Conheça a história do IMUNE, organização que se reinventa e faz ecoar a voz e as lutas das mulheres negras há duas décadas no Mato Grosso

Por Giovane Alcântara*

 

O Instituto de Mulheres Negras (IMUNE) do Mato Grosso completa neste ano 20 anos de trajetória na organização em torno das pautas das mulheres negras. O IMUNE, nome que faz referência à imunização, nasceu no início dos anos 2000 a partir da necessidade de ecoar e discutir as temáticas de raça e gênero que não encontravam espaço em outros movimentos sociais na época.

A organização foi uma das contempladas na primeira turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. O projeto “Voz IMUNE: 18 anos em movimento” teve como um dos principais objetivos registrar, divulgar e preservar a memória do primeiro grupo de mulheres negras do Mato Grosso, e culminou na produção de um livro que conta a história e as lutas do grupo.

A professora Antonieta Costa, conhecida como Nieta, é uma das fundadoras do IMUNE. Ela conta que as mulheres que fundaram o Instituto não visualizaram inicialmente onde iriam chegar. “A proposta realmente era fazer essa mudança, discutir mulheres negras na perspectiva de propor políticas públicas, ações afirmativas, de ter uma discussão no Mato Grosso, que até então não tinha nada direcionado para as mulheres negras. A gente já militava no movimento social, mas quando a gente ia discutir gênero e raça acabava a reunião”, diz.

Criado antes do IMUNE, o grupo de dança afro Filhas de Oxum também faz parte da história da organização. Cristina Benedita da Silva, professora da educação básica, relata que conheceu o IMUNE no grupo de dança. “Fiz parte do grupo Filhas de Oxum, com a professora Antonieta, a professora Lenis e o grupo tinha como objetivo maior a valorização de meninas em vulnerabilidade social. E nós trabalhávamos muitas coisas com elas” conta Cristina. Ela diz que pensando na valorização, saúde e educação, eram feitas visitas nas casas delas. “Tínhamos as parcerias das mães com a gente, que participavam no grupo, faziam parte das oficinas”, complementa.

Cristina afirma também que havia um acompanhamento também na escola destas meninas inicialmente atendidas pelo Instituto, visando a valorização da mulher negra enquanto sujeitas importantes para a sociedade. “Eu também não tinha muito essa consciência. E através do grupo aprendi muita coisa, consegui trabalhar, estudar, e fazer faculdade. Muitos não se reconhecem como negros e através do grupo de dança muitas meninas aprenderam. Algumas até estão sendo reprodutoras desse nosso trabalho”, comemora.

Nieta relembra que o cenário da época em que se deu o surgimento do grupo de dança era interessante, já que em Cuiabá havia muito preconceito com a religiosidade de matriz africana e o grupo levava o nome de um Orixá. “E a gente ousou, mesmo as meninas não sendo de Axé”. Conta ainda, que no livro, lançado como produto do projeto, há relatos das meninas que fizeram parte do grupo de dança e que elas se sentem parte dessa história. “O Filhas de Oxum chama atenção para a possibilidade de mudança das nossas crianças e adolescentes. Porque é importante você pegar aquela criança que está ali, fazer um trabalho, mostrar e valorizar o quanto ela é bonita, o quanto ela é inteligente. E hoje essas crianças, que a gente viu lá atrás, são advogadas, engenheiras, professoras. Isso para a gente não tem preço”, reforça Nieta.

Inicialmente o IMUNE tinha reuniões mensais que aconteciam alternadamente na casa das integrantes do grupo, já que elas não tinham uma sede. “A gente começou a fazer as reuniões de mulheres negras e essas reuniões eram encontros afetivos. A gente sempre se reunia para tomar um chá, fazer um almoço, um jantar e aproveitava esses momentos para discutir as questões que nos afetam”, conta Jackeline Silva. Ela é produtora cultural, trabalha com elaboração e gestão de projetos e faz parte do IMUNE desde a fundação.

Jackeline explica que esses encontros foram importantes para a consolidação do IMUNE. Ela lembra das feijoadas para arrecadar dinheiro e posteriormente o passo da institucionalização com a criação do CNPJ. “A gente entendeu que era importante dar um passo a mais de um coletivo para que ele se tornasse uma organização formal, e aí anos depois a gente se deparou com essas possibilidades de projetos. Para que a gente tivesse um fomento, para ter condições mínimas de trabalho, até para produzir materiais”, pontua.

Em duas décadas de existência, o Instituto tem na bagagem como primeira ação a produção do jornal Voz IMUNE, em 2003. “Nesse jornal nós buscamos o que as mulheres estavam fazendo, as mulheres que trabalhavam, o que estava acontecendo com elas naquele momento”, diz Nieta. Houve também a experiência com uma revista sobre saúde mental da mulher negra, que teve 200 exemplares. A revista foi fruto das rodas de conversa que tinham como tema saúde, educação, mercado de trabalho, emprego, renda e segurança pública. A revista foi sendo distribuída nos encontros nas comunidades. 

