Sueli Carneiro: “A missão institucional do Fundo Baobá é o fortalecimento do sujeito político movimento negro e as suas organizações”

Presidenta do Conselho Deliberativo fala sobre política, desafios do Baobá para o presente e perspectivas para o futuro

          Por Wagner Prado

Aparecida Sueli Carneiro, 72 anos, nasceu em 24 de junho de 1950. O Brasil estava em festa. A Seleção Brasileira estreava na primeira Copa do Mundo realizada no país vencendo o México por 4 a 0. Vencer seria o verbo que iria marcar a trajetória dessa brasileira festeira, nascida na Lapa e criada na Vila Bonilha, região de Pirituba, bairros da cidade de São Paulo. Sueli se impôs frente às adversidades da vida, fez do estudo a sua mola propulsora até se formar filósofa pela Universidade de São Paulo (USP), doutora em Educação, tornar-se escritora, ativista do movimento negro e uma das vozes mais fortes do movimento pelos direitos das mulheres, em especial, das mulheres negras. Sueli, que deve ter um máximo de 1,65m de altura,  transforma-se em gigante quando começa a falar. Suas ideias são nítidas, contundentes e ela não se detém sobre como e de que forma deve falar. Doa a quem doer. 

Sueli Carneiro, presidenta do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá

Sueli Carneiro, como ela própria diz, aprendeu a “pensar preto” lendo e ouvindo o ator, poeta, escritor e dramaturgo Abdias Nascimento (1914/2011), um dos grandes intelectuais negros brasileiros, assim como aprendeu a pensar como uma mulher negra lendo e ouvindo a antropóloga, política e professora Lelia Gonzalez (1935/1994).    

Dona de prêmios muito prestigiados, como o Bertha Lutz, em 2003 (oferecido a mulheres que tenham dado grande contribuição na defesa dos direitos da mulher);  Prêmio Direitos Humanos da República Francesa, em 1998 (pela contribuição à defesa dos direitos humanos), Prêmio Vladimir Herzog, em 2020 (pela defesa da democracia, cidadania e direitos humanos), Sueli Carneiro tornou-se neste ano de 2022 a primeira mulher negra a receber o título de Doutora Honoris Causa pela Universidade de Brasília (UnB). 

Sueli é fundadora e diretora do Geledés – Instituto da Mulher Negra e está à frente do Conselho Deliberativo do Fundo Baobá para Equidade Racial. No dia 14 de outubro, ela parou suas atividades no Geledés para receber a equipe executiva do Fundo Baobá. Nesse dia, Sueli Carneiro concedeu a entrevista que segue abaixo. 

Sueli Carneiro e equipe executiva do Fundo Baobá. Giovanni Harvey, diretor Executivo (à esq.); Amalia Fischer, vice-presidente do Conselho (no centro, de verde) e Fernanda Lopes, diretora de Programa (última á dir.)

Dia 30 de outubro o Brasil elege seu presidente para os próximos 4 anos. Como o Fundo Baobá vai atuar frente às diretrizes políticas que serão implementadas? 

Não acho que era um cenário em que tivéssemos duas opções ou duas perspectivas. Não existia isso. Só existia uma.  Só existe alguma perspectiva para a nossa agenda com a eleição do Lula. Porque o Bolsonaro, nos quatro anos do governo dele, manifestou com muita clareza, com muita transparência, que ele não tem  nenhum compromisso conosco, muito pelo contrário. Ele tem compromisso com o nosso abandono social, com a nossa extinção, com o nosso genocídio. Então, a pergunta para mim não se coloca. Só existe uma perspectiva: a eleição do Lula. Fora dela, nossa comunidade estará em muita dificuldade, como a própria democracia no Brasil estará em um  risco absoluto de retrocesso.  Então, só existe esse caminho. A situação do risco democrático é tão dramática, que eu espero que  o Lula restabeleça aquela velha democracia, que é insuficiente, é de baixa intensidade, mas que nos assegura poder voltar a colocar pautas em disputa na sociedade.  É a primeira responsabilidade. 

Eu acho preocupante a situação em que o país se encontra. Estamos sob  a égide de uma perspectiva fascista. O fascismo é uma doutrina que a gente conhece, e nela não tem lugar para nós (pretos). O fascismo é formado pela concepção do supremacismo branco, que está em ascensão no mundo inteiro. Então, não há projeto para nós que não seja um projeto perigoso, perverso e ameaçador. Com o Lula, o que nós esperamos, primeiro, é que o estado democrático de direito seja restabelecido. Esse é o primeiro requisito para que a gente volte a disputar,  a propor, a formular proposições, sobretudo de políticas públicas que venham a incidir sobre a desigualdade racial, no campo da saúde, da educação, no campo das representações políticas. Ou seja, em todas as dimensões da vida social o recorte racial precisa ser observado para que a gente possa corrigir. 

