Caso Moïse Kabagambe: “A dor negra não gera empatia no imaginário nacional”

Por  Wagner Prado

A República Democrática do Congo é um país localizado no centro da África e entrou no imaginário da população brasileira da forma mais bizarra em 24 de janeiro de 2022. Naquele dia, o imigrante congolês refugiado Moïse Kabagambe foi morto por espancamento nas dependências do quiosque Tropicália, na praia da Barra da Tijuca. Moïse foi espancado após ter ido cobrar o pagamento por um serviço que havia prestado. 

Moïse Kabagambe saiu da República Democrática do Congo, um país convulsionado por guerras civis onde chacinas são algo frequentes. O homem jovem, cuja vida foi ceifada, chegou ao país há oito anos. A família veio buscar paz e tranquilidade. Encontrou a tragédia. Entre 2009 e 2019, 333.330 pessoas entre 15 e 29 anos foram mortas no Brasil. A maioria, homens negros e jovens. Os dados estão no Atlas da Violência 2021.  

Em maio de 2021, o Fundo Baobá para Equidade Racial lançou  o edital Vidas Negras, Dignidade e JustiçaO intuito do edital é apoiar entidades negras que atuem no enfrentamento do racismo e incorreções que ocorrem dentro do sistema de Justiça Criminal no Brasil.

O Caso Moïse está mobilizando a comunidade negra. Pelo menos três das maiores capitais brasileiras vão realizar manifestações no sábado, 5 de fevereiro: Belo Horizonte. Rio de Janeiro e São Paulo.  

Felipe Freitas, professor do Programa de Pós Graduação em Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Ensino, Desenvolvimento e Pesquisa (IDP) e membro do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá,  acompanha a equipe executiva na implementação do edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça,  dá nessa entrevista seu posicionamento sobre mais um assassinato de um homem negro no Brasil. 

O caso pode ser tipificado como crime de racismo? Por quê?

Felipe Freitas – É evidente que estamos diante de um caso de racismo. Do ponto de vista jurídico,  é preciso apurar o que foi dito para saber se a situação pode ou não ser enquadrada no tipo penal de racismo previsto na lei. Todavia, do ponto de vista político, não resta dúvida de que o caso está relacionado ao fato de Moïse ser um homem negro.

Só o racismo é capaz de normalizar práticas tão cruéis e violentas quanto estas. A forma pela qual aquele jovem foi tratado é uma expressão dramática de como a sociedade brasileira costuma tratar gente negra. Tratam-nos como lixo, como coisa que se descarta e se mata na porrada,  como têm dito, inclusive, os familiares de Moïse em declarações  muito lúcidas  prestadas à imprensa brasileira.

Na entrevista concedida ao jornal O Globo, a mãe de Moïse dá a intepretação correta dos fatos: “Eles mataram o meu filho porque ele era negro, porque era africano”, disse  Lotsove Lolo Lavy Ivone.

O fato de ser um cidadão negro, estrangeiro, dá mais visibilidade ao caso do que quando a vítima é negra e brasileira, como o João Alberto Freitas?

Felipe Freitas – O fato de ser estrangeiro adiciona complexidade à situação. Além do racismo temos também uma brutal expressão de xenofobia no caso, de modo que estamos falando aí de violências que se sobrepõem para produzir mais sofrimento e morte.

Não acho produtivo discutir qual morte gerou maior ou menor comoção (pensando nos casos de Beto Freitas, morto por espancamento em novembro de 2020,  ou Moïse Kabagambe). O que me parece central é pensar como tanto na violência praticada contra um negro brasileiro quanto na violência contra um negro estrangeiro há um regime de invisibilidade que impede o debate público sobre o tema e que limita a extensão do luto imposto ao país. 

Quem se recorda de Ágatha Vitória Sales Félix, 8 anos, alvejada por um disparo efetuado pela Polícia Militar na comunidade da Fazendinha, Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio de Janeiro em 2019? Quem lembra do nome dos 12 jovens mortos pela Polícia Militar da Bahia, em 2015, na conhecida Chacina do Cabula? Quem se recorda da Chacina da Condor, ocorrida em Belém, no Pará, no ano de 2017, quando cinco pessoas foram mortas e 14 pessoas ficaram feridas após a ação de um grupo de matadores profissionais?

São casos que nos revelam, de modo muito cruel, que a vida negra vale muito pouco no Brasil e que chacinas, massacres, linchamentos e execuções de corpos negros não são capazes sequer de impor momentos de luto nacional. Os corpos seguem no chão e o país continua funcionando, ou melhor, é como se o próprio funcionamento das instituições e dos seus arranjos com o poder privado se alimentasse destas violências.

A comoção não passa de uma ou duas semanas de matérias na imprensa e atos promovidos solitariamente pelo movimento negro. Não há uma sensibilidade social coletiva e ampla em torno destas mortes. A dor negra não gera empatia no imaginário nacional e o Brasil passa a contar os dias para que a próxima tragédia seja registrada. É algo enlouquecedor.

Manifestações públicas de protesto, como as que estão programadas para sábado no RJ e em SP, são capazes de mudar esse estado de coisas?

