Por Camila Carvalho e Wagner Prado e Fotos Thalyta Cordeiro/DoMar
O cenário de crise econômica pela qual o Brasil vem passando, somado à pandemia da Covid-19 decretada em março de 2020 e que persiste até o momento, porém em nível de intensidade menor que em seu início, determinaram profundo impacto nas iniciativas de empreendedorismo. O relatório divulgado pelo Monitor Global de Empreendedorismo (GEM) em 2020, baseado em estudo do Serviço Brasileiro de Apoio às Micro e Pequenas Empresas (Sebrae) e Instituto Brasileiro de Qualidade e Produtividade (IBQP) indicou que a taxa de empreendedorismo havia caído no país em mais de 18% em relação a 2019.
Dentre os problemas e desafios que trouxeram a queda da taxa do empreendedorismo, podemos citar a dificuldade que os comerciantes tiveram em negociar seus produtos, obter capital de giro e saldar dívidas o que, em grande parte dos casos, os levou a fechar as portas.
Nesse contexto, empreendedores negros e negras passaram a figurar na categoria dos mais prejudicados. É sabido que os empreendimentos comandados por pessoas negras, independentemente de sua identidade de gênero, têm sido os mais atingidos no que se refere à retomada de vendas nos mesmos níveis anteriores à instauração da pandemia da Covid-19. A 13a Pesquisa de Impacto do Coronavírus nos Pequenos Negócios, realizada pelo Sebrae, indicou que 72% dos empresários e empresárias negros estão faturando menos, enquanto no empresariado branco, 66% indicaram o mesmo problema. Em termos de faturamento positivo, a mesma pesquisa mostrou que 10% dos negros conseguiram incremento com a retomada da economia. Entre os brancos, o índice foi de 14%. A perda de receita atingiu 35% dos negros e 27% dos brancos.
O acesso ao crédito foi outro fator analisado pela pesquisa, feita em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV). Segundo ela, 35% do empresariado negro entrevistado estava inadimplente, enquanto entre os brancos endividados o número era de 24%. A pesquisa foi divulgada em janeiro de 2022.
O edital Negros, Negócios e Alimentação
O Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a empresa alimentícia General Mills, lançou em novembro de 2021 o edital Negros, Negócios e Alimentação para apoio a nano, micro e pequenos empresários dos segmentos de alimentação, gastronomia e culinária. O edital integra o Programa de Resiliência, Recuperação Econômica e Equidade Racial, estabelecido no contexto da pandemia da Covid-19. A seleção recaiu sobre 14 empreendimentos que, até o final do edita,l receberão recurso financeiro no valor de R$ 30 mil cada, e também formação com aulas voltadas para o desenvolvimento e fortalecimento de seus negócios, cujos conteúdos serão também alinhados com aquilo que se evidenciou no diagnóstico e analise de situação sobre cada empreendimento, realizados por meio de entrevistas presenciais realizadas por equipe especializada. O Baobá tem como premissa oferecer o recurso financeiro e, ao mesmo tempo, municiar os donatários de conhecimento para que o uso dos recursos sejam potencializados e os ajudem a alcançar suas metas.
As entrevistas e visitas ocorreram entre os dias 17 e 24 de agosto e também contaram com a nossa presença (Camila Carvalho e Wagner Prado), como parte da Equipe Baobá. De nossa parte o objetivo foi conhecer e ouvir os donatários, suas histórias e, principalmente, entender as mudanças que o investimento propiciado pelo edital Negros, Negócios e Alimentação, podem trazer a um empreendedor e a um empreendimento negro.
Em comum entre os empreendedores e empreendedoras do edital está o amor pelo ato de cozinhar. Nenhum das pessoas apoiadas apresentou-se “apenas” como administrador ou administradora do seu negócio. Literalmente, eles colocam a mão na massa. E como bem definiu Stella Francisca do Nascimento, 27 anos, do restaurante Zé do Ó, em Porto de Galinhas: “Nós entregamos afeto por meio dos alimentos.” Alguns pontos dessas histórias de afeto, desdobramento, fé, resiliência e esperança no futuro, muita esperança, serão contados aqui.
Caminhos Cruzados 1
Entre os 14 empreendimentos selecionados pelo edital, 11 têm à frente uma mulher, 2 são comandados por homens, e 1 negócio por uma travesti, tendo eles entre 25 e 63 anos, e estando majoritariamente localizados nas regiões periféricas das cidades. Clique aqui para acessar a lista dos empreendimentos apoiados.
