Associação quilombola combate ao racismo ao resgatar e preservar a memória de quilombo em formato audiovisual

Por Edmara Pereira e Ingrid Ferreira

“1 milhão de reais pra mim é aquilo que ontem foi passado lá, o mundo inteiro nos conhecer, saber que existe mais uma comunidade no Brasil que vem lutando por justiça, pela preservação das nossas raízes, pelo nosso passado… E vocês chegaram para iluminar cada vez mais o nosso caminho, para abrir a estrada…” (Vicente da Conceição Victor ex-presidente da Associação dos Moradores Amigos e Amigas da Fazenda Santa Justina)

Vicente da Conceição Victor – Ex-presidente da Associação dos Moradores Amigos e Amigas da Fazenda Santa Justina

Essa fala emocionante é de um quilombola que se orgulha de sua história e luta por visibilidade e acontece logo depois do lançamento do documentário “Quilombo Luta e Resistência”, em agosto de 2022. O documentário é um dos produtos do projeto da Associação dos Moradores Amigos e Amigas da Fazenda Santa Justina apoiado pelo edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça. O edital se constitui em uma oportunidade para que organizações negras fortaleçam estratégias de ativismo, resistência e resiliência diante das injustiças raciais recorrentes.

À primeira vista, pode parecer bastante curioso o porquê de um projeto selecionado escolher caminhar pelo mundo do audiovisual para preservar a memória local de sua comunidade e de seus antepassados, mas a Associação que está localizada na cidade de Mangaratiba – RJ, mais especificamente na Região da Costa Verde, tem na sua história as marcas do tráfico negreiro, como nos informou a historiadora Miriam Bondim, ao relatar que Mangaratiba foi um dos maiores portos de desembarque de negros escravizados no Brasil e que, mesmo depois da proibição do comércio de seres humanos, beneficiou-se da expansão cafeeira, pois continuava sendo um porto de escoamento para cidades que foram o berço da expansão do café no Brasil.

Nas conversas foi  possível perceber que as lembranças do período de escravização ainda são fortemente presentes naquela comunidade,  não só pela historiografia,  pelos vestígios, as ruínas, o alambique desativado, as argolas onde as pessoas  eram amarradas e torturadas mas, principalmente, as narrativas que ilustram  as relações sociais estabelecidas à época. Netos de pessoas escravizadas, que moram no quilombo, narram as histórias de dor contadas por seus avós; falam sobre comportamentos adotados pelos donos da fazenda de café há poucos anos atrás, algo que, em muito se assemelha ao comportamento dos senhores de engenho, os escravocratas.

A fazenda onde está localizado o quilombo foi certificada pela Fundação Palmares como comunidade remanescente de quilombo em 2016, mas a luta é de muito antes. Antes da certificação a fazenda foi vendida, ilegalmente, para uma empresa que ameaçava áreas de preservação, logo o quilombo passou a ser alvo de especulação. O território era cobiçado para a construção de condomínios de luxo, a partir daí começaram com perseguição de líderes políticos da comunidade, ameaças de morte, além de investidas de desocupação, ou seja, a intenção era de expulsá-los de suas casas.

Silvio dos Santos, atual Presidente da Associação,  conta sobre o processo de resistência: “Uma antiga empresa rural era a dona do território e depois vendeu para a atual empresa, nesse período começou uma ameaça de expulsão; uma expulsão provocada pela ausência de recursos, pois não permitem instalar energia elétrica, há dificuldade de locomoção, não podemos ir e vir, a porteira fica trancada e algumas outras questões que passaram a ocorrer depois da ocupação do MST, logo na entrada da fazenda. Depois desse fato, a empresa conseguiu uma reintegração de posse e depois da ocupação começaram a colocar seguranças, dificultando a entrada até hoje”.

Silvio dos Santos – Atual Presidente da Associação dos Moradores Amigos e Amigas da Fazenda Santa Justina

Frente a esse contexto e reconhecendo a importância de seguirem vivendo onde existem as marcas, dores e memórias dos seus antepassados que foram sequestrados, desenraizados de sua cultura e da sua família e,  diante dessas constantes situações de violência e exploração, os moradores resolveram se unir e criar a associação para lutar  por seus direitos. Aliados ao desejo de contribuir e amparar a luta por liberdade e pelo direito à terra, captaram recursos para ações de fortalecimento institucional e para a produção de um documentário. O objetivo é dar visibilidade e contribuir para reflexão sobre a história de luta e resistência da comunidade.

O lançamento do documentário,  no dia 13 de agosto de 2022, consagrou uma das metas da organização e contou com a presença de membros da equipe do Fundo Baobá. De acordo com Silvio: “O documentário vai dar visibilidade e mostrar a importância do que estamos lutando, que é pela preservação da história, da qualidade de vida dos remanescentes e da preservação do meio ambiente. Houve uma grande mobilização em torno do documentário por parte de todos. A entrevista de um complementando e incentivando a do outro, um contando com o outro, narrando a própria história. Isso tudo criou uma expectativa que está se realizando com o lançamento do documentário, perante tudo isso, queria agradecer pela parceria e por essa oportunidade de crescimento”.

Ao contar sua história, a comunidade viveu o despertar de um sentimento de pertencimento e valorização de sua cultura. Para além da mudança que ocorreu com a produção do documentário, Silvio conta também que:

“A comunidade saiu do caminhar só com a diretoria e hoje a totalidade das famílias participam das questões da Associação. Nós já começamos a implementar algumas festas de calendário, como o Festival da Banana. As oficinas dentro do quilombo a partir do projeto do Baobá, que condicionou essa estrutura, foi um período de formação muito importante pra gente”.

A realização dessas festas que o Silvio mencionou é importante, pois gera renda para as famílias já que atrai as pessoas de Mangaratiba a irem para o quilombo e lá eles comercializam comida típicas, seus próprios artesanatos, além de apresentarem um pouco da cultura com a apresentação de dança. 

Outras mudanças aconteceram a partir das oficinas realizadas com as organizações apoiadas pelo edital: a participação em outros editais, tendo sido contemplado em dois da Secretaria Estadual de Cultura e um do Instituto Cultural Vale. Também foi citada a integração dos moradores na Diretoria do Sindicato dos Agricultores de Mangaratiba, e a conquista da Declaração de Aptidão ao PRONAF, dando reconhecimento aos agricultores familiares e possibilitando o acesso a políticas públicas e também a formação de um Sindicato de Trabalhadores Rurais. 

As mudanças individuais e comunitárias relatadas por Silvio são  exemplos daquilo que se espera alcançar com apoio do Fundo Baobá.  Os investimentos financeiros e técnicos são realizados visando ampliar as capacidades das organizações para colocar em prática sua missão, para alcançar com mais autonomia, os seus objetivos. É apoiando as potencialidades da população negra e quilombola que o caminho para a equidade racial é desenhado. “Para nós foi uma honra participar desse momento, não só por acreditar no projeto mas, principalmente por ver a emoção de todos os presentes,  com a materialização do documentário, e ainda  saber sobre as mudanças substanciais ocorridas no processo de desenvolvimento do produto”, afirma Edmara Pereira, que compõem a equipe de programas e projetos do Fundo Baobá.

O edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça é uma iniciativa do Fundo Baobá para Equidade Racial e conta com apoio da Google.org. 

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