Como a filantropia está apoiando o enfrentamento da pandemia
Publicado originalmente no site da Rede de Filantropia para Justiça Social
Por Cristina Orpheo e Joyce Maria Rodrigues
A pesquisa Emergência Covid-19, realizada pelo GIFE, apresenta uma análise da atuação emergencial de diferentes organizações do campo da filantropia e de investimento social, e revela que houve uma forte resposta desse setor na construção de ações para minimizar os impactos da pandemia. No que confere à alocação de recursos, num grupo de 98 organizações entrevistadas, 78% afirmaram que investiram em iniciativas finalísticas de enfrentamento à Covid-19. No que se refere ao montante alocado, a pesquisa apresenta que a somatória de 69 organizações resultou num valor total de R$ 2 bilhões. No comparativo com o valor investido em outras iniciativas e na gestão dessas organizações, esse valor é 1,9 vezes superior.
Nesse contexto, os fundos e fundações comunitárias reunidas na Rede de Filantropia para a Justiça Social (RFJS) têm desempenhado também um papel estratégico para viabilizar a doação de recursos. Ao longo de 2020 as organizações da Rede doaram de forma direta um montante de R$ 14.019.120,70 para mais de 1.200 iniciativas da sociedade civil. As doações indiretas (cestas básicas, kit higiene e ajuda humanitária, de forma geral) somam aproximadamente 2,9 milhões de reais, totalizando mais de 16,9 milhões de reais.
Além disso, a RFJS, por meio de seu Programa de Apoio, doou um montante de R$ 210.000 para fortalecimento dos seus membros no enfrentamento da pandemia a partir de três linhas de atuação: mobilização comunitária e campanhas de doação e de comunicação, informação e produção de conhecimento.
Como demonstra o estudo O Papel e o protagonismo da sociedade civil no enfrentamento da pandemia da covid-19 no Brasil, embora o montante das doações dos fundos locais que integram a RFJS não seja comparável aos recursos mobilizados pelas grandes fortunas, a atuação da Rede foi e continua sendo estratégica no contexto da pandemia pela capacidade de reagir de forma ágil e assertiva, atendendo a múltiplas demandas, com foco nas minorias políticas e grupos vulneráveis.
Esses dados demonstram que a urgência por respostas ao cenário da pandemia do coronavírus promoveu uma prioridade de investimentos entre as organizações do universo da filantropia e do investimento social no Brasil.
Se a imprevisibilidade de uma pandemia mundial explicou o deslocamento de prioridades e a maior mobilização por recursos ao longo do ano de 2020, após um ano e meio de seu início percebemos que as urgências não findaram, mas se transformaram.
O país se encontra imerso em um cenário de retrocessos na garantia direitos humanos e ambientais, aumento da taxa de desemprego em consonância com o encarecimento do custo de vida, que somados às inúmeras ausências de políticas públicas para minimizar os impactos da covid-19 têm agravado as condições de vida da população mais vulnerável, em especial os povos indígenas, quilombolas e outros povos tradicionais.
Parafraseando os autores Luiz Antônio Simas e Luiz Rufino, como combater a mortandade quando ela se torna algo corriqueiro? Se seguirmos as trilhas da resposta à pergunta dos autores, precisamos exercitar a política da vida, o encantamento.
O encantamento como uma capacidade de transitar nas inúmeras voltas do tempo, invocar espiritualidades de batalha e de cura, primar por uma política e educação de base comunitária entre todos os seres e ancestrais, inscrever o cotidiano como rito de leitura e escrita em diferentes sistemas poéticos e primar pela inteligibilidade dos ciclos é luta frente ao paradigma de desencanto instalado aqui. Ou seja, o encante é fundamento político que confronta as limitações da chamada consciência das mentalidades ocidentalizadas. (SIMAS E RUFINO, 2020, p.8).
Portanto, o atual contexto demanda ações destinadas à (re)construção, fortalecimento e principalmente de reconhecimento do protagonismo das organizações de base comunitária e tradicionais. Infelizmente, não vemos a construção de políticas públicas que dê conta de atender essas populações para essa reconstrução.
Passamos de um momento de apoios humanitários para apoios com ações mais estruturantes, e com eles o desafio dos recursos da filantropia chegarem de fato às comunidades mais impactadas.
Aliança entre Fundos
Diante desse contexto é consolidada a Aliança entre Fundos, composta pelos Fundos Baobá, Brasil de Direitos e Casa Socioambiental.
