O processo vivenciado até aqui trouxe à luz os impactos gerados nos seis meses de vivência, de janeiro a julho de 2023, de execução do projeto projeto ‘Saúde Mental Quilombola: Direitos, Resistência e Resiliência’, promovido pelo Baobá – Fundo para Equidade Racial com apoio da Johnson & Johnson, e somente possível de ser realizado a partir do movimento de união e catalização da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ), Coordenação Estadual das Associações de Comunidades Remanescentes de Quilombo (Malungu/Estado do Pará), Associação das Comunidades Remanescente de Quilombo de Igarapé Preto à Baixinha (ARQIB), do admirável empenho da equipe técnica da psicologia, direto e comunicação junto às comunidades, transpondo os estigmas e até mesmo a falta de entendimento sobre o que seria saúde mental. Uma emocionante união que possibilitou a troca de conhecimentos e informações, e, sobretudo, o impulso à vida.
Viver esta experiência na Amazônia é viver toda a potencialidade, cultura, desafios e ancestralidade que só existem nela, é respirar o ar puro, ar com cheiro de Amazônia, de verde e de terra molhada. Vivenciar os territórios é ajustar-se a um tempo que propicia a contemplação, ato que para quem vive a aceleração dos centros urbanos há de gerar um nível de estranheza, pois nos territórios existe a possibilidade tangível da experiência do tempo de qualidade.
A partir da execução do projeto “Saúde Mental” conhecemos e compartilhamos da rotina de 12 comunidades quilombolas, e seus dois anexos, que mantêm seus modos de operação e vida à base da pesca e da roça, do açaí, de tecnologias vivas que estão presentes em seus habitats. O que nos fez refletir sobre a visão da tecnologia ser algo comumente associada à modernidade, ao digital, quando nos territórios a tecnologia pode ser entendida como uma inteligência, como tudo aquilo que é utilizado para resolver e melhorar a vida das pessoas de forma individual ou em coletivo.
A cidade está logo ali, a 50 minutos da Região do Baixo Tocantins, mas mesmo assim as limitações que cercam esse espaço são inimagináveis. E falar de saúde mental é também falar das dificuldades que cercam essas regiões, que sofrem com a falta de estrutura mínima para terem uma vida plena, o que afeta diretamente o dia-a-dia, e nesse sentido o projeto também trouxe uma perspectiva de cuidado e de uma abordagem cautelosa diante da realidade dos territórios. Salomão Santos, que faz parte do conselho diretor da Malungu disse: “O problema da doença é que ela não é causada somente “pela doença”, então a gente não pensa em tratá-la isoladamente, mas tratar a sua causa, tratar o problema que a trouxe”. Entender que a ausência de estruturas sociais afeta as subjetividades humanas é algo de extrema importância na compreensão de que muitos fatores podem desencadear um processo de adoecimento emocional.
Para Teógino Ferreiro, morador do território, ao caminhar pela sua comunidade, Cupu, já é possível notar diferenças do antes e depois do projeto ter iniciado, “Nós sentimos a diferença que o projeto trouxe, vemos as melhorias e mudanças. Mesmo o foco sendo saúde mental, muito foi dito sobre saneamento básico, você anda aqui hoje nas ruas, já vemos as casas mais limpas, mais arrumadas, limpeza, quintal, e tudo isso faz parte da mudança. Na minha vida pessoal, eu tenho dois filhos adolescentes e é um desafio criá-los no mundo de hoje, mas a partir de algumas orientações, eu senti que consegui fazer diferente com eles, isso impactou até na vida escolar deles. O pacto da saúde com a educação”.
Nilva Martins, presidente da ARQIB, também reforçou a importância de cada profissional para essa mudança de perspectiva, aprendizado e fortalecimento da comunidade. “Através da oficina de direito eu pude ter um conhecimento maior sobre os nossos direitos. A equipe de enfermagem conseguiu alcançar mulheres que eu não estava conseguindo alcançar. A equipe da Negritar conseguiu alcançar pessoas que talvez não conseguissem se expressar, mas que hoje como a gente ouve relatos, essas pessoas estão conseguindo se expressar melhor. A equipe da psicologia nem se fala, né?”, relatando que cada atividade e ação desenvolvida plantou uma semente de mudança.
E para falar de direito quilombola é preciso falar sobre direito à vida, para Magno Nascimento, consultor da Malungu, “Sem direito não tem vida. Esse é o ponto central dessa proposta. Sem direito não há a possibilidade das pessoas viverem. Elas vão apenas sobreviver de alguma forma“. E para ele, a partir da realização transversal do projeto “Saúde Mental”, houve um possibilitar e um incentivo a novas experiências e expectativas para as comunidades.
O acesso básico ao direito à saúde é fundamental para que se viva uma vila plena, os atravessamentos que acontecem nas comunidades muitas das vezes também são coletivos e estão associados a outros fatores e direitos que estão ausentes ou comprometidos. “A saúde, ou a falta dela, não é uma questão individual, nunca é uma questão individual. Sempre tem outras questões que vão atravessar diretamente essa individualidade. E aqui a questão do território, da questão agrária está diretamente ligada às questões de violações de direitos”, pontua a psicóloga Bianca Tsubaki.
Essa compreensão de que o todo influencia nas individualidades foi essencial para o diálogo sobre saúde mental e como se sobressair na elaboração de estratégias possíveis e que pudessem fazer sentido para todos os envolvidos. Nisso, as oficinas de comunicação foram essenciais, pois atuaram como um fio condutor do projeto, entendendo as pessoas como protagonistas de suas narrativas, colocando-as para se enxergarem como multiplicadoras de informações através das suas histórias, vivências e do uso das novas tecnologias.
Após seis meses de implementação, o projeto chega ao seu fim, mas com força e com resultados de impacto positivos que ainda estão reverberando não só para as comunidades que comungaram desta realização, mas para todos que fizeram parte, que partilharam conhecimentos e que contribuíram nesta construção. Foram 685 pessoas alcançadas diretamente, em mais de 60 atividades realizadas pelas equipes técnicas nas 14 comunidades do território. Números importantes, mas que simbolizam muito mais que uma estatística, pois são relacionados a processos subjetivos e que ainda poderão ecoar através de cada espaço, grupo e pessoa impactada individualmente, para dentro de suas casas, entre seus familiares e outros membros de sua comunidade e de outros territórios.