Com uma “Bike Sonora”, o Movimento Social Fome levou informações em tempos de fake news

Imagine um sistema de som ligado em uma bicicleta levando informações corretas  sobre a covid-19 e como se prevenir. Pois essa bicicleta existiu – e percorreu várias ruas de Sobral, no Ceará com o apoio do “Edital Apoio Emergencial para Ações de Prevenção ao Coronavírus” – uma iniciativa do Fundo Baobá em parceria com a Fundação Ford, para apoiar projetos de regiões e povos vulneráveis mais afetados pela pandemia da Covid-10 no Brasil.

“Projeto Bike Sonora” do Movimento Social Fome – Sobral (CE) – (Foto: arquivo pessoal)

Lançado no dia 5 de abril de 2020, em apenas 12 dias, o edital recebeu 1.037 inscritos de todas as regiões do país. Nesse total, 387 eram iniciativas de organizações sociais e 650, de indivíduos. Após uma análise minuciosa da organização, o Fundo Baobá divulgou em três listas um total de 350 projetos selecionados, sendo 215 de indivíduos e 135 de organizações. Cada iniciativa recebeu R$ 2,5 mil para ações de prevenção em comunidades periféricas ou de difícil acesso.

Entre essas iniciativas selecionadas estava o Movimento Social Fome, de Sobral (CE), com o seu ousado projeto da Bike Sonora: “A ideia surgiu como uma força de construir uma comunicação não violenta, onde não assustasse as pessoas num momento tão delicado que estamos passando. Era fundamental colocarmos nas ruas informações necessárias e cuidadosas a fim de atingir um público exclusivo que era a periferia”, diz a fundadora, produtora cultural e articuladora social do Movimento Social Fome, Raiana Souza.

“Projeto Bike Sonora” do Movimento Social Fome – Sobral (CE) – (Foto: arquivo pessoal)

Em tempos de fake news e desinformação, o trabalho do Movimento Social Fome na proliferação de informações sobre o novo coronavírus na comunidade carrega a alcunha de serviço essencial para a população: “Tivemos o cuidado de fazer frente a uma desconstrução de informações falsas advindas da produção de Fake News que se espalhavam nas mídias sociais e tomavam proporções de abrangências exorbitantes, desse modo, pensar uma estratégia de comunicação no combate e enfrentamento a covid-19 foi uma tarefa de luta coletiva que está simbolizando, até hoje, um marco na nossa trajetória enquanto moradores e militantes sociais”.

Muito antes da covid-19 ser decretada pandemia pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e do Bike Sonora ser uma realidade em meio à crise da saúde pública, o Movimento Social Fome já fazia a diferença para a população vulnerável de Sobral. Fundado no ano de 2013, trata-se de um coletivo de jovens moradores da periferia sobralense, surgido nas calçadas, nas ruas e nas associações comunitárias do bairro Terrenos Novos, periferia da cidade de Sobral: “O surgimento do Movimento Social Fome se deu em meio aos ensaios de um grupo de teatro de rua que ensaiava durante a semana no período noturno ao lado da capela da igreja católica, hoje paróquia São Paulo Apóstolo. Foram quase três anos acompanhando as movimentações de amigos, conhecidos e colegas que faziam parte do grupo de teatro denominado ‘Amigos da Paixão’. O grupo só produzia e encenava no período da quaresma cristã, passando assim, o restante do ano, sem organizar ou produzir qualquer outro trabalho teatral”. E foi durante esse longo intervalo sem produzir, que Raiana e os seus amigos enxergaram a necessidade de criar algo que movimentasse a cultura entre os jovens daquele local, e assim nasceu o Movimento Social Fome: “A pretensão inicial do FOME era construir uma agenda de atividades artísticas e culturais como forma de ocupação direta do espaço público da periferia, tornando essas atividades uma maneira mais direta de chegarmos nas pessoas do bairro a fim de convidá-las para fazerem parte do coletivo, ou mesmo apoiar as ações que eram executadas”.

Raiana Souza, fundadora, produtora cultural e articuladora social do Movimento Social Fome – (Foto: arquivo pessoal)

Além de Raiana Souza, fundaram o Movimento Social Fome o educador social e produtor cultural Renan Dias, o artista e grafiteiro Thiago Tavares, o rapper e músico Frank Soares, os produtores culturais e Mc’s Leandro Guimarães e Wisley Nascimento, assim como a produtora cultural e social mídia Fran Nascimento: “Nossa primeira atividade na rua foi exatamente com a proposta de uma intervenção audiovisual com exibições de filmes e videoclipes de artistas locais. O Cine Comunitário foi uma atividade bem direta com a finalidade de explorar a reação das pessoas que até então não sabiam exatamente do que se tratava aquela intervenção audiovisual”, relembra Raiana. No ano de 2018, o Cine Comunitário se tornou Cine Mucambim em alusão ao açude histórico que fica localizado dentro do bairro Terrenos Novos: “para nós moradores do bairro, o Mucambinho tem um valor imaterial que se estende desde sua historicidade até mesmo o valor econômico e social que o mesmo traz para famílias de pescadores que tiram do açude a única renda para por em casa”.