Maria da Paixão, Rosana, Rivaneza, Isamara e Alexsandra são mulheres casadas que vivem com seus companheiros, que estão sempre a postos para colaborar com o “negócio da casa”, já que o perfil de comando habita o espírito e o jeito de ser dessas cinco mulheres.
“Você tem que acreditar em você quantas mil vezes for, porque a gente ouve muito não” – Maria da Paixão de Brito – Capibaribe Doces e Salgados
Maria da Paixão, 63, vem de uma família de 18 irmãos. Uma casa com tanta gente precisa ter mantimentos à altura, o que não acontecia na casa dela. “Minha mãe não teve um marido que assumisse a feira da semana. Não tínhamos dinheiro e não tínhamos comida. Íamos para o colégio para comer a comida que davam lá”, conta. “Eu passei muita fome. Quando comecei a trabalhar com comida na casa dos outros, me agarrei nisso”, completa. Hoje D. Maria, que não completou o ensino fundamental, dá uma verdadeira aula sobre a vida de empreendedora, e faz uso dos mais diferentes e modernos termos usados no mundo do empreendedorismo. Ela fala das aulas e cursos que faz para aprimorar ainda mais seus conhecimentos e, com muita vontade, mostra que seu interesse é sempre aprender cada vez mais. “O meu sentimento é esse, de se melhorar mesmo, por isso que eu fico buscando as palavras difíceis de interpretar, que é pra ter confiança no que você está dizendo.” Na casa de D. Maria esse é um ensinamento passado de mãe para filho, que segue o mesmo caminho pela cozinha da Capibaribe.
Entre essas empreendedoras, outra grande batalhadora é a matriarca que comanda o Tempero da Rosa: Rozenir Maria da Silva Nascimento, 58. A vida dá muitas voltas. A frase feita define muito bem um fato que marca a existência dela, atual proprietária do Hotel Central, localizado no bairro Boa Vista, região central de Recife. Rosa trabalhou no hotel ainda menina, a partir dos 13 anos, ajudando a própria mãe. “Quando vim, o antigo dono pagou um curso de cozinha para mim. Meu compromisso era vir cobrir as férias das outras cozinheiras”, diz.
Rosa lembra que o Central era frequentado por grande parte da elite recifense na década de 1970, que ia lá para desfrutar da boa comida oferecida pelo hotel. Como empregadas do local, ela e sua mãe, assim como os demais, em sua maioria pretos e pretas, tinham que acessar as dependências do hotel pela porta dos fundos. Circular na área dos hóspedes só mesmo para aqueles que faziam serviços diretos: garçons, garçonetes, camareiras, carregadores, por exemplo. Rose foi acompanhada por esse traço do racismo durante toda adolescência.
Os anos foram passando e Rosa se descobriu uma empreendedora. Casada com o militar Luiz há 42 anos, tiveram quatro filhas. Depois de vender minipizza e frutas de porta em porta, Rosa decidiu em 2002 apostar em um convite feito por uma amiga que havia ganhado uma licitação para um negócio de alimentação dentro de um quartel. Rosa pediu demissão e passou a trabalhar no negócio de alimentos. Ficou por 5 anos e decidiu seguir sozinha. Teve bar de praia, barraca de alimentos em uma praça até que veio o convite que mudou sua vida. O restaurante do Hotel Central estava claudicante. O proprietário a convidou para administrar. Rosa aceitou. A situação do hotel também não ia bem. O proprietário retirou-se da operação. O Central iria fechar. Mas há dois anos ela assumiu toda a operação junto com as filhas Marcela (Administradora de Empresas), Maxilandia (Pedagoga), Marciomilia e Marciele (Psicóloga).
O ranço racista dos anos 1970 foi experimentado novamente por Rosa como arrendatária do Hotel Central. Uma hóspede branca, figura frequente no Central, professora de História da Universidade Federal de Pernambuco, agrediu Rosa verbal e fisicamente. “Ela disse que não admitia que negros estivessem no Hotel Central”, afirma. Com os protestos de Rosa e a intervenção de uma funcionária, a professora universitária racista investiu para cima de Rosa, que revidou.
