Negras vitórias: Um legado de conquistas da população negra

Baobá - Fundo para Equidade Racial

18 de agosto de 2021

“Existe uma história do Negro sem o Brasil.
O que não existe é uma história do Brasil sem o Negro”
(Januário Garcia)

A cantora norte-americana Beyoncé, ao lançar o álbum visual Black Is King, em 2020, recebeu duras críticas por mostrar uma África glamurosa e afrofuturista. As críticas, fundamentadas por profissionais da comunicação e até mesmo por pessoas do meio acadêmico, mostram um imenso desconhecimento da história dos povos africanos, repletas de conquistas e glamour. Antes da colonização européia, o continente africano teve grandes impérios, grandes reinos, além de organizações tribais que possuíam um patamar tecnológico e desenvolvimento de técnicas autônomas. 

Alguns dos principais legados tecnológicos, presentes até os dias atuais, foram desenvolvidos no continente africano: começou no Egito o estudo de hieróglifos e dos mapas lunares para controlar as cheias dos rios. A matemática tem origem em tribos do reino do Congo, além da metalurgia, que também foi desenvolvida em Gana e o sistema de alfabeto, que desenvolveu a escrita, teve início na Etiópia.

A colonização e a escravidão, durante séculos, geraram o apagamento da história,  das conquistas e do pioneirismo da população negra em diversos setores. Na história do Brasil, Princesa Isabel recebe o título de libertadora de negros escravizados, mas o país desconhece a atuação de negros livres que integraram o movimento abolicionista e ajudaram a libertar muitos escravizados, como José do Patrocínio, Ferreira de Menezes, Ignácio de Araújo Lima, Arthur Carlos, Theophilo Dias de Castro e Luiz Gama a quem, recentemente, foi concedido o título de Doutor Honoris Causa, pela Universidade de São Paulo. Era dia 29 de junho de 2021.

Cultne – 40 anos de conquistas negras em um acervo digital

Manter vivo o legado da cultura e das grandes conquistas negras no Brasil é a principal missão do Cultne – Acervo da Cultura Negra, fundado em 1980 por Asfilófio de Oliveira Filho, mais conhecido como Filó Filho, que é engenheiro civil de formação, mas atua como jornalista, produtor cultural e cine-documentarista com mais de 40 anos de experiência nas áreas de cultura, esporte, marketing e comunicação: “O Cultne vem garantindo, há quatro décadas, a valorização da cultura popular, o fomento à cultura de qualidade, possibilitando a interface com as mais diversas camadas sociais e viabilizando a comunicação entre diferentes comunidades”. 

Asfilófio de Oliveira Filho – Filó Filho – engenheiro civil de formação, jornalista, produtor cultural, cine-documentarista e diretor do Acervo Cultne

A história do Cultne inicia na década de 1980, diante do surgimento do Movimento Negro Unificado, na década anterior, e das movimentações e lutas contra o racismo no país. Destas ações políticas derivou a necessidade de documentar em vídeo o levante negro que ocorria naquele momento, mas que não ganhava espaço na grande mídia. Assim nasce o Cultne, que 40 anos depois reúne um acervo com cerca de 2 mil horas de materiais que incluem shows, documentários, filmes, séries, entrevistas, programas, entre outras linguagens.

Fundadores do Acervo Cultne: Ras Adauto, Vik Birkbeck e Filó Filho

Inclusive, foi no acervo histórico Cultne que o rapper Emicida encontrou imagens das mais diversas conquistas negras brasileiras, e incluiu em seu documentário AmarElo – É Tudo pra Ontem (Netflix). Filó Filho afirma que, ao longo dos anos, o acervo Cultne vem contribuindo com diversas narrativas cinematográficas nacionais e internacionais: “O documentário AmarElo de Emicida veio confirmar a quebra de paradigmas que envolve a negação da história afro-brasileira, principalmente nos meios de comunicação e nos bancos escolares. Podemos afirmar que a oralidade de outrora se faz presente em nossas lentes de forma expressiva e fundamental. A companhia de mentes saudáveis como Emicida nos faz acreditar que estamos numa mesma página em que todos nós ganhamos em qualidade e esperança.”

Para Filó Filho, os arquivos históricos no acervo Cultne documentam marcos da cultura negra e a memória pública, garantindo para as gerações presentes e futuras o universo afroimaginário dos últimos 40 anos. Sobre o público que acessa esse material, Filó traz um panorama: “Os que acessam o acervo são, principalmente, professores, pesquisadores e estudantes de diferentes faixas etárias, além de um público em busca de informação e entretenimento”. Filó Filho ainda revela que segundo as estatísticas do canal do Youtube, nota-se que o portal é acessado em diferentes partes do mundo, independentemente do idioma: “Estamos falando de países das Américas, Europa, África e Ásia. Portanto, é gigantesca a nossa responsabilidade em perpetuar esse imenso arquivo que a cada dia cresce mais”.