Nieta relata que depois de um tempo o IMUNE cresceu e foi sendo reconhecido. A comunidade vinha chamando as mulheres do Instituto, ao invés delas irem. “A comunidade começou a reconhecer a importância desse trabalho. As secretarias de educação, de saúde, o poder público começou a conhecer, e o IMUNE começou a se inserir também nos conselhos de promoção da igualdade racial e saúde da população negra”, diz. 

Com essa inserção, a organização também passou a articular em torno de outras frentes, como a de povos de matriz africana, através da parceria com a Rede Nacional de Religiões Afro-Brasileiras e Saúde (RENAFRO). E é aí que a história da professora Sônia Aparecida Silva se encontra com a do IMUNE. “Uma história de construção como mulher, como pessoa. Perceber-me como uma Sônia antes e outra Sônia depois. E eu gosto de dizer isso dentro do meu campo de visão, que é o Axé, que a gente encontrou dentro do IMUNE essa possibilidade de construir alguma coisa aqui em nosso estado”, relata Sônia.

Atualmente com 55 anos, Sônia diz que não tem vergonha de dizer que foi estando dentro do IMUNE que conseguiu ter essa visão de transformação. “Hoje eu vejo além muro, vejo a necessidade de conhecer o contexto histórico, de saber quem eu sou dentro de um Axé, e o que eu posso fazer como mulher, com as mulheres. A questão da consciência do que eu posso ajudar a transformar na minha comunidade, com as crianças”, afirma.

Sônia compartilha que gosta de estar na construção do IMUNE, nas rodas de conversa, que até seus filhos têm hoje uma outra consciência. Conta também sobre a importância de se sentir preparada para lidar com os desafios. “Saber me defender, saber me colocar dentro do meu âmbito de trabalho. Poder usar meu turbante, minhas contas. Hoje eu não choro mais. Eu sei me colocar nesse meio daí e fazer com que as pessoas me respeitem”, relata. 

Lidia Djú, de Guiné-Bissau, é professora da educação básica. Ela conta que conheceu o IMUNE através da professora Nieta. “Antes de conhecer o Instituto, eu já conhecia a Nieta. E surgiu a oportunidade de conhecer o Instituto e lá se vão mais de sete anos. E a gente está ali, batalhando, fazendo o que a gente pode para apoiar as mulheres que precisam de apoio, qualquer tipo de apoio”, conclui.

 

Voz IMUNE: 18 anos em movimento

Jackeline explica que o edital de apoio do fundo Baobá foi uma oportunidade sensacional para o IMUNE. “Quando o Fundo Baobá se propôs a realizar o fortalecimento de grupos coletivos e lideranças, foi incrível porque nós já tínhamos uma história, algumas décadas de trabalho. E aí conversei com a Nieta, eu falei ‘olha, eu acho que é uma oportunidade incrível e a gente tem grandes chances de passar’”, relata.

Ela afirma que o apoio e o projeto foram importantes porque possibilitaram que o IMUNE se voltasse para a formação interna, já que as ações são muito para fora. “A gente pôde dedicar para olhar para dentro da organização, se organizar, colocar em dia os nossos papéis, a documentação e principalmente, que é o mais importante, contar a nossa história”, reforça Jackeline.

Nieta define a experiência de ser apoiada pelo Fundo Baobá como emocionante e que o fomento mudou a história do IMUNE. Já Sônia observa que existe o IMUNE antes e o IMUNE depois do Baobá. “O que era o IMUNE antes, a gente se reunia e compartilhava nosso saber e experiências nas nossas casas, com nossas irmãs. Compartilhava o alimento. O IMUNE depois do projeto apoiado se tornou uma construção forte. A gente precisava disso. Eu vejo esse momento com o Baobá, com o livro, de consolidação… A gente cresceu” pontua Sônia. Ela comenta ainda que hoje Cuiabá sente a força da organização. “Somos poucas, mas somos mulheres prontas para a transformação, eu acho que isso é forte dentro de nós, então a gente precisava desse boom”, complementa.

Cristina diz que só tem a agradecer ao Baobá pelo apoio. “Por ter consolidado a luta de muitos anos e ter mostrado ao mundo isso que nós fizemos e continuamos fazendo, e só temos a melhorar cada vez mais.  A nossa história está presente na sociedade, no Brasil, para todos conhecerem”, reforça.

 

Pandemia de covid-19

A pandemia de covid-19, que impactou o mundo a partir de 2020, impôs desafios para as mulheres do Instituto de Mulheres Negras na adaptação à nova realidade. Nieta destaca entre os desafios lidar com o mundo virtual. “Essa questão do afeto que a Jacke colocou, a gente achava que só poderia ter se a gente estivesse junto, abraçado e conversando. A nossa reunião sempre foi uma reunião de confraternização. Então no momento que veio a pandemia a gente teve uma quebra. Porque a gente não podia mais abraçar e estar junto. E a maioria não conseguia mexer na ferramenta, que era um monstro, que era a internet”. 

