Um raio-x da saúde da população negra no Brasil em meio à pandemia

Coronavírus expõe os perversos efeitos da desigualdade que penaliza quilombolas, ribeirinhos, pescadores e pessoas em situação de rua  

Dados divulgados pelo Ministério da Saúde em abril mostram que 1 a cada 3 mortos por Covid-19 no Brasil é negro, embora pretos e pardos somem 1 a cada 4 brasileiros internados com a síndrome respiratória aguda grave. Embora assustadores, esses dados não representam a realidade e podem ser até mais impactantes, segundo Luís Eduardo Batista, coordenador do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde de São Paulo. 

Luís Eduardo Batista
(Coordenador do GT Racismo e Saúde da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco) e pesquisador do Instituto de Saúde da Secretaria de Saúde de São Paulo)

Ele explica que, embora existam dois instrumentos utilizados pela vigilância epidemiológica  para notificar doenças e agravos no Sistema Único de Saúde (SUS) – o e-SUS e o e-SUS VE (DATASUS) –  somente há poucos dias a variável raça/cor foi incluída. “O preenchimento desses campos é fundamental para se ter uma visão mais realista e fundamentada”, afirma o pesquisador.

Rita Helena Borret, médica da família e comunidade, membro do coletivo Negrex de estudantes de medicina e médicos negros e que também é coordenadora do GT Saúde da População Negra, na Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade, concorda. “Há dificuldade de acesso para a população negra à saúde. E, quando olhamos a quantidade de óbitos, vemos que há mais gente morrendo do que em estado grave. Isso evidencia subnotificação”, destaca.  Ela ressalta ainda que um dos motivos para discutir os dados desagregados por raça/cor é reconhecer que no nosso país não existe equidade no acesso à saúde, porque o cuidado nessa área é ofertado de maneira desigual ainda que o SUS oriente a ofertar mais a quem mais precisa, ou seja, ofertar assistência e cuidado de acordo com as necessidades. 

Médica Rita Helena Borret

Segundo Rita, o racismo institucional no Brasil é histórico e, ao longo dos anos, não permitiu que fossem criadas políticas públicas para garantir acesso ao trabalho, à moradia digna, à terra. “O que vemos hoje é esse acesso desigual reforçando quem, neste país, está autorizado a morrer porque tem menos valor”, destaca a médica. Ela acredita que as disparidades e desigualdades vão fazer com que a letalidade seja muito diferente quando a sociedade olhar para a população negra e para a não negra.

O pior ainda está por vir  

Luís Eduardo acredita que, em breve a sociedade brasileira poderá assistir, sim, a uma nova onda de contágio. Muitos pesquisadores argumentam que houve duas ondas anteriores: a primeira atingiu a classe média, que teve contato com o vírus no exterior.  A segunda teve como foco as comunidades. A terceira, então, será cruel com as populações em situação de rua, marisqueiras, pescadores, quilombolas, as pessoas privadas de liberdade e as que vivem em assentamentos.

“Não estão olhando para as pessoas em situação de extrema pobreza, que dependem do lixo para sobreviver, os cuidadores de idosos e as que vivem em regiões sem acesso à água, esgoto e políticas públicas”, completa Luís. De acordo com ele, essa pandemia vai escancarar as diferenças da nossa sociedade principalmente porque “o Sistema Único de Saúde leva um tempo para chegar até essas pessoas”.

Rita Helena concorda e argumenta que a pandemia evidencia o acesso desigual à saúde, pois uma parte da população consegue acessar direitos básicos e outra parte não. Portanto, sem acesso também a saneamento,  medidas e insumos de prevenção, pode-se esperar um genocídio. Segundo ela, a pandemia chegou às comunidades mas não alcançou o pico nem chegou perto do que efetivamente será visto em breve. “Temos um cenário bastante complicado, com áreas em que há grande concentração de pessoas por metro quadrado e falta de saneamento básico”, alerta. 

Aliás, estudo recente realizado pela Fundação Oswaldo Cruz detectou presença do novo coronavírus em esgotos sanitários. Ou seja: existe um alto potencial de transmissão e pouco ou nenhum acesso a medidas de contenção da doença. “Outra questão que a gente não conhece é como o vírus vai se comportar ao cruzar com a tuberculose, que é extremamente comum na favelas e periferias do Rio de Janeiro”, lembra.