É no acervo Cultne que encontramos os registros do “1º Encontro Nacional de Mulheres Negras”, realizado no Rio de Janeiro, em 1988, com a presença de Luiza Bairros – ex-ministra de Estado e uma das fundadoras do Baobá,  e outras mulheres negras cujo legado buscamos honrar; da Marcha do Movimento Negro, realizada em novembro de 1983, dentro das comemorações do Dia da Consciência Negra, com a presença e articulação de Lélia Gonzalez; a visita de Pelé e Gilberto Gil pela África, durante o centenário da abolição da escravidão em 1988; a Missa dos Quilombos, ocorrida em 1989, no Rio de Janeiro, idealizada pelo bispo Dom Pedro Cassaldáliga, com música de Milton Nascimento e com intervenções artísticas de grandes artistas como Zezé Motta, Milton Gonçalves, Grande Otelo, Antônio Pompeo, entre outros.

“É impossível alinhar os mais importantes”, afirma Filó Filho, “mas podemos afirmar que os conteúdos que descrevem a trajetória da luta negra em nosso país são os mais relevantes do ponto de vista histórico, como por exemplo as diversas marchas ao longo das últimas décadas envolvendo as lutas do Movimento Negro, das mulheres negras e de centenas de personalidades que contribuíram e contribuem para o combate ao racismo em nosso país e no mundo”. Na lista de personalidades negras, além das citadas acima, temos os fundadores da Frente Negra Brasileira, Aristides Barbosa, Raul Joviano do Amaral, José Correia Leite, Henrique Cunha e Francisco Lucrécio; as intelectuais Beatriz Nascimento e Tereza Santos; mulheres marcantes como Ruth de Souza e Mãe Beata de Iemanjá; ícones como Abdias Nascimento, Joel Rufino do Santos, Zózimo Bulbul, Januário Garcia e Nelson Mandela, ex-presidente da África do Sul e líder da luta contra o Apartheid, que visitou o Brasil em 1991, e o único registro em vídeo da sua visita está no acervo Cultne.

Hoje o recém criado Instituto Cultne vem trabalhando no sentido de “salvar” todo o conteúdo registrado ao longo de 40 anos: “O foco hoje é digitalizar, catalogar e sistematizar todo o acervo o mais rápido possível, sendo que essa tarefa requer recursos financeiros e mão de obra especializada”, diz Filó, que afirma estar buscando parceiros para atingir esse objetivo, além de ampliar a parceria com o Google, a partir da plataforma Google Arts & Culture, no sentido de potencializar tecnologicamente o acervo Cultne, garantindo sua longevidade e disseminação.

Outro fator importante a ser ressaltado é que o Cultne deixou de ser apenas um acervo para tornar-se uma plataforma streaming Cultne.TV: “que se propõe distribuir, gratuitamente, todo o seu conteúdo exclusivo de temática negra, reafirmando ser o maior conteúdo digital de cultura negra da América Latina”.

O aumento de negros na universidade é uma negra vitória

Filó Filho costuma dizer que ele é um negro que furou a bolha ao ser o primeiro da família com curso superior:  engenharia civil. Hoje, houve um aumento significativo de pessoas negras nas universidades, o que pode se considerar uma grande conquista nos últimos tempos. Para Filó, essa conquista se deve ao movimento negro e, em especial a uma geração de militantes que pavimentaram a estrada que existe hoje, pressionou o governo federal para criação de políticas públicas para inserção do negro no ensino superior: “Fomos nós, negros e negras ilustres e anônimos, que fomos às ruas, marchamos, lutamos e nos organizamos em tempos trevosos, durante e após a ditadura militar em nosso país”.

Ainda falando de conquistas negras, segundo o documentarista, a grande virada da luta antirracista no Brasil ocorreu em 2001: “Foi  decisiva a participação da nossa delegação na 3ª Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial, Xenofobia e Formas Correlatas de Intolerância, promovida pela Organização das Nações Unidas ONU), entre 31 de agosto e 8 de setembro de 2001, na cidade de Durban, África do Sul. Após esse encontro, avançamos firmemente nessa área e,  20 anos depois, o panorama é outro, de mais esperança e de união”, afirma Filó Filho.

Para alcançar a justiça racial é também necessário  reconhecer e difundir lutas e conquistas negras ao longo da história, em todos os setores. Para o Fundo Baobá, o eixo comunicação e memória precisa ser priorizado. Uma das metas para o futuro próximo é prover investimentos nestas áreas como parte de uma estratégia coletiva de  valorização e difusão de conhecimentos, saberes, e outros bens materiais e simbólicos; de construção de novas representações sociais da população negra.

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