Os diálogos e as trocas entre essas organizações ocorridas no ano de 2020 para aprendizados sobre mobilização, coordenação, alocação e gestão dos recursos emergenciais durante o período mais crítico da pandemia resultaram numa aliança estratégica direcionada a apoiar iniciativas de comunidades tradicionais frente aos impactos causados pela covid19.
A Aliança foi lançada no dia 26 de agosto e tem como objetivo principal contribuir para a autonomia e o protagonismo das populações tradicionais, organizações, grupos e coletivos na construção de soluções para os impactos provocados pela pandemia por meio de apoio a projetos em três eixos temáticos; (1) Fortalecimento da resiliência, (2) soberania e segurança alimentar (3) defesa de direitos.
A iniciativa tem ainda como objetivos fortalecer o ecossistema da filantropia pela justiça racial, social e ambiental por meio de estratégia de atuação conjunta entre os Fundos, gerando aprendizados e reforçando a importância da colaboração para enfrentar emergências, potencializando o apoio aos grupos comunitários.
Assim, a Aliança se inscreve como apoio e ponte para a construção da política de vida plantada nas margens, capoeiras, sambaquis, quilombos, mangues, sertões, gameleiras, esquinas e matas daqui. O “encantamento” se torna metáfora, mas também estratégia colaborativa onde os Fundos que buscam apoiar ações de alicerce, de (re)construção e enfrentamento aos desafios impostos pela pandemia para as comunidades quilombolas e povos indígenas.
A Rede de Filantropia para a Justiça Social foi campo fértil para o nascimento dessa Aliança, criando um importante espaço de diálogo no pior momento da pandemia em 2020, fomentando ações criativas para o apoio aos grupos de base para ações emergenciais de enfrentamento a covid19. Acreditamos que a Aliança e a Rede podem seguir na trilha de gerar aprendizagem, em especial nos temas de estratégias colaborativas para mobilização de recursos e em monitoramento e avaliação dos apoios aos grupos de base.
Próximos Passos
Os Fundos que compõem a Aliança começaram a lançar os editais de apoio a projetos no mês de setembro, com previsão inicial de aporte de 2,5 milhões de reais para apoios a grupos quilombolas e indígenas. O edital Em Defesa dos Direitos dos Povos Indígenas, lançado pelo Fundo Brasil. A Chamada de Projetos para Apoio às Comunidades Quilombolas no Enfrentamento dos Impactos Causados pela Covid-19, lançada pelo Fundo Casa Socioambiental. E o edital Quilombolas em Defesa: Vidas, Direitos e Justiça, lançado pelo Fundo Baobá para Equidade Racial.
Para 2022, está sendo construída uma agenda de fortalecimento de capacidades e trocas e intercâmbios entre os grupos comunitários que serão selecionados nos editais.
Referências
Observatório da Covid-19 nos Quilombos – https://quilombosemcovid19.org/
Pesquisa Emergência Covid-19: levantamento de dados e informações da resposta da filantropia e do investimento social privado no enfrentamento à pandemia – https://sinapse.gife.org.br/download/pesquisa-emergencia-covid-19-levantamento-de-dados-e-informacoes-da-resposta-da-filantropia-e-do-investimento-social-privado-no-enfrentamento-a-pandemia
O papel e o protagonismo da sociedade civil no enfrentamento da pandemia da covid-19 no Brasil – https://www.redefilantropia.org.br/publicacoes/o-papel-e-o-protagonismo-da-sociedade-civil-no-enfrentamento-da-pandemia-da-covid-19-no-brasil%E2%80%89
SIMAS, Luis Antônio e RUFINO, Luis. Encantamento, sobre a política de vida. Rio de Janeiro. Mórula Ed.2020.
Joyce Maria Rodrigues – Mestra em Planejamento e Gestão do Território pela UFABC, especialista em políticas públicas pela USP e Licenciada em ciências sociais pela UNESP Marília. Atua como consultora técnica da iniciativa Aliança entre Fundos.
Cristina Orpheo é Diretora Executiva do Fundo Casa Socioambiental. É formada em Administração, com pós-graduação em gestão de projetos sociais, terceiro setor e gestão ambiental. Tem 20 anos de experiência em elaboração e gestão de projetos, gestão de recursos humanos, elaboração de projetos, planejamento estratégico e mobilização de recursos. Nos últimos 10 anos atua em Grantmaking e apoios a grupos comunitários de base.