Felipe Freitas – É evidente que tem de haver manifestação. Não é possível admitir que morramos em silêncio ou que nossos corpos caídos no chão sejam esquecidos como matéria sem nome. É preciso nomear a violência, registrar a história de cada vítima, inscrever nas ruas demonstrações de repúdio que possam desarticular o pacto de silêncio instituído pelo poder branco em relação à morte negra no Brasil.

E, neste sentido, acho que as manifestações não podem se limitar às meras demandas judiciais. Não basta exigir que haja investigação e que os responsáveis pela morte de Moïse Kabagambe sejam punidos, ainda que esse seja um primeiro passo fundamental. Todavia, é preciso que se ponha em debate todo o sistema que produz essa violência e que autoriza cenas como esta. Como se produz uma política de memória que permita que este fato não seja esquecido? Como fazer com que, na geografia carioca, se inscrevam registros que não permitam que alguém passe por aquele lugar e não saiba que ali uma pessoa negra, congolesa, trabalhadora foi espancada até a morte na suposta vigência do Estado Democrático de Direito?

É preciso debater como deixar exposto nas cidades os registros de que absurdos aconteceram e, ao mesmo tempo, afirmar que não vamos deixar que isso aconteça novamente. Penso que as manifestações políticas precisam fazer com que isso aconteça.

Quem fiscaliza as condições de trabalho em barracas como essa em que Moïse trabalhava? Como funciona a expedição de alvarás para estes estabelecimentos? Por que ninguém fez nada para impedir aquele linchamento? Por que a guarda civil não interveio? Por que a polícia não chegou? Por que o Estado não assegurou condições dignas de sobrevivência para essa família de refugiados? Por que mortes como essa não ocupam o centro das preocupações nacionais? Por que o governo brasileiro não respondeu às várias solicitações de informação apresentadas pela Embaixada do Congo sobre a morte de outros congoleses nos anos anteriores?

São muitas perguntas que permanecem sem qualquer resposta efetiva por parte dos governos, das instituições públicas e do conjunto da sociedade. Penso que essa deve ser a pauta das manifestações: indagar sobre o estado de coisas que produz a violência racial

Acontecimentos como esse estão ligados à falta de investimentos em Educação, Trabalho e Saúde no Brasil?

Felipe Freitas – Naturalmente que um absurdo como este não decorre de uma ou outra coisa isoladamente. Há sempre vários elementos se retroalimentando no âmbito de um país racista e desigual. Três aspectos me parecem importantes de serem ressaltados no caso da morte de Moïse: a falta de políticas de apoio aos refugiados no Brasil, a precariedade nas relações de trabalho naquela região de comércio na orla do Rio e a indiferença das pessoas que circulavam naquela região diante de uma pessoa negra sendo executada a pauladas.

Foram 20 minutos de espancamento, provavelmente após duras ofensas verbais, e ninguém interveio para parar as agressões ou nenhum agente público aproximou-se do fato para evitar que a tragédia acontecesse.

Além disso, merece destaque também o relato que circulou na imprensa de que alguns daqueles trabalhadores vivem em situação de trabalho tão abusiva que passam a noite ali mesmo na região da praia porque não têm condições de voltar para casa após a extenuante jornada. Ou seja, são vários elementos que dão conta de um quadro estrutural de violência,  de omissão do poder público.

A quase inexistência de políticos negros, homens e mulheres, nas esferas estadual e federal, torna inócua qualquer tentativa de que leis protetivas para os negros e punitivas para quem age contra negros sejam aprovadas?

Felipe Freitas – A ausência de pessoas negras nos espaços de decisão política é um entrave central da democracia brasileira. Não há democracia enquanto o sistema de justiça, o executivo e o legislativo não representarem a pluralidade racial da sociedade brasileira. No entanto, é muito oneroso pensar que negras e negros precisam estar nos espaços de decisão para viabilizar que as decisões públicas operem para combater o racismo e proteger a vida de mulheres e homens negros; a vida de pessoas negras.

É preciso que os agentes públicos (independentemente do pertencimento racial) aprendam a produzir decisões em favor da justiça e da igualdade racial. É óbvio que é fundamental ampliar radicalmente o número de negras e negros nos espaços de poder,  mas não podemos esperar que estas pessoas negras ingressem e ascendam nas instituições para que se adotem medidas de enfrentamento ao racismo. Simultaneamente às políticas para democratização do acesso a estes espaços é necessário que as pessoas brancas assumam suas responsabilidades e ajam para garantir direitos para todas e todos.

Dignidade e Justiça

O edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça é uma oportunidade para a população negra fortalecer estratégias de ativismo, resistência e resiliência frente às injustiças raciais recorrentes, envolvendo e engajando comunidades, vítimas, sobreviventes e aliados. 

As entidades selecionadas apresentaram propostas dentro desses quatro eixos: 

a) Enfrentamento à violência racial sistêmica; b) Proteção comunitária e promoção da equidade racial; c) Enfrentamento ao encarceramento em massa entre adultos e jovens negros e redução da idade penal para adolescentes: d) Reparação para vítimas e sobreviventes de injustiças criminais com viés racial.

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