Rozenir Maria da Silva Nascimento quer se fixar como empreendedora. Uma missão social move esse desejo. “Eu peguei esse hotel porque tenho um objetivo: minha mãe trabalhou muito tempo aqui. Então, quero dar emprego a muitas mulheres”, revela.
“Me sinto vencedora entrando pela porta da frente em em um lugar em que eu só entrava pelos fundos”
Rozenir Maria da Silva Nascimento – Tempero da Rosa
E quando o assunto é ser mãe e empreendedora, não podemos deixar de registrar o amor à maternidade que é demonstrado e escancarado pela donatária Alexsandra, formada em Design de Moda, mas que hoje concilia esse amor pela área com a paixão de “bulir” e fazer descobertas em sua “Cozinha Buliçosa”. “Eu queria para minha vida algo que fizesse mais sentido”, diz. A principal transformação veio por conta da leitura influenciadora do livro A Política Sexual da Carne: Uma Teoria Crítica Feminista-Vegetariana, de Carol J. Adams. A autora, baseada em pesquisa que realizou durante 10 anos, traça a ligação entre o domínio social masculino, a cultura de violência contra as mulheres, a consequente objetificação feminina dentro de uma sociedade patriarcal e o ato de se consumir carne.
A partir disso, a necessidade de uma mudança de horizontes e a influência da leitura, Alexsandra passou a pesquisar sobre a produção de alimentos à base de vegetais. Optou pelos hambúrgueres. Batizou o seu empreendimento de Cozinha Buliçosa. “Buliçosa vem de bulir, que é mexer com algo. Como sou muito curiosa, acabei dando esse nome”, diz. Hoje, Alexsandra se alegra ao falar do edital, e vibra com as possibilidades trazidas com ele. “A terceira (fase de seleção do edital) foi triunfal, eu saí gritando no meio da rua”, diz ela sobre o momento em que soube que havia sido selecionada.
“Eu não sou vegana e minha cozinha não é vegana. Minha cozinha é cíclica. Quero que a comunidade entenda que a alimentação natural é para todos. Não é apenas para brancos ricos”, afirma.
Já a donatária Rosana Ramos, 38, é empreendedora desde os 15 anos, mas já fez muita coisa para garantir sua independência financeira, passando por venda de cosméticos, lanches, venda de planos de saúde, professora de creche, auxiliar de serviços gerais e telemarketing, mas dentre os altos e baixos da vida, assim como no mundo dos negócios, Rosana está passando por um momento de transformação. As chuvas do mês de junho em Recife inundaram o bairro de Jiquiá, onde ela vive com o marido Gilvan e as filhas Giovana Eloá, 7 e Maria Sofia, 2. A casa de Rosana ficou praticamente submersa. Móveis e eletrodomésticos foram danificados ou perdidos. A solução foi reconstruir a casa. O terreno foi aterrado, ganhou uma nova elevação e, sobre ela, a nova construção foi erguida. Nela, um espaço para a D´elicias da Rosana está reservado. Vai ser nesse espaço que ela vai seguir fazendo suas obras de arte em formato de bolos.
Rosana conta que a dedicação à confeitaria veio mais da insistência das pessoas do que dela mesma. “De tanto insistirem, eu comecei a fazer. Peguei gosto e comecei a investir. Comprei alguns bicos (de confeitar) e passei a treinar em casa. Fui para o Youtube, onde se ensina tudo, e fui aprendendo. Comecei a fazer os bolos e a trabalhar com isso, mas sentia falta de aprender como gerir meu próprio negócio”, afirma. São os conhecimentos gerenciais que Rosana está buscando na Jornada Formativa promovida pelo Fundo Baobá. Com muito entusiasmo mostra seu interesse nas formações e muita empolgação com as mudanças já trazidas pelo edital. “Ainda não entendo de precificação. Não tenho essa noção e preciso ter. Estou melhorando. Antes de ser selecionada pelo edital, o que eu tinha de equipamento aqui era básico. Eu não tinha uma boleira bonita, uma bailarina (prato giratório para colocar o bolo)”, comemora.
