Por Anna Suav* e Tamara Mesquita*
Na construção do bem-viver e no movimento de luta pela dignidade social, é importante considerarmos as particularidades, ainda que façamos parte de um coletivo. Ao se pensar em saúde mental quilombola no território da Amazônia, é fundamental abrirmos o olhar para as heranças ancestrais, os saberes tradicionais de quem é descendente da diáspora afroamazônida e como esse rico contexto, totalmente abraçado pelo território, é visceral no firmamento e na manutenção do propósito de vida de quem o ocupa.
Aliado a esse propósito e na busca de compreender como contribuir com essas particularidades, é que o projeto Saúde Mental Quilombola: Direitos, Resistência e Resiliência, uma realização do Baobá – Fundo para Equidade Racial, com apoio da Johnson & Johnson, chegou ao seu terceiro encontro na Região do Baixo Tocantins, nas comunidades de Igarapé Preto à Baixinha, passando por Baião e Oeiras, no Estado do Pará.
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), no território brasileiro há 5.972 comunidades quilombolas, sendo o Pará um dos quatro estados com maior contingente populacional, com 42.439 pessoas. Com a pandemia da Covid-19, de acordo com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), o Pará registrou o maior número de mortes pelo vírus. Tais dados nos convocam a contribuir com essas comunidades, uma vez que elas ainda estão no processo de se recuperar e reverter as diversas consequências a que foram expostas durante esse cenário.
Diante disso, o projeto Saúde Mental Quilombola chega com sensibilidade e equipado de uma equipe multidisciplinar, da Enfermagem ao Direito, bastante interessada em buscar soluções junto das comunidades e considerando os seus modos de operação. Uma vez identificados os problemas, a vivência no território traz profundidade e a mostra de como as tecnologias ancestrais associadas a novos conhecimentos e métodos podem contribuir na apresentação de diferentes perspectivas e no reforço identitário, extremamente potente no que tange o estímulo à saúde mental.
Para Vanessa Souza, moradora da Comunidade de França, “O projeto trouxe conhecimento, porque quando a pessoa não sabe da sua origem, ela fica sem identidade, a gente tem muita dificuldade de ser vista e ouvida, mas ao falarmos, mostramos que existimos, que somos cidadãos”. Essa dificuldade de se enxergar para se reconhecer, uma das violências promovidas pelo racismo, é algo que faz parte da história das comunidades quilombolas, afetando a noção de pertencimento.
É preciso negritar que os atravessamentos raciais e territoriais são fundamentais ao falarmos de comunidades quilombolas. Que tem acesso aos direitos básicos? Entender os fenômenos dentro de cada espaço é fundamental para enxergar que os rios, as ruas, os ramais* são os caminhos para que as informações cheguem nessas comunidades. “A dificuldade é como a de sair daqui para vender nossos produtos, aí também tem a dificuldade da saúde, é difícil sair daqui com ramal assim, é ruim para ir no posto”, explica Márcia Martins, Coordenadora Samba de Cacete e conselheira fiscal da Associação das Comunidades Remanescente de Quilombo de Igarapé Preto (ARQIB), sobre dificuldades de locomoção, principalmente durante o inverno amazônico, e da ausência de atenção do poder público que não entende as dificuldades locais e que não fornece uma equipe múltipla nos postos de atendimento.
E é na necessidade que se reforça o originário, a importância do tradicional. Em todas as atividades desenvolvidas pela equipe de saúde que foram executadas nas comunidades, a equipe pode observar que as mulheres quilombolas desenvolvem suas ciências diante de um enfrentamento, principalmente em termos de saúde pela falta de políticas públicas, a precariedade de exames, mostra de resultados e o acesso à consultas no território.
É nesse contexto que as heranças ancestrais, aliadas a conhecimentos técnicos, se tornam uma fórmula visando a sobrevivência. “As mulheres utilizam muito remédios caseiros para prevenção de algumas infecções, principalmente na região íntima, chás tradicionais como forma de amenizar os agravos de alguma patologia, de alguma doença, e isso é de uma sabedoria enorme. Elas até nos passaram uma lista com todos os chás que usam e pra quê servem, a equipe toda aprendeu!”, relata Fátima Carrera, integrante da equipe interdisciplinar na área de enfermagem do projeto. A enfermeira também destaca o preciosimo do trabalho das parteiras no acompanhamento das mulheres no pré-natal, e das benzedeiras que, segundo ela, “associam o medicamento que o médico passa às rezas e aos chás. Elas fazem essa junção dos saberes tradicionais com a ciência contemporânea”.
Os determinantes sociais são essenciais para entendermos da saúde quilombola, das dificuldades do cuidado, e das dificuldades de ser quilombola na Amazônia. No Pará, por exemplo, estão ativos apenas 91 Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), segundo a Organização Mundial da Saúde, um número pequeno para oferecer estrutura e atenção necessária à população que carece.
Tendo em vista essas lacunas, é que as comunidades subvertem as lógicas de descaso e atuam na própria costura de uma rede de afeto e de cuidados entre si, já que sabem das suas doenças, uma vez que lidam diariamente com casos envolvendo tentativas de suicídio e o bullying, o que exige uma atuação especializada para o redirecionamento da situação. Segundo Sandra Maria, parteira e conselheira fiscal da ARQIB, “A atuação do projeto é muito importante, devido às pessoas que têm dificuldades e precisam de ajuda, ter esse suporte gera uma mudança em nós”.
A saúde mental quilombola merece estar no foco das atenções, as comunidades precisam estar munidas de instrumentos e conhecimentos que permitam e promovam de forma satisfatória a sua resistência, garantindo assim o repasse de um legado saudável às gerações vindouras. O Fundo Baobá, em conjunto com a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) e a Coordenação Estadual das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombo do Pará – MALUNGU, seguem juntos e de forma contínua no movimento de proteção às comunidades quilombolas da Amazônia.
¹ Anna Suav é MC, poeta, jornalista, produtora cultural e audiovisual. Hoje integra a equipe da Negritar Filmes e Produções, na função de coordenadora de comunicação.
² Tamara Mesquita é Jornalista, produtora audiovisual, educadora e comunicadora popular. Hoje integra a equipe da Negritar Filmes e Produções, na função de coordenadora de produção.
Negritar Filmes e Produções é uma produtora de impacto social, composta por pessoas negras.
*Ramal é uma entrada, um caminho, geralmente uma pequena estrada de terra.