Parando o ciclo 

O pesquisador Luís Eduardo Batista explica que é possível interromper esse quadro antes que realmente seja assustador e que se repita por aqui o que foi visto em outros países e, sobretudo nos Estados Unidos. Em Chicago, por exemplo, 68% das mortes pelo vírus foram de afro-americanos. Vale lembrar que, nessa cidade, a expectativa de vida dos negros é 8,8 menor que a de brancos por diferenças históricas estruturais. Percentuais próximos a esse se repetiram no Alabama (44%) e Louisiana (70).

Uma das medidas para interromper o ciclo, de acordo com ele, é olhar para as necessidades da população. “Os hospitais de campanha estão localizados em que regiões?”, indaga. “Um suporte importante poderia ser dado pelos agentes de saúde”: como conhecem as comunidades em que atuam, esses profissionais têm condições de mapear quem está mais exposto e faz parte dos grupos de risco, como idosos, hipertensos, diabéticos, portadores de doenças falciformes e com doenças pulmonares obstrutivas. “Os agentes comunitários têm condições de identificar e ter cuidado com essas pessoas, evitando que se transformem em doentes e, depois, em estatísticas”.

A médica Rita Borret vai além. Diz que é necessário radicalizar a quarentena, garantindo não apenas que as pessoas fiquem em casa, mas que, permanecendo em isolamento, tenham condições financeiras de se sustentar. “Obrigar as pessoas a escolher entre ficar em casa para se preservar ou sair para trabalhar e conseguir dinheiro para comer, é muito cruel”. É essencial exigir que os governantes cumpram o papel que cabe ao Estado em prover condições para o exercício dos direitos básicos. “Somente dessa forma vamos garantir que essa pandemia não vai se transformar em um genocídio, especialmente da população preta e periférica”, confirma ela. Para isso, Rita defende que sejam exigidas do Estado mais ações estratégicas que garantam a equidade da saúde, mais leitos de internação e de CTI, além de respiradores – a fim de que não se reproduzam aqui os números alarmantes da Itália, China e Espanha.

“Vou parafrasear a médica Jurema Werneck. Ela sempre diz que a vida vai ser melhor para a população brasileira quando for melhor para a população negra”, sintetiza. Na verdade, uma sociedade nunca será realmente igualitária se uma parcela tiver todos os direitos garantidos e a outra parte simplesmente morrer sem acesso a nada.

Iniciativas capricham na divulgação sobre a doença para combater avanço nas periferias

Para tentar frear a letalidade do vírus nas comunidades, várias campanhas de divulgação foram criadas para disseminar informações verdadeiras e orientar os moradores. Uma delas foi lançada pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz Rio) no início de abril: “Se liga no Corona!”.  A iniciativa contou com parceria da Redes da Maré e outras organizações de Manguinhos e tem o objetivo de prevenir a disseminação da Covid-19 nas favelas, falando de forma objetiva e bem direta com essas comunidades.  

A Fiocruz havia identificado que a maioria dos materiais de divulgação contra o doença era voltada para a classe média, sugerindo isolamento no quarto, uso de álcool em gel e evitar aglomerações – situações que fogem da realidade da maioria dos moradores das periferias. Por isso, foram criados spots para carros de som, rádionovelas, peças e vídeos para mídias sociais, além de cartazes para expor em locais como pontos de ônibus, táxi e áreas de grande circulação de pessoas – todos em linguagem didática e acessível.  Esses materiais estão disponíveis no portal da Fiocruz e no Maré online para serem baixados.

A campanha também tem o selo “Fiocruz tá junto”, criado para ser usado nos materiais enviados por organizações parceiras e validados pela fundação. O portal conta ainda com outros materiais sobre a doença e uma área com perguntas e respostas. A seção “fale conosco” responde  dúvidas da população sobre a doença. Para divulgar os materiais, a Fiocruz também promoveu uma coletiva para falar com especialistas em comunicação popular.

Para quem quer ajudar

O Fundo Baobá abriu edital para apoiar ações de prevenção em comunidades mais vulneráveis. Para saber mais, clique aqui. Para apoiar esta iniciativa, clique aqui.

Abordando a Mortalidade Materna entre Comunidades Quilombolas do Estado do Amapá.

O que é morte materna?