Conhecemos uma outra mãe que, vendendo acarajés, criou três filhos e pagou a faculdade da filha Isamara Costa Cruz, formada em Engenharia de Produção. Hoje aos 30 anos, Isamara, donatária do edital, é quem toca o Acarajé da Tia Joana, alcunha pela qual ficou conhecida sua mãe, Lucivania. “Sou muito grata por estar onde estamos, vendo de onde a gente saiu. Mas eu quero ter condição de ter uma minifábrica e um galpão apenas para a produção do acarajé”, afirma Isamara, que aos 18 anos passou a trabalhar diretamente com a mãe e, aos 26, depois de formada, passou a gerenciar o Acarajé da Tia Joana.
Isamara tem preocupação com tudo o que se refere ao Acarajé. Da apresentação do produto, o design da embalagem delivery, ao atendimento dos clientes no ponto de venda. O envolvimento dela com seu produto é tanto que o seu Trabalho de Conclusão de Curso, o TCC, foi sobre a receita do produto. “Quando comecei a trabalhar, não havia registro da receita. Eu acabei fazendo isso”, diz orgulhosa. Além do amor pelo trabalho, Isa tem também o amor pelo significado do negócio para sua família, que hoje vive inteiramente do Acarajé da Tia Joana, por isso todas as forças são depositadas ali, em família e para a família, envolvendo desde primos a conhecidos, garantindo sucesso e união entre o negócio e eles, e gerando fortalecimento financeiro e a mudança na vida de todos. “Hoje, o maior orgulho da minha vida é o Acarajé, é a história. Eu não consigo falar sem me emocionar”, afirma Isamara.
A forte ligação familiar demonstrada por Isamara está presente também em Stella Francisca do Nascimento, 27. Ela é filha de Zé do Ó, figura que dá nome ao restaurante mais antigo de Porto de Galinhas, com 43 anos, e o único fundado, de propriedade e gerenciado por uma família negra desde o final dos anos 1970. Ali, a peixada é o prato mais pedido pelos clientes. Atualmente, quem comanda o negócio é Stella. Zé do Ó continua com sua atividade de pescador. O nome dele (José do Ó) vem de uma promessa feita pela avó de Stella. Depois de sofrer a perda de dois bebês, ela prometeu a Nossa Senhora do Ó que se o bebê que esperava fosse menina seria chamada Maria do Ó. Se menino, José.
Como os demais empreendimentos em Porto de Galinhas, o que traz clientes para o Zé do Ó é o turismo. A qualidade da comida é muito boa. Fomos recebidos em nossa visita com um caldo de camarão dos deuses. Quando a comida é boa, logo queremos saber quem prepara, e as mãos mágicas são a de D. Marleide, mãe de Stella. Uma das reivindicações da filha junto à mãe é a revelação das receitas que faz, coisa que D. Marleide não quer revelar de jeito nenhum. “Já disse a ela que temos que ter as receitas. A cozinha não pode ficar nas mãos de uma só pessoa. Se ela não estiver, a comida tem que ser feita de acordo com o que ela determinar. E isso vai estar nas receitas. Mas ela tem resistido contar”, afirma.
O período pandêmico, quando o turismo foi abalado e a frequência em Porto de Galinhas foi severamente reduzida, impactou os negócios. Stella foi obrigada a ver o restaurante, local de onde obteve o dinheiro para custear sua formação em Direito na Faculdade Marista, indo na direção de ter que fechar as portas. Por intermédio de amigas, porém, ela foi informada sobre o edital Negros, Negócios e Alimentação. “Confesso que não acreditei quando li. Questionei. Como um Fundo daria dinheiro para alguém em Ipojuca?” (município onde está localizado o distrito de Porto de Galinhas.)
O resultado final da seleção trouxe esperança para Stella, D. Marleide e Zé do Ó. “O edital reforça a crença de que não só eu e minha família botamos fé. Foi muito fortalecedor para eu saber que um Fundo também acredita em nós, no nosso potencial”, diz.
Rivaneza, 37, e Thiago são um casal que empreende de mãos dadas. Riva, como é tratada pelos familiares e amigos, tem formação em Turismo. Thiago é formado em Ciências Sociais. Eles se dedicam a produzir alimentos de forma artesanal, por intermédio de técnicas de fermentação, processo esse que sempre é contado carinhosamente e detalhadamente pelo casal. A produção de requeijão cremoso à base de castanha de caju e a ghee, um tipo de manteiga que pode melhorar a saúde intestinal. Mas o carro chefe da produção são os kombuchas, bebidas fermentadas feitas à base de chás.
