Pandemia da Covid-19 influenciou o trabalho de vocês? 

Luiza Cavalcante – No Sítio Agatha sempre tem gente. Mesmo nesse tempo de pandemia. Nós promovíamos mutirões, que sempre juntavam muita gente. Decidimos fechar para os mutirões, como uma forma de preservar a saúde de todos. Mas a gente sempre teve alguém que chegou, que chega… Uma pessoa, duas pessoas, sempre vem alguém. Alguns chegam porque precisam de algum tipo de cuidado. E como temos aqui pessoas que trabalham com saúde holística, elas dão esse tipo de cuidado a quem precisa. 

Selma Dealdina –  O nosso trabalho não foi impactado porque a nossa luta continua. Nós não temos o privilégio de sentar para esperar nada em berço esplêndido. Porque a nossa pauta é ainda uma pauta de governo,  não é uma pauta de Estado. O mundo viveu antes e vai viver depois da pandemia. Eu  acho que é impossível qualquer ser humano que esteja vivo que não seja influenciado pelo Covid. Mas nós vamos existir antes e depois. 

A questão da imunização da população quilombola foi bem coordenada? Houve mortes?  

Selma Dealdina – Nós temos o número de 299 quilombolas mortos, mais de cinco mil infectados e cinco mortes que nós até hoje não sabemos a causa, porque não teve autópsia. É importante ressaltar que o racismo do Estado brasileiro, o racismo da sociedade, o racismo estrutural e institucional contribuíram para a morte de quilombolas. O atraso da imunização nos quilombos no Brasil é porque nós vivemos num Estado extremamente racista. 

Como vocês estão preservando as tradições quilombolas, a cultura quilombola? 

Luiza CavalcanteEntão, esse cuidado é uma coisa que a gente costuma passar na base da oralidade. Mas está também no nosso jeito de fazer nossa comida, no jeito de  prestar atenção nos outros, prestar atenção em onde é que está faltando algo. E se está faltando algo, a gente chega junto e quando a gente não pode chegar junto,  a gente acha quem chega para contribuir. Lembro muito dos cafés da manhã. Minha mãe nos levava para a casa de alguém, dava o bom dia e anunciava ter vindo tomar café. Quando a resposta era: “Oh, comadre,  hoje não dá porque hoje eu estou daquele jeito.. Ali minha mãe ia na casa de mais duas ou três comadres e dali a pouco as mulheres se reuniam todas na casa daquela que estava sem condições e traziam o café da manhã pra gente criança. Era uma alegria imensa, porque a gente ia se encontrando logo cedo de manhã. Ali já  começava a farra de brincadeiras!

Atividades de agroecologia e cuidado pessoal realizadas no Sitio Agatha

Selma Dealdina – Nossa forma ancestral de viver é repassada de geração em geração.  Os idosos passam pras crianças, pros jovens, pros adultos e assim a gente faz uma grande rede de transmissão do saber o que a gente sabe e repassa. Nos terreiros, onde existem   os festejos  de santos de devotos, a gente trabalha com a preservação das tradições quilombolas que são heranças passadas de geração em geração. Então,  quando você repassa o saber, quando você é o ensinamento, e esse ensinamento é repassado pra frente, as tradições são mantidas.

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