Segundo a Classificação Internacional de Doenças – CID – (9ª Revisão, 1975), é “a morte de uma mulher durante a gestação ou dentro de um período de 42 dias após o término da gestação, independentemente da duração ou localização da gravidez ou por medidas tomadas em relação a ela, porém não devida a causas acidentais ou incidentais”.  

A Organização Mundial de Saúde (OMS) revelou que cerca de 830 mulheres morrem diariamente no planeta devido a causas evitáveis relacionadas à gravidez, ressaltando que 99% dos óbitos ocorrem em países em desenvolvimento, como o Brasil. A investigação se estende e a OMS afirma que 85% das mortes maternas foram por causas evitáveis, como a doença hipertensiva específica da gestação e as hemorragias. E mais, 71% dos óbitos estavam relacionados à atenção de saúde dada no pré-natal, parto e pós-parto.

O Fundo Baobá articulou junto com a Johnson & Johnson, a Associação Cultural de Mulheres Negras/ACMUN que co-elaborou e o Instituto de Mulheres Negras do Amapá/IMENA que desenvolveu, o projeto Abordando a Mortalidade Materna entre Comunidades Quilombolas do Estado do Amapá.

O Projeto foi realizado durante o ano de 2017 ampliando o olhar de cuidado para além do eixo sudeste e chegando a territórios esquecidos pelos serviços públicos de saúde, com ações que beneficiaram três Comunidades Quilombolas: Curiaú, Tessalônica e Carmo do Maruanum, focando na saúde das gestantes negras dessas comunidades e destacando três eixos: Serviço de saúde, capacitação profissional e desenvolvimento comunitário.

Para a elaboração da proposta, o Fundo Baobá realizou uma pesquisa de mapeamento sobre mortalidade infantil e saúde da mulher entre os grupos de mulheres destas comunidades. A construção coletiva da proposta e sua execução permitiu o intercâmbio de experiências, vivências e capacitação de trabalhadores da área de saúde e de ativistas do movimento social sobre a temática da saúde da população negra, em especial no que se refere à mortalidade materna e infantil e sua articulação com o racismo institucional praticado no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).

O projeto realizou atividades focadas para as mulheres ativistas e profissionais de saúde que foram capacitadas para a multiplicação de informações específicas sobre o tema; garantiu a qualificação de profissionais de saúde para um melhor atendimento, com um olhar diferenciado para as questões de desigualdade racial e levou informações e orientações para pais e responsáveis sobre a melhoria da qualidade de vida das crianças, que envolve incentivo à higiene e saúde infantil, aleitamento materno, vacinação e nutrição, lembrando sempre da importância do pré-natal, do atendimento livre de preconceito e da eliminação da violência obstétrica.

Além das organizações citadas, as demais organizações envolvidas no projeto foram: Associação Mãe Venina do Quilombo do Curiaú, Rede Fulanas – NAB/Negras da Amazônia Brasileira, Organização dos Advogados do Brasil/OAB Amapá, Instituto AMMA PSIQUE e Negritude.

De acordo com Simone Cruz – ACMUN/Associação Cultural de Mulheres Negras, existe uma relação intrínseca entre racismo institucional e mortalidade materna de mulheres negras:

“O  racismo institucional é definido como a incapacidade de uma instituição em prover um serviço apropriado às pessoas em razão de sua cor, cultura, ou origem étnica, ou seja, qualquer sistema de desigualdade que se baseia em raça e ocorra em instituições, sejam elas públicas ou privadas pode-se afirmar ser racismo institucional. No que se refere ao campo da saúde não é diferente, muitos são os estudos em relação a saúde da população negra que apontam que a população negra tem maior predisposição a doenças como hipertensão, por exemplo. Esta é uma das razões que coloca as mulheres negras no topo das causas por mortalidade materna, justamente por não ter acesso a um tratamento adequado que reconheça e dê conta dessa especificidade, evitando a morte materna. Por outro lado o racismo institucional se apresenta através do tratamento oferecido às mulheres negras no SUS, que também é apontado em estudos que as mulheres negras são menos tocadas em consultas ginecológicas assim como a ideia de também as mesmas suportam mais a dor por serem mulheres “mais fortes’, o que ocorre em quaisquer circunstâncias, inclusive na hora do parto. Situações como essa que podemos afirmar como tratamento inadequado, desigual e racista, uma vez que tais condições, de serem fortes e suportarem a dor, são atribuídos somente às mulheres negras”.