O que importa é que precisamos da ambiência democrática indispensável para poder pautar nossos temas. E o Baobá também depende disso. Caso não se efetive essa perspectiva, nós teremos trevas para enfrentar. E o Baobá terá que se preparar para dar suporte à resistência negra,  para fazer a travessia nesse momento que poderá ser de trevas e que  não desejamos. Mas se ele ocorrer, é este papel que terá que ser feito: apoiar nossa gente nas estratégias de resistência e sobrevivência ao abandono social. 

Que análise pode ser feita dos últimos quatro anos sob o olhar da governança de um fundo que trabalha pela Equidade Racial no Brasil? 

Tenho orgulho de ter estado no Baobá num momento de grande complexidade. Num momento de agravamento da questão racial no Brasil. Momento que também foi fortemente atravessado por um elemento impensado que foi a pandemia. Isso teve um grande impacto sobre o próprio Baobá. Isso é um sintoma do que poderia vir a ser o agravamento da questão política no nosso campo. O Baobá rapidamente se reciclou durante a pandemia. Rapidamente se localizou naquilo que deveria fazer. Naquilo em que deveria atuar. E foi um momento curioso, paradoxal, porque o problema era de extrema gravidade, mas também foi a oportunidade que o Baobá teve de se enraizar mais na população negra, de se fazer presente na população negra que está em territórios mais vulneráveis. Foi paradoxal neste sentido, porque a pandemia nos empurrou para ir ao encontro dos grotões em que a nossa gente  estava padecendo mais e fazer lá o que era necessário fazer: levar algum alívio, algum amparo.  

Pela rapidez com que o Baobá agiu, pelos editais que foram criados para atender  a emergência sanitária e alimentar, a questão da sofrência que nossas famílias estavam, ter conseguido alcançar e levar algum alívio  foi uma coisa que a gente não esperava que fosse acontecer da maneira que aconteceu e que tivéssemos uma resposta com prontidão para fazer frente àquela situação.  E foi algo que a sociedade civil brasileira grandemente abraçou e se fez presente nessa situação. O Baobá foi um ator importante nesse processo. De lá para cá acho que ficou o saldo de referência de uma instituição negra, voltada para a equidade racial, mas que está atenta para as urgências da sua população e é capaz de responder de acordo.  

Eu me sinto orgulhosa de fazer parte do Baobá, num momento tão delicado que a gente teve que atravessar. E estamos alcançando índices interessantes no campo da filantropia, porque 85% das comunidades que a gente atinge (organizações, coletivos ou grupos) nunca foram financiados antes. Então, nós estamos chegando à nossa gente. Estamos chegando nos invisíveis. Essa é a parte mais importante da nossa missão.  

O Fundo Baobá não é um captador e repassador de recursos. Ele se fez para além disso. Criou uma forma de atuar dentro desse ambiente da filantropia pela justiça social. O Baobá virou referência? O Fundo é hoje inspiração para outros que estão vindo atuar nesse mercado? 

O Baobá é pioneiro no Brasil em ser um fundo voltado exclusivamente para esse tema. É um mandato único dentro do contexto mais amplo das organizações negras. E a minha visão é que a função prioritária de um fundo é captar e doar. O Baobá pode ser um ator político estratégico onde as organizações do movimento negro não têm poder de incidência. Mas a missão institucional é o fortalecimento do sujeito político movimento negro e as suas organizações, que são aquelas organizações que constroem a luta antirracista e a luta feminista no Brasil. Esse é o foco principal do Baobá: o fortalecimento da  luta contra o sexismo e o racismo na sua articulação de gênero e raça. Nessa missão, o Baobá não pode ser concorrente das organizações negras. Ele não substitui o protagonismo das organizações. Ele não deve fazer isso. Pelo contrário: ele é um agente de  fortalecimento dessas organizações. Mas há dimensões da questão racial em que pode não haver um ator político em condições de incidir nessa dimensão. Aí eu acho que o Baobá tem uma contribuição a dar. Sobretudo em questões mais estratégicas, que envolvem grandes decisões de Estado ou que envolvem estratégias de parcerias no âmbito internacional, mas nunca em concorrência com a sociedade civil negra. Jamais! Porque isso é enfraquecer o principal sujeito político que sustenta nossa luta.

A captação de recursos é o grande gargalo do Baobá. Você concorda com essa visão? 