Riva e Thiago, além da proposta de produção alimentar, têm uma proposta social. O amor de Thiago por suas raízes rurais está levando o casal a deixar sua casa atual para viver no sítio da família de Thiago, em uma comunidade rural na região metropolitana, em Goiana. Lá, a partir da transferência da Dona Terra (nome do empreendimento deles), pretendem gerar empregos e expandir a área de distribuição dos seus produtos e também levar informação sobre produção e consumo de alimentos artesanais para os moradores da comunidade. Durante a conversa, Thiago fez questão de falar sobre o diferencial do edital do Fundo Baobá: “[…] Vem com um plano de direcionamento, com uma provocação, uma reflexão sobre teu negócio, pra você pensar de que forma melhor você pode estar continuando sua caminhada”, diz Thiago, e Riva complementa “É porque vem de pessoas que entendem a nossa realidade, de uma forma ou de outra expertise do Baobá e das pessoas que fazem, de vocês também, tem essa minúcia de trazer pessoas que vão compreender, não vão botar aleatórios consultores que não têm vivência com a realidade. […] O dinheiro é massa, mas se perde rápido sem a orientação”. “A solução da gente não é dinheiro […] tem que encontrar primeiro o norte da gente, crescer de forma coesa, chegar num padrão, melhorar os processos, ter ferramentas de controle. Quando tiver uma estruturação base, a gente pensa no crescimento”, finaliza Thiago.
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“Não comecei um empreendimento por necessidade, para me sustentar. Eu tenho outra relação com a comida” – Rosilene Rodrigues dos Santos – Tabuleiro
Ambas são mulheres fortes. Ambas sofreram a perda de seus companheiros. Junto deles e com eles, sonharam empreender. Mesmo sem eles, construíram sonhos sonhados a dois. A primeira é Marileide Alves de Lima, uma jornalista que montou no quintal de casa o Xero Café, no Bairro Novo, em Olinda. A segunda. Rosilene Rodrigues dos Santos, 61 anos, a Rose. Ela é proprietária do Tabuleiro, empreendimento que atua no fornecimento de comida para eventos.
Marileide, 55, decidiu criar um café no quintal de casa quando a opção por deixar a redação tomou conta de sua cabeça. “Eu conversei com meu marido e ele abraçou a ideia. Passou a sonhar com o café junto comigo. Ele se engajou nesse sonho meu que se tornou dele também”, afirma. Em novembro de 2018 o Xero Café era inaugurado. A proposta do Xero é juntar no mesmo espaço as paixões de Marileide: “Quis juntar no mesmo espaço a minha paixão por café, pela comida regional aqui de Pernambuco e arte, porque sou também produtora cultural”, revela. A paixão de Marileide pelo café tomou também a cabeça de seu filho, André, que fez o curso de barista para levar todo conhecimento sobre diferentes drinks e bebidas à base de café. Olinda é um dos destinos mais procurados dentro do estado de Pernambuco e tanto o público interno quanto o externo (turistas) são buscados pelo Xero Café. No dia de nossa visita, que aconteceu no período da tarde de uma sexta-feira, presenciamos a chegada do público, que tem no Xero o ponto preferido para relaxar após o trabalho, encontrar os amigos ou mesmo ter um encontro.
Ao contrário de Marileide, que recebe o público em seu estabelecimento, Rosilene leva a comida ao encontro do seu público. Ela conta de onde veio a ideia de dar ao empreendimento o nome de Tabuleiro. “O tabuleiro foi um dos primeiros instrumentos usados pelas mulheres negras para vender seus produtos”, afirma. O Tabuleiro é um empreendimento familiar, que trabalha fornecendo comida para eventos. À frente de toda prestação de serviços estão Rose, seus filhos Lande, 24, e Mauri Dijá, 22. Os nomes vêm do dialeto quimbundo, falado em Angola. Lande significa “aquele que chega à frente”. Mauri Dijá, “negro lutador”. Além dos filhos, ela conta com o apoio do sobrinho Willamis, 35, que é o coordenador de toda operação.
Rose do Tabuleiro, como ela também é chamada, tem formação superior em Economia Doméstica e ocupou uma cadeira no Conselho de Igualdade Racial da Cidade de Recife e foi Secretária de Igualdade Racial da Cidade de Recife por 8 anos. A questão da identidade negra está no que produz para os eventos. “Na linha da identidade afrobrasileira, não temos concorrência. Outro diferencial do Tabuleiro são as indumentárias que usamos, que deixaram o serviço bem mais atrativo e causa curiosidade nas pessoas, dando um outro tom”, revela.
