Pandemia impõe desafios de ações mais efetivas para proteção infantil

Pesquisa feita pela Unicef, intitulada Impactos Primários e Secundários da Covid-19 em Crianças e Adolescentes, revelou que famílias com crianças e adolescentes até 18 anos foram as mais impactadas pela pandemia no Brasil. Realizado pelo Ibope, o estudo, que foi divulgado em agosto de 2020, mostra que esses grupos foram os que tiveram maior redução de rendimentos com, por exemplo, a perda de emprego e, consequentemente, maior exposição à fome e à violência. 

O que o levantamento expôs em números, a pedagoga Viviana Santiago, 40 anos, conhece na prática. Gerente de Gênero e Incidência Política da Plan International Brasil, ONG voltada à promoção dos direitos das crianças e igualdade para meninas, ela convive diretamente com as famílias e comunidades em contexto de vulnerabilidade agravada pela crise sanitária. 

Viviana Santiago é Gerente de Gênero e Incidência Política da Plan International Brasil

Segundo Viviana, que atua no terceiro setor há 14 anos, seis dos quais na organização internacional, a pandemia alimentou a violência, o estresse e a fome nessas famílias. “Com a desmobilização das redes de cuidado das crianças e da educação infantil, essas pessoas perderam muito. Centenas ficaram sem rendimento ou emprego. Outras precisaram continuar trabalhando para sustentar as famílias”, afirma.

Os responsáveis pela renda tiveram que trabalhar, deixaram muitas vezes os filhos menores sob a supervisão e cuidado dos mais velhos (e não tão mais velhos assim!). Os que ficaram sem renda foram ainda mais expostos, pois não tinham o que oferecer à família para garantir o básico. “Ou seja: a pandemia acrescentou mais estresse ou mais trabalho para esses núcleos”, completa Viviana.

Com a falta de espaços de alimentação e acolhimento para essas mulheres e seus filhos, aconteceu o aumento da violência intrafamiliar – física ou sexual -, com abuso e exploração, o que reverberou especialmente na vida das crianças pequenas. Foi nesse contexto que o Fundo Baobá lançou em julho o edital de doações emergenciais com foco em famílias com crianças de 0 a 6 anos. O objetivo era selecionar profissionais dos setores saúde, educação e assistência social capazes de formular e implementar iniciativas de apoio, no contexto da pandemia Covid-19, a famílias com mulheres e adolescentes grávidas, mulheres que deram à luz, homens responsáveis e corresponsáveis pelo cuidado de crianças nessa faixa etária em seus núcleos. A iniciativa, realizada em parceria com a Fundação Maria Cecilia Souto Vidigal, a Porticus América Latina e a Imaginable Futures, atraiu mais de 200 pleiteantes de todas as regiões do Brasil. Foram selecionadas 56 propostas que estão recebendo apoio no valor de R$ 5.000,00 (cinco mil reais). Por regiões, o número de projetos contemplados é o seguinte: 24 do Nordeste, 23 do Sudeste, 4 do Norte, 4 do Centro Oeste e 1 do Sul. A lista de selecionados foi divulgada no final de setembro e pode ser conferida aqui.

Parte da solução para interromper esse ciclo, segundo Viviana, é fortalecer as redes de proteção para que continuem sendo capazes de cuidar, não apenas das crianças e adolescentes, mas também dos provedores da família para recompor a renda e impactar o menos possível o desenvolvimento infantil. “Quando acontece a retomada do trabalho, sem o suporte para essas crianças e adolescentes, aumentam as chances do trabalho infantil e de que eles fiquem em risco”, explica. “Por isso, é tão importante criar ações coordenadas de proteção para essas famílias.”

Renata Santos, 43 anos, ou simplesmente “Meduza com Z” (seu nome artístico), concorda. Diz que a pandemia evidenciou as vulnerabilidades dos territórios, por exemplo, como Sapopemba, na zona leste de São Paulo, que lidera os rankings de pessoas infectadas e de vítimas fatais. “Muitos residem com suas  famílias em ocupações, favelas, vielas, casas pequenas,  não tendo como manter o isolamento social”, afirma, com a certeza de quem lida com essa realidade todos os dias.

Perda de empregos e escolas fechadas – que, embora oferecessem aulas on-line deixaram milhares de estudantes sem acesso porque ou não tinham equipamentos ou não dispunham de internet – pressionaram ainda mais as famílias, aumentando os casos de maus-tratos, a negligência, a violência doméstica e sexual.

Meduza com Z do projeto CapoELAndo

“Aqui, foi uma tragédia declarada”, completa. “A expectativa é de que, quando a pandemia acabar, os governantes percebam o quanto continuamos sendo prejudicados. Dessa forma, implantem políticas públicas com ofertas regulares de serviços que possam, de fato, suprir as necessidades básicas da população da periferia.”

Também uma das contempladas pelo Fundo Baobá para Equidade Racial no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, Renata tem uma longa trajetória de atuação social. Recentemente, dedica-se ao projeto CapoELAndo, que reúne professoras e alunas, desenvolve iniciativas socioculturais para mulheres negras e periféricas de Sapopemba.  Afinal, Renata sabe que ali convivem, lado a lado, criminalidade, drogadição, violência doméstica e todo tipo de violação de direitos. Por isso, capitaneou uma campanha junto ao Enfrente/Benfeitoria com o CapoELAndo – Luta por Direitos Fundamentais. 

“Conseguimos arrecadar bom recurso financeiro que permitiu auxiliar as nossas atendidas, seus familiares e outras centenas de famílias necessitadas com doação de cestas básicas e produtos de higiene. Além disso, realizamos visitas para orientá-las sobre a importância de prevenção do coronavírus”. Os projetos não param por aí. Se depender do fôlego da Meduza com Z, tem ainda muita arte, esporte e lazer na mira dela para fortalecer sua comunidade.