O desafio da captação é real e não apenas para o Fundo Baobá. A sociedade civil tem esse desafio permanentemente. O que eu acho que para o Baobá pode ser um agravante é o tema. A tradição de doar para a causa racial é muito nova no Brasil.  Isso é um desafio adicional. Ter um Fundo voltado exclusivamente para essa dimensão é um projeto extremamente radical e desafiador. Ele é desafiador porque justamente desafia consensos. O consenso, por exemplo, da democracia racial. Um país que demorou o que nós demoramos para aceitar discutir o tema racial ter um Fundo voltado para esse fim é muito mais desafiador do que qualquer outra temática.  Um tema como o dos direitos humanos é um tema estigmatizado na sociedade brasileira, porque foi estigmatizado como defesa de bandidos. Da mesma maneira, com agravantes, um fundo como o Baobá, que está voltado para a equidade racial em um país que não aceita que há racismo historicamente, é um drama adicional. Depois, você tem a complicação de, mesmo quando o possível doador entende que o problema existe, se é um doador com muita visibilidade, com reconhecimento público, dificilmente ele quer associar a sua imagem a um tema desses. 

Eu sou diretora do Geledés e nós vivemos,  em muitas situações, ofertas de apoio que viriam de igrejas ou instituições renomadas, desde que a gente não falasse em racismo, a gente teria o financiamento. Se a gente falasse em criança, mas não falasse no racismo que atinge a criança negra, a gente teria o financiamento. Então, havia oferta de apoio mediante a renúncia. Mas nós temos que dizer para essa sociedade que o racismo é a mãe e o pai de todas as desigualdades. Que o racismo é o elemento estruturante de todas as desigualdades e violências.  E quando a gente pensa em mulheres negras, a gente diz: racismo e sexismo, quando se articulam recortados por raça, são o pai e a mãe de todas as violações de direitos humanos nesse país. Então, é difícil apoiar um Fundo com essas características, sabendo que ele é sustentáculo da luta que combate essas duas perversidades que existem na sociedade brasileira,  é ter que aceitar que existe um problema que é um problema sério, grave, que constrói uma apartação extraordinária nesse território, ao ponto de os índices de desenvolvimento entre brancos e negros terem diferenças abismais.

A diferença dos índices de desenvolvimento humano desses dois segmentos chega a ser grotesca. Porque a última imagem que um de nossos economistas criou é que existe um país aqui que tem o mesmo índice de desenvolvimento da Bélgica, povoado por gente branca, e um outro país, também aqui dentro, que está em uma posição, em termos de IDH (Índice de Desenvolvimento Humano), abaixo de muitos países africanos. E nós estamos falando de um país muito rico, que tem por marca a desigualdade, porque o drama aqui não é um país pobre. É um país com muita riqueza, mas com a concentração dessa riqueza nas mãos de um segmento racial. 

Saúde, Empreendedorismo, Recuperação Econômica, Auxílio a Populações em Situação de Vulnerabilidade, Justiça Criminal. Que outros terrenos  o Baobá ainda necessita semear? 

Acho que existe uma questão que é crítica, que ainda nós precisamos desenvolver uma estratégia de grande envergadura, que é em relação ao genocídio da juventude negra. Isso é um tema em que ainda precisamos de uma estratégia. Mas não acho que seja um tema que possa ser abraçado por uma única instituição. Não apenas nós (Fundo Baobá) desenvolvermos uma estratégia potente para lidar com essa questão. Temos que envolver muitos outros parceiros que estão conosco na luta antirracista, para enfrentarmos essa questão de frente, para assumir a responsabilidade com relação a essa problemática, que é de todas a mais perversa. Acho que esse é um tema que nos desafia e que permanece pendente, carecendo de uma incidência vigorosa por parte do Baobá e seus parceiros. 

O Baobá vai existir enquanto perdurar a questão do racismo em nosso país. A existência do Baobá vai até aí. Você acredita que isso, o racismo, poderá acabar em nosso país?  

Cada geração que se apresenta tem que cumprir o seu papel nesse combate. Essa gestão do  Baobá está comprometida com a responsabilidade de construir as condições necessárias para a permanência do Baobá o máximo possível no tempo para o cumprimento da sua missão. Enquanto existir racismo, o Baobá é necessário. Então, fortalecer o Baobá para cumprir essa missão é responsabilidade dessa gestão e das que virão. Estou muito animada com o que nós estamos sendo capazes de enriquecer o nosso endowment, o nosso fundo patrimonial, que eu espero permita atender as necessidades identificadas pela gestão atual e as vindouras. Estamos trabalhando arduamente nessa direção.  

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