O Tabuleiro não produz tudo o que leva para os eventos. Rose estabeleceu algumas parcerias, como uma rede de conexões entre empreendedores negros, como forma de reduzir sua carga de trabalho e também como forma de gerar empregos e fazer a economia girar. Em todas suas falas a comunidade e a cultura negra estão sempre em foco nas atividades do Tabuleiro. “Quem contrata o Tabuleiro está contratando pelo menos outros cinco empreendimentos que trabalham com a gente”, afirma.
“A gente não foi buscar um recurso por buscar, a gente foi buscar um parceiro […] no sentido de nos ajudar a continuar crescendo, sem contudo fugir dos princípios que a gente estabeleceu para o empreendimento”, diz Rose, sobre o edital Negros, Negócios e Alimentação.
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Esse olhar sobre a comunidade negra também é pauta para a MaMê Comidinhas. Se for para traduzir, seria Comidinhas da Mãe. A MaMê, no caso, é Manoelly Soledade da Silva, 43. Manoelly impressiona pelo sorriso, beleza e determinação. Mãe solo de quatro filhos (Gabriel, 25; Thiago Manoel, 11; José Arthur, 10 e Jorge, 7), ela cursou Gastronomia na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) vendendo brownies para custear as despesas que tinha para poder estar na universidade. O filho mais velho, Gabriel, foi quem arcou com as despesas da casa enquanto a mãe terminava o curso. Ele também ajudava na venda dos brownies, bolos e alguns doces produzidos por ela, e foi o principal incentivador de Manoelly, que por muitas vezes precisou se dedicar aos estudos com a companhia do pequeno Jorge dentro das salas de aula, já que não tinha com quem e onde deixá-lo.
Manoelly sempre foi curiosa sobre cozinhar. “Observava muito a minha avó na cozinha. Lembro de fazer feijão aos 8 anos de idade. Algumas receitas que uso hoje são as dela”, conta. Algo marcante a levou em definitivo para o ato de cozinhar. Em 2009, quando da passagem do Cirque Du Soleil por Recife, Manoelly candidatou-se a uma vaga de trabalho no staff da companhia. “Eles tinham como exigência que o inglês fosse impecável. O meu era de intermediário para baixo”, diz. Porém, de alguma forma ela impressionou e conseguiu uma vaga de recepcionista na área vip. Quando a turnê terminou, Manoelly foi convidada a seguir com eles para Porto Alegre. Ela, então, pediu uma mudança de função. Queria trabalhar na cozinha. Foi atendida. Trabalhou com o pessoal do circo canadense por seis meses e ganhou muita experiência com gastronomia.
A Mamê Comidinhas está sendo melhor estruturada dentro da casa em que Manoelly mora em Paulista, cidade da região metropolitana de Recife. A casa é própria e foi deixada para ela e um irmão pelos pais, que decidiram viver em outro lugar. Com a primeira parcela recebida do edital Negros Negócios e Alimentação, Manoelly está comprando equipamentos para poder produzir mais e ao mesmo tempo armazenar seus produtos.
“Procuro priorizar pessoas negras nas minhas escolhas para trabalhar. Priorizo também as mulheres, porque como negra sei que alguns espaços me foram negados”
Manoelly Soledade da Silva – Mamê Comidinhas
Ainda sobre esses espaços e a dificuldade se encontrar outros negros neles, em meio a sua história sobre experiências com o racismo estrutural, Manoelly se enche de alegria ao falar de uma das etapas de seleção do edital: “Foram vários momentos maravilhosos(no processo junto ao Baobá) […] A entrevista (da 2ª fase) era um preto do outro lado da tela, um pouco mais velho que o meu o filho, lembrava muito ele, eu nunca participei de uma entrevista que tivesse uma pessoa negra me entrevistando, isso foi muito simbólico, foi muito significativo para mim […] independente de eu passar nesse processo ou não, essa entrevista vai ter valido a pena tudo”.
