Fundada na década de 1980, a fundação atua mundialmente com foco em combater desigualdades e o preconceito. Atualmente, os países que mais recebem investimentos são o Brasil e a Colômbia, fortalecendo as lideranças e organizações negras. Conheça parte dessa história que é contada por Lígia Batista, assessora especial do Programa para América Latina.
Boletim – Quando a Open Society Foundations trouxe para o centro a questão da equidade racial nos Estados Unidos e no Brasil?
Lígia Batista – O trabalho da Open Society nos Estados Unidos começou na década de 1980, com foco em melhorar a qualidade dos cuidados paliativos e reformar a política de drogas, dotada de práticas severamente punitivas que recaíam especialmente sobre os negros. Na década de 1990, o trabalho foi ampliado para combater o preconceito nas escolas, no policiamento, nos processos eleitorais e no sistema judiciário, bem como foi intensificado o apoio àqueles que defendiam mais níveis de prestação de contas pelos governos e a proteção dos direitos civis e políticos. Em 2020, a fundação investiu $220 milhões de dólares para fortalecer o poder de atuação e disputa política das comunidades negras norte-americanas, em resposta às ondas de protestos que ainda tomam as ruas do país em reação aos assassinatos de afro-americanos pela polícia. No Brasil, a fundação tem aumentado sua atuação no fortalecimento de lideranças e organizações negras. Apoiamos cada vez mais grupos que se posicionam na vanguarda das disputas políticas e no enfrentamento ao racismo, seja no campo da inovação democrática, da construção de contranarrativas ou do reposicionamento do debate sobre direitos humanos neste país, no qual raça e etnia devem ser entendidas como eixos centrais. Além disso, buscamos contribuir para alavancar o debate sobre o papel que a filantropia deve ter na luta antirracista.
Boletim – E a atuação com o Fundo Baobá?
Lígia Batista – Um dos maiores apoios já realizados pela fundação no Brasil foi para a consolidação do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. A parceria com o Fundo Baobá, iniciada em 2018, visou a consolidação desse projeto que é fundamental. O assassinato de Marielle diz muito a respeito do medo que as elites brancas cisheteronormativas carregam diante do levante de mulheres negras que desafiam as estruturas de poder. E nada é mais vigoroso do que responder a essa tentativa de silenciamento com o fortalecimento de outras vozes negras femininas em todo o país que dedicam sua energia à luta por equidade racial no Brasil sem perder de vista as dimensões de gênero, classe, sexualidades e território, dentre outras. A existência desse Programa, feito por e para mulheres negras, só reforça o senso de que não avançamos sozinhas, mas de forma coletiva.
Boletim – Por que a Open Society Foundations considera relevante apoiar iniciativas, programas e projetos que promovam a equidade racial?
Lígia Batista – Mais da metade da população brasileira é autodeclarada negra. Essa é uma dinâmica única que nos torna o país com a maior população negra fora do continente africano. Apesar disso, ainda que sejamos maioria, há uma clara distorção nas relações de poder. Negros e negras ainda são minoria em direitos, representação e participação política, além de alvos preferenciais da violência armada, da desigualdade econômica, do encarceramento, da intolerância religiosa e da violência de gênero. Assim, em um país majoritariamente negro, no qual uma minoria branca sempre controlou os sistemas de poder, apoiar ações que promovam a equidade racial deve ser uma prioridade. Lutar contra o racismo é lutar por uma sociedade que busque reparar o legado de dor e violência deixado pelo colonialismo e pela escravidão, combatendo as expressões contemporâneas de exclusão que até hoje ainda derivam desses processos históricos.
Boletim – Qual é o papel das fundações na busca por um mundo mais justo e igualitário?
Lígia Batista – O papel da filantropia no Brasil pode ser decisivo para a consolidação de um projeto diferente de presente e de futuro. Ainda que sem dominar os poderes econômicos e políticos que sustentam essa sociedade desigual, os movimentos negros têm dado conta de tocar múltiplas estratégias de ação, já tendo alcançado vitórias históricas. Grandes lideranças do setor filantrópico devem tomar partido nessa discussão, se posicionar do lado certo da história e promover ações concretas, para dentro e para fora de suas instituições. O setor precisa compreender que a neutralidade não existe e que todas as escolhas estratégicas de ação adotadas pelo investimento social privado partem de alguma perspectiva – e elas nunca foram racialmente ‘neutras’. Dessa forma, destaco que o compromisso com a equidade racial no setor deve se refletir na missão, visão e valores das instituições. É preciso incorporar a equidade racial ‘portas para dentro’, a partir, por exemplo, da definição de critérios objetivos e políticas internas para fortalecer a diversidade e equidade nos processos de contratação das equipes, com a garantia de que as vozes negras tenham espaço real de escuta e participação ativa na tomada de decisão. Essa diversidade deve se aplicar também aos conselhos. E pensando em ‘portas para fora’, é urgente investir e fortalecer cada vez mais lideranças e organizações negras da sociedade civil, incorporando o enfrentamento ao racismo de forma clara nos planos de ação.
Boletim – Além do apoio que oferece ao Fundo Baobá, no Brasil, que outros países têm iniciativas apoiadas?
Lígia Batista – A Open Society tem atuação em mais de 120 países ao redor do mundo. A fundação apoia o fortalecimento de sociedades abertas e vibrantes em todos os continentes e tem presença já consolidada e crescente na América Latina. Considerando especificamente o trabalho para equidade racial e as relações raciais na região, os países que hoje concentram a maior parte dos investimentos são Brasil e Colômbia, visando o fortalecimento de grupos afro-latinos e indígenas.
Boletim – Gostaria de fazer algum comentário adicional ou deixar um recado para as pessoas?
Lígia Batista – O recado que eu gostaria de deixar é que é preciso agir agora. Que não tenhamos que esperar por mais casos como os de Ágatha Felix, João Pedro, Rafael Braga, Preta Ferreira, Valéria Santos e tantos outros que escancaram o racismo cotidiano para nos lembrarmos que essa causa é real e urgente. Além disso, destaco que a luta por equidade racial não deve ser travada apenas por pessoas negras: o enfrentamento ao racismo deve ser uma agenda de todos e todas. Cada um de nós tem um papel fundamental para tornar realidade a utopia de justiça, dignidade e direitos para todos e todas.