Além disso, Nieta diz que nem todas as mulheres estavam com acesso a celular, computador e internet, e o recurso do projeto deu a possibilidade de superar algumas dessas dificuldades. “Nós vimos a possibilidade de superação, que foi os instrumentos que conseguimos comprar, como computador, mais celular e pagar internet para que todo mundo tivesse acesso”, reitera.

Silvina Jana Gomes, professora, vinda de Guiné-Bissau, atualmente é tesoureira do IMUNE e já está na organização há mais ou menos nove anos. Ela conta que a pandemia tem sido um momento desafiador, mas que com o apoio do Fundo Baobá conseguiram aprender. “Hoje a gente tem mais conhecimento e consegue entrar online. No começo a gente sentiu falta da reunião presencial, que todo mundo já estava acostumada, mas com o passar do tempo isso melhorou também”, argumenta.

Sônia destaca que em meio a dificuldade de lidar com as reuniões online, seu filho a auxiliava. Ela aponta outro desafio que foi lidar com as consequências da covid-19 nas comunidades e o adoecimento das pessoas. “O que eu acho mais importante de tudo isso é que a gente conseguiu superar e fechar esse ciclo. Foi muito desafio lidar com tudo isso e tentar fazer as nossas rodas, ajudar os nossos e as comunidades aqui no meio da pandemia, perdendo pessoas, gente sofrendo. Foi muito difícil, a gente ainda está com essa dor aqui dentro da gente”.

 

O futuro: não andamos sós

Passada a execução do projeto, Nieta chama atenção para o quesito organização que a participação no edital do fundo Baobá proporcionou ao IMUNE. Desde a prestação de contas que as mulheres não estavam acostumadas a fazer, até uma divisão de tarefas melhor definida. Segundo ela, esse processo formativo gerou novas oportunidades. “O Baobá abriu o nosso olho nas formações para o diálogo que a gente tem hoje com o poder público, com estado, com o município”, relata. O IMUNE conseguiu construir uma afroteca comunitária com um projeto apoiado pela Lei Aldir Blanc, além de estarem preparadas para poder enfrentar outros editais. “Hoje temos a primeira biblioteca afro pública do estado do Mato Grosso, que é a biblioteca do Centro Cultural Casa das Pretas, a sede do Instituto Mulheres Negras; temos um um espaço destinado a trabalhar a questão da identidade de cabelo, nós temos um salão lá dentro, que a Silvina e a Lidia coordenam”, comemora Nieta.

Jackeline acredita ser difícil pensar os próximos períodos com pandemia, porque as mulheres negras ainda são o elo frágil das desigualdades. “Em termos de sonhos, eu imagino o IMUNE uma grande potência. Não só no centro-oeste, mas até a nível de América do Sul. Quem sabe a gente consiga se articular também com as redes latino-americanas e caribenhas”. Outro ponto levantado pela produtora cultural é a continuidade da luta. “Acho que o nosso primeiro passo é firmar sede, formar novas lideranças que possam dar continuidade a luta. A juventude negra precisa se apropriar da luta e seguir em frente”, finaliza.

Nieta cita o trecho do poema presente no livro do IMUNE, de uma poetisa que é a primeira mulher negra a compor a Academia Mato Grossense de Letras. “A gente se assume, a gente se assina, mulheres meninas, somos IMUNE / trocando com negras / mostrando as negras/ chamando mais negras para novas certezas / são tantos saberes / são tantas belezas / que o nosso peito bate ao saber que percorremos / com 18 anos sendo estandarte da negra voz, da negra arte, da negra cor”. Ela diz que o IMUNE quer dar essa continuidade, manter a sede, ser o estandarte que sempre carregaram e fazer ecoar a voz e salvar mulheres negras da vulnerabilidade.

“Nós não temos dúvida de que sairão outras Sônias, Cristinas, Jackelines, Lídias, Silvinas, Carols, Maristelas, outras Agathas e todo mundo que está no IMUNE. Uma coisa a gente tem certeza: que a nossa voz não vai silenciar. Como a voz da Marielle não silenciou, quando pensaram que ela sumiu, ela ressurge em muitas Marielles”, reitera Nieta. 

A professora acredita que é preciso semear as lutas, bem viver, semear toda forma de respeito e compromisso com a pauta. “O IMUNE plantou muitas sementes nesses dezenove anos. E nós vamos continuar colocando as sementes e regando a semente”. 

Para concluir, Nieta faz um pedido: “Que o Deus da vida nos abençoe para que a gente possa fazer isso. Que todas as nossas ancestrais, que estão em cada uma de nós, nos dêem força para enfrentar essa adversidade que é ser uma mulher preta num país extremamente racista, machista e excludente. Mas a gente não anda só, né? Isso é o mais importante, nós não andamos sós”.

 

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

QUER IMPULSIONAR A CULTURA DE DOAÇÃO?

Doe para o Fundo Baobá para Equidade Racial
Junte-se a nós.
DOE AGORA