A determinação vista em Manoelly é a mesma que move Angélica Nobre de Lima Silva, 49, e também mãe solo, proprietária do Angu das Artes, empreendimento que ela toca com a ajuda dos filhos Mariana e Yuri. O sonho de Angélica é que o Angu das Artes se torne um point culinário em Recife, com as pessoas se deslocando até o Alto de Santa Isabel para experimentar a comida feita por ela e por eles.. O Alto de Santa Isabel fica em um morro e um dos acessos é feito por um escadão. A empreendedora tem muita fé em que isso aconteça, pois em cidades como o Rio de Janeiro, por exemplo, as pessoas não se detêm se o lugar onde querem comer ou se divertir de alguma forma fica em um morro. Elas vão.
Para que o Angu das Artes se transforme nessa boa opção gastronômica, Angélica está estruturando o local, que funciona em sua casa. O amplo quintal que até pouco tempo era de terra já foi cimentado e ganhou uma cobertura. Mesas e cadeiras de madeira foram compradas. A gerência do Angu das Artes é feita por Yuri, que está concluindo a graduação em Administração. Mariana, a irmã, cursa História na Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), onde é bolsista. Angélica tem formação em Gestão Ambiental. A ligação dela com as panelas vem, também, da observação da dedicação de sua avó no preparo dos alimentos.
Por ser gestora ambiental, a questão do reaproveitamento e da reciclagem fazem parte da missão imposta por Angélica para ela mesma e para o seu negócio.. A filosofia de Angélica é a de que tudo que se usa na cozinha pode, de alguma forma, ser transformado em outro alimento ou ser reaproveitado de alguma forma. Angélica transformou seu histórico de fome em conhecimento, e aquilo que sua mãe fazia por necessidade para alimentar os filhos se tornou objeto de estudo e trabalho. Angélica tem por objetivo incentivar pessoas a mitigar a pobreza alimentar e gerar renda para que mulheres também possam alcançar sua independência financeira.
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Akuenda Translébicha, Alleff Souza do Nascimento e Cauã Ferreira da Silva não se conheciam até o dia 16 de agosto quando o Fundo Baobá para Equidade Racial juntou em uma sala no 7o andar da Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) os representantes dos 14 empreendimentos selecionados pelo edital Negros, Negócios e Alimentação. Akuenda tem a Dhuzati Mostrusidade Antiespecistas. Allef está tocando a Delícias do Alleff e Cauã é o proprietário do Brownie do Rolê.
A luta dos três para se firmar como empreendedores é dura como a de outros tantos nano, micro e pequenos empresários que tentam se estabelecer no Brasil. Em termos sociais, porém, a luta deles também se opõe às barreiras racistas e preconceituosas que se erguem contra el@s.
Akuenda, 35, é uma defensora da causa da proteção dos animais e enxerga na produção de alimentos a forma de ser independente e viver do seu próprio trabalho. Ela pesquisa técnicas e conhecimentos alimentares ancestrais e trabalha com cozinha de plantas. A empreendedora tem um amplo conhecimento sobre questões sociais históricas que acercam o propósito de seu negócio, e seu trabalho, segundo ela, vem ajudando a quebrar as barreiras existentes nas classes menos abastadas com relação à comida feita a partir de plantas, e o compartilhamento dessas informações que é chamado por ela de “contaminação”, segundo ela, já está em curso e já atingiu muita gente.
Assim como a maioria dos donatários, o principal desafio na produção da Dhuzati era em relação ao armazenamento, mas com a primeira parcela do recurso, Akuenda já conseguiu comprar sua freezer, equipamento primordial e essencial para o negócio.
Alleff, de 29 anos, está dedicado à produção de bolos, mas foi a necessidade financeira que o fez despretensiosamente começar a produzir trufas de chocolates apenas para complementar a renda de casa. O local de vendas era o antigo espaço de trabalho de seu companheiro Leandro, um grande “marketeiro intuitivo”, que hoje também se dedica somente ao “Delicias do Alleff”, e deposita todos seus conhecimentos ali, já que as trufas fizeram tanto sucesso que levaram Alleff a investir de vez na cozinha, e a partir daí foi só gosto pela vida de empreendedor e pela autonomia no ramo da confeitaria. O sonho de crescimento, porém, é o de levar o empreendimento para um local físico na zona norte da cidade, mas para além de seus sonhos Alleff e Leandro também investem no aprimoramento daqueles que os acompanham nessa jornada, os colaboradores, que também fazem parte da comunidade onde o negócio está localizado e tiram dali suas rendas familiares e muito aprendizado sobre gestão, negócio e bolos.