Sessão do Cine Mucambim no bairro Terrenos Novos (Foto: arquivo pessoal)

Outras atividades artísticas e culturais foram organizadas pelo Movimento, como o Som na Praça, com o propósito de levar para as praças e calçadas dos bairros Terrenos Novos e Vila União, ações voltadas à música e leitura. Assim como aulas de música, o Sarau Força e Resistência na praça da juventude no bairro Vila União e o Miss Perifa, que consiste na formação, produção e desfile de mulheres cis, trans e travestis da periferia: “O Miss Perifa é um evento de desfile auto-organzado pelo núcleo feminista do Movimento Social Fome que se chama “Mulheres do Gueto que Lutam sem Medo”.

O Miss Perifa é um evento de desfile auto-organzado pelo núcleo feminista do Movimento Social Fome que se chama “Mulheres do Gueto que Lutam sem Medo” – (Foto: arquivo pessoal)

Em 2014, o grupo participou de duas ações integradas dos moradores da região, o Sopão Comunitário e o Natal Comunitário: “Eram atividades organizadas com o apoio dos moradores do bairro que contavam com o apoio do Fome para realizar outras ações integradas como levar oficinas de graffiti, oficinas de artesanato, oficina de desenho, exibição de filmes com o cine comunitário e organização de mutirões de limpezas nas áreas adjacentes onde ocorriam os eventos especiais”.

Com a chegada da covid-19, com as medidas de isolamento social para conter o avanço da doença e evitar um colapso no sistema de saúde, o Fundo Baobá lançou o edital Doações Emergenciais, e o Movimento Social Fome inscreveu o seu projeto Bike Sonora, sendo uma das 350 iniciativas selecionadas: “A relação do cuidado em tempos de pandemia também ressoou diretamente na renda básica familiar de moradores da periferia. Notamos que, com a pandemia, houve um crescente número de desempregados a nível nacional, e com nossa realidade aqui da periferia da cidade de Sobral/CE não foi diferente. Muitas famílias e jovens enfrentam as duras dificuldades para manter-se vivos e sobreviver ao vírus e a crise financeira que assola ainda hoje muitas pessoas”, e com o apoio dado pelo Fundo Baobá, houve uma transformação na realidade daquela região: “A partir do incentivo gerado pelo edital do Fundo Baobá, que nós do Movimento Social Fome pensamos estratégias de redistribuição da grana para um número maior de pessoas, fazendo assim circular um dinheiro dentro do próprio bairro”, afirma Raiana. “Conseguimos pagar um incentivo fixo para três jovens dos bairros onde o projeto Bike Sonora foi executado: Terrenos Novos, Vila União e Nova Caiçara, além é claro de distribuição de cesta básica de alimentos e produtos de higiene pessoal para famílias e crianças que participam da Biblioteca Comunitária Adalberto Mendes”. A biblioteca é um espaço em Terrenos Novos, onde o Movimento Social Fome executa atividades pedagógicas voltadas às crianças. O espaço se encontra fechado desde o início da quarentena em março de 2020.

Ao relembrar os momentos marcantes vivenciados com o projeto Bike Sonora, Raiana cita a experiência vivida pelo jovem Emanuel Nascimento, que “pilotou” a Bike Sonora pelas ruas de Sobral, e que se no começo ele despertou o estranhamento da população, que não estava acostumada com aquele tipo de novidade, no meses seguintes ele ganhou o carinho e consideração dos moradores locais: “No começo as pessoas estranhavam aquela ação e não entendiam ao certo o objetivo ou do que se tratava, causando assim pouca adesão por parte dos moradores. Com um tempo, Emanuel nos contou que os mesmos moradores agora já paravam ele para elogiar a iniciativa parabenizando-o pela coragem, pela luta e pelo cuidado coletivo. E a partir daquele momento muitos moradores já o esperavam no horário marcado que a Bike Sonora passava para lhe oferecer água, merenda e um cafezinho da tarde”. Raiana revela que depois que as ações do Bike Sonora chegaram ao fim, Emanuel relatou para a equipe do Movimento Social Fome que muitas pessoas do seu bairro tem perguntado porque parou e quando o Bike Sonora irá voltar.

“Projeto Bike Sonora” do Movimento Social Fome – Sobral (CE) – (Foto: arquivo pessoal)

Um ano depois de decretada pandemia de covid-19, hoje no Brasil nós vivemos o pior momento da doença, com média móvel de 71.739 novos casos e com 57 dias seguidos com a média móvel de mortes acima da marca de 1 mil. Mais de 300 mil vidas perdidas. Raiana Souza, destaca a importância do trabalho do Fundo Baobá com edital Doações Emergenciais e o impacto que ele causou na comunidade: “Os impactos centrais que podemos citar aqui se destacam entre duas linhas de campo principais que são: A informação e o cuidado coletivo dentro da periferia, e a distribuição de renda que foi ofertado pelo edital”.

Mesmo sem o trabalho da Bike Sonora, o Movimento Social Fome continua ativo no combate à covid-19 e colocando em prática as lições aprendidas com apoio do edital Doações Emergenciais: “Acredito que os vínculos que foram criados a partir do projeto apoiado pelo Fundo Baobá, o Bike Sonora, foram fortemente estabelecidos nos desejos de sempre insistir, resistir e não se entregar. Temos fome e ela não espera, quem tem fome tem pressa”.

Veja o vídeo da Bike Sonora em ação aqui

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