Existe equidade racial na gestão pública?

Baobá - Fundo para Equidade Racial

25 de novembro de 2019

No mês da Consciência Negra, o Baobá – Fundo para Equidade Racial, aproveita para trazer à discussão temáticas pouco exploradas, mas extremamente relevantes para a sociedade brasileira, especialmente para a população negras.

Para contribuir com essas reflexões, especialistas respondem perguntas sobre diferentes temas.

Quem comenta sobre desafios da gestão pública é Trícia Calmon, mestranda em Desenvolvimento e Gestão Social especialista em Políticas Públicas de Gênero e Raça, graduada em Ciências Sociais. Atualmente, ocupa o cargo de Coordenadora Geral do Programa Corra pro Abraço (Secretaria de Justiça e Direitos Humanos e Desenvolvimento Social do Estado da Bahia). Trícia é conselheira no Conselho Estadual de Políticas de Drogas, colaboradora da plataforma Hysteria.etc, Conselheira do Fundo Baobá e membro-titular do Comitê Interinstitucional de Monitoramento e Avaliação das Leis 10.639/2003 e 11.645/2008, presidido pelo Ministério Público do Estado da Bahia. Atuou como consultora da Fundação Kellogg no programa de Equidade Racial no Nordeste e como Coordenadora Executiva de Igualdade Racial da Secretaria de Promoção da Igualdade Racial do Estado da Bahia.

Apenas em 1988, 100 anos após sancionada a Lei Áurea, o Brasil reconheceu formalmente a existência do racismo, da discriminação racial e se propôs a enfrentá-los por meio de ações afirmativas. Quais os efeitos desse reconhecimento para o desenvolvimento da população negra e do país como um todo?

Antes de 1988 o Brasil já vinha se afinando com compreensões em conferências e convenções, essa sinalização formal em relação à agenda do combate ao racismo se delineou a partir de articulações internacionais. Tivemos a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, ratificada pelo Brasil em 1968.

A constituição de 1988 é muito importante porque deu abertura para outras políticas. As ações afirmativas ocorrem um pouco mais adiante ampliando o debate nacional a partir das cotas e outras políticas de estímulo e permanência à estudantes negros e negras nas universidades. Posteriormente o governo federal verificamos implanta o sistema de cotas também para concursos públicos. Temos outras políticas no campo de enfrentamento e combate ao racismo, ou pelo menos de promoção da igualdade racial no âmbito dos governos e das casas legislativas, leis no campo da educação e outras áreas. A legislação por si só não vai causar efeitos de reversão do cenário de desigualdades sócio raciais, temos uma visão crítica nesse sentido, mas consideramos que esses avanços na legislação são demarcadores importantes para a constituição legítima de políticas públicas. Quem atua em gestão, em áreas específicas de promoção da igualdade racial ou em áreas transversais que tocam o racismo, tem condições de se assentar em bases legais a partir desse conjunto de leis que embasa políticas de promoção da igualdade racial ou de enfrentamento ao racismo.

Consequência da luta de décadas do movimento negro, a sociedade brasileira assiste a uma mudança de postura em relação às desigualdades raciais no país. Dentre a diversidade de temáticas, as cotas raciais é uma das que gerou mais debate da sociedade em geral. Que outros temas centrais e desafios necessitam de mais engajamento de toda sociedade brasileira?

Eu não sei se a sociedade brasileira adotou uma mudança de postura. A sociedade brasileira tem se posicionado mais claramente sobre o que pensa em relação ao racismo, especialmente nesse momento de um governo mais reacionário e declaradamente intolerante, racista, homofóbico. Tem também um grupo que acha ruim o Brasil ser um país racista, mas que não quer mexer nessa realidade e abrir mão de privilégios. Tanto que o tema das cotas, embora consolidado por conta das leis e mostrando resultados a algum tempo, é um assunto ainda controverso.

Acho que os movimentos sociais e políticas publicas tem conseguido arregimentar mais pessoas no momento em que elas começam a ficar mais bem informadas sobre o assunto. Conseguimos tencionar um pouco mais sobre o tema do racismo, a partir de décadas de luta do movimento negro. Inclusive, a gente pode observar agora a adesão de outros movimentos sociais em relação a desigualdade sócio racial e combate ao racismo. Foi muito importante e educador ter esse debate sobre cotas raciais no Brasil da maneira que foi, inicialmente dentro do tema da educação de nível superior. Falando sobre o mundo do trabalho, as cotas vêm ocorrer nos concursos públicos federais, com adoção de alguns estados e municípios pelo país afora.

Precisamos refletir sobre a educação básica, temos a lei 10.639 de 2003 que, além de instaurar o Dia Nacional da Consciência Negra, tornou obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira no ensino fundamental e médio, oficiais e particulares. Temos assuntos proeminentes que precisamos olhar com calma, carinho, força e dedicação, como o tema do genocídio da juventude negra, o hiper encarceramento das pessoas negras, a desigualdade no campo da educação.

O Brasil tem um número escandaloso de pessoas que não concluem o ensino fundamental e essas pessoas são majoritariamente negras, nos conduzindo para um processo de tragédia social que a gente precisa interromper. Tudo isso converge para um sinal de violência urbana geradora de ódio às pessoas que ficam em situações mais extremas de vulnerabilidade. Vemos o aumento de pessoas que são em situação de rua, que não têm onde morar. Essas pessoas têm baixa escolaridade, sobrevivem a partir de trabalhos precários e isso é uma realidade cada vez mais gritante na sociedade brasileira. O tema da política de drogas precisa ser olhado com cuidado por nós, vivemos numa sociedade que criminaliza o uso de drogas por pessoas negras, mas o uso de drogas por pessoas brancas é descriminalizado. As tratativas com um sujeito branco de classe média alta e com um sujeito negro de periferia são totalmente diferentes e essa é uma realidade cada vez mais gritante.

São temas caros que estão determinando os índices de prisão, a guerra às drogas que tem elevado os índices de mortalidade de jovens, pessoas na periferia e até crianças acometidas por essa situação de violência e a própria força policial, também abatida nessa relação ostensiva.

A presença de representantes negros nos diferentes espaços de poder e tomada de decisão pode impulsionar o desenvolvimento de políticas públicas para essa população. Que ações são necessárias para promover a justiça racial no processo eleitoral?

A representação negra nos espaços de poder e tomada de decisão é algo absolutamente importante. Vivo em Salvador, cidade que tem uma população de 85% de pessoas negras, mas nunca teve uma pessoa negra governando. Quer dizer, a cultura negra é pulsante, gera renda e gera recursos na cidade, mas essa renda é concentrada em pessoas brancas, o poder é concentrado em pessoas brancas.

Tem questões da realidade de uma pessoa negra em uma cidade, em determinados bairros e territórios que, por mais bem-intencionado que um politico branco de classe média alta seja, tem dimensões que ele jamais vai alcançar sobre as necessidades, sobre as ausências, sobre a forma de ser, de pensar e de viver que precisam ser consideradas na hora em que você elabora políticas públicas.

Negros e negras acabam também sendo preteridos e permanecendo fora desses espaços de decisão dentro dos partidos. No final das contas impera uma lógica que não responde às teses que os partidos de esquerda defendem declaradamente, de pluralidade, de inclusão, de combate ao racismo, à desigualdade de gênero. Há necessidade de ações mais efetivas para corrigir isso.

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