Simone Cruz segue ressaltando a importância do projeto para às Comunidades Quilombolas e as mudanças advindas:   
“A realização deste projeto em comunidades quilombolas justifica-se pela necessidade recorrente no Brasil de se debater as condições desiguais a que são submetidas as mulheres negras em nosso país. Isso significa que o fato de fazer parte de uma comunidade quilombola soma-se a uma condição de subordinação a que as mulheres negras são submetidas, as colocando em uma condição de vulnerabilidade social. Atuar em Comunidades Quilombolas no estado do Amapá  nos permitiu ter uma  dimensão das desigualdades raciais relacionadas à saúde vivenciadas por mulheres negras quilombolas. O Estado do Amapá, localizado no Norte do Brasil, tem uma alta taxa de mortalidade materna, cerca de 20 mortes por mês, e a relevância dos números desta fatalidade ocorre entre as comunidades quilombolas. O resultado evidente deste projeto é o conhecimento obtido por parte das mulheres que foram obtidos a partir de vivências da realidade das suas próprias comunidades e do trabalho que lá já desenvolviam, como no caso das profissionais de saúde. As mudanças no atendimento a outras mulheres e a proposição de ações com abordagem de gênero e raça na comunidade é algo que incluíram em seu cotidiano. Com isso, nossa perspectiva é a melhoria do acesso e a melhor qualificação dos serviços para as mulheres que vivem nas comunidades quilombolas”.

Simone Cruz também pontuou algumas ações que em continuidade ao projeto desenvolvido pela parceria Fundo Baobá + Johnson & Johnson + IMENA + ACMUN podem ajudar a diminuir os índices de mortalidade materna de mulheres negras, como:

– A capacitação dos profissionais de saúde, todos, inclusive e, principalmente, xs médicxs;
– A informação porta a porta, trabalho comunitário;
– As campanhas publicitárias;
– A produção e divulgação dos dados.

A enfermeira e integrante do IMENA, Suzana Cristina Pontes deu seu depoimento sobre a importância do Fundo Baobá na implementação do projeto:

“Quando veio a proposta do projeto, eu achei de extrema importância, porque o estado do Amapá está entre os cinco estados em que a mortalidade materna tem sido crescente, e a gente viu isso. Também foi importante o debate sobre a coleta do quesito raça/cor que foi um ganho muito grande, porque existe uma grande dificuldade da população se autodeclarar a partir dos critérios oficiais do IBGE. A troca de experiência foi muito importante no que se refere ao poder da fala. Então o ganho foi muito grande. Geralmente os projetos têm início, meio e fim e este não tem fim, tem reticências, por que ficou para uma continuidade”.

Além do investimento na atenção primária, nas instalações de saúde e na capacitação profissional, uma das formas de auxiliar na redução dos números quando falasse de mortalidade materna é a estratificação das gestantes e crianças. Essa estratificação consiste na classificação das mulheres grávidas em risco habitual (quando não apresentam fatores de risco individual, sociodemográfico, de história reprodutiva anterior ou doença), risco intermediário (fatores relacionados à raça, etnia, idade, baixa escolaridade e história reprodutiva) ou risco alto (condições pré-existentes como trombose ou doenças específicas da gestação, como infecção urinária de repetição).

Após a estratificação, a atenção a gestante é dada conforme a classificação com acompanhamento de uma equipe multidisciplinar que inclui enfermeiros, obstetras, psicólogos, assistentes sociais, farmacêuticos e outras especialidades e também a gestante sabe antecipadamente onde terá seu bebê, gerado assim muito mais tranquilidade durante a gestação.

Onde isso acontece? No Paraná, que em seis anos reduziu em 30% a mortalidade materna e agora serve de modelo para a América Latina.
fonte.


Enquanto alguns Estados brasileiros são modelos para outros países, outros estados e mesmo as Comunidades Quilombolas seguem sendo esquecidos pelos serviços públicos de saúde e pelas políticas públicas de assistência, fazendo com que seja cada vez mais importante a participação da sociedade civil e de outras instituições – como o Fundo Baobá e a Johnson & Johnson – na capacitação de profissionais e na ampliação ao acesso às informações sobre saúde e bem viver e fica assim cada vez mais visível perceber como são tomadas as decisões dos gestores de saúde pública sobre quem tem acesso aos direitos básicos, incluindo o primário: O de viver.