“Nos meus trabalhos formais eu tive dificuldades com essa questão de cor e gênero, e sofri determinadas situações muito constrangedoras e bem pesadas, que me levaram a não querer estar nesses ambientes. Hoje em dia, ter a própria empresa, estar na liderança e poder gerar oportunidade pra outras pessoas e contribuir com um ambiente livre de qualquer tipo de discriminação também é motivo de orgulho […] Toda essa bagagem me traz isso, ter uma visão muito ampla de que as pessoas precisam de oportunidade”, diz Aleff.
E por fim temos Cauã Ferreira da Silva, 25, formado em Biologia (licenciatura). O nem tão recente negócio do Cauã surgiu como uma necessidade de complementar a renda. Com R$150 que pegou emprestado de um amigo, ele então criou o “Brownie do Rolê” em 2017. As ruas foram o seu ponto de venda, mas ele já estruturou o negócio para operar em delivery. Hoje, além de produzir os alimentos, Cauã faz oficinas e compartilha seus conhecimentos sobre cozinha.
Visando a otimização do trabalho, um computador já foi comprado com parte do recurso do edital do Baobá. No futuro, quando o Brownie do Rolê estiver consolidado, a ideia é mudar a marca para BDR, já que hoje Cauã se dedica a fazer mais do que brownies e impressiona qualquer um que tenha a oportunidade de experimentar suas tortas e principalmente o seu famoso e mais vendido empadão de tomate com queijo coalho (cá entre nós, é aquele famoso de “comer dando graças”). Para apresentar tudo que pode oferecer futuramente, ele sonha em ter um ponto físico, mas também em unir seu amor pela cozinha e pela licenciatura. “Quero ter um restaurante que seja referência aqui no Recife. Ao mesmo tempo, quero me manter dando aulas”, afirma Cauã, que nos deixa instigados a entender como alguém tão jovem tem seus planos tão desenhados e tanta clareza sobre suas ideias.
“Olhando para trás eu não imaginava que estaria aqui com vocês na minha salinha […] O Baobá tá fazendo tudo fluir de uma maneira que eu consiga colocar meu empenho. Porque por muito tempo eu vi meu empenho não dando muitos frutos, porque eu não conseguia fazer só meu trabalho, só meu talento dar conta de fazer a empresa crescer, então o Baobá está sendo literalmente essa oportunidade que eu tenho de colocar em prática o trabalho que venho fazendo […] Eu sinto que é o ponto de partida”, diz Cauã.
Enquanto o próprio restaurante não vem, Cauã ganhou a oportunidade de tornar as sua shabilidades culinárias conhecidas em um novo espaço cultural aberto na cidade, o Quilombo Urbano. Cauã vai passar a comandar a cozinha do local a convite da produtora cultural Rafaela Gomes. O Quilombo Urbano é um espaço de socialização dos pretos de Recife e vai trazer parte do sonho de Cauã, de ter um ponto físico, à realidade.
Depois de conhecer os 14 donatários, podemos enxergar o potencial do edital Negros, Negócios e Alimentação e como toda a sua estrutura pode unir as pontas soltas dos negócios selecionados. Desde a necessidade financeira para adquirir equipamentos/utensílios para a produção e armazenamento de seus produtos e que otimizem os processos de trabalho, até os grandes desafios relacionados à gestão de seus negócios, que foram mencionados por todos eles, que anseiam fortemente, além do recurso financeiro, o conhecimento que poderão adquirir com a Jornada Formativa. Os participantes nos colocam frente às suas expectativas que são pontos essenciais dos objetivos que compõem o programa para garantir o fortalecimento dos empreendimentos selecionados.
Para além das coisas em comum entre os empreendedores, é nítida a singularidade de cada pessoa por trás de cada negócio, cada história. Também de certo modo, ao mesmo tempo desafiador, é encantador olhar para essa diversidade que enriquece o edital, como linhas que interligam a conexão entre região, raça e amor pelo processo de fazer comida e entregar afeto em forma de alimento em seus negócios. Quando olhamos quem e o que faz parte desse edital, vemos que ele faz juz ao seu nome: ele é sobre Negros, Negócios e Alimentação, na rica e grande cultura da região pernambucana.