Culinária como meio de resistência na vida de mulheres negras

Baobá - Fundo para Equidade Racial

29 de julho de 2022

Donatárias do edital Negros, Negócios e Alimentação contam como a culinária tornou-se mecanismo de emancipação  para elas e suas famílias

Por Ingrid Ferreira 

Julho, para o movimento de mulheres negras,  é marcado por ser o mês das Pretas, mês daquelas que,  há séculos, se reinventam para se sustentarem e às suas famílias; daquelas que, mesmo com todas as dificuldades, movem montanhas e unem forças para transformar suas vidas e das pessoas à sua volta.

E a culinária é um meio de resistência adotado por muitas mulheres negras, como é possível observar no edital Negros, Negócios e Alimentação do Fundo Baobá para Equidade Racial. O grupo de donatários deste edital é composto, em grande parte, por mulheres que usaram da culinária para reconstruir suas vidas e transformar suas histórias, a de suas famílias e a de sua comunidade. 

Rozenir Maria da Silva Nascimento, uma das donatárias, proprietária do Tempero de Rosa conta um pouco da sua história: “Eu comecei meu negócio na frente da minha casa. Eu tive um casamento bem difícil, e um dia, já com duas filhas me vi sem nada pra comer em casa, uma vizinha tinha um pé de coco, e eu meio quilo de açúcar e apenas um pouco de farinha em casa, então pedi para retirar os cocos e fiz um mingau para as minhas filhas. Como eu nunca fui de me conformar com as coisas, me dei conta que havia uma escola na frente de casa, então o que restou do coco eu fiz uma cocada e fui pedir para a diretora da escola se poderia vender lá na hora do intervalo, ela autorizou e eu vendi toda cocada que eu fiz; perguntei a ela se poderia voltar a tarde, ela permitiu, então peguei o dinheiro da primeira venda e comprei mais açúcar para fazer mais para aquele dia e já para o dia seguinte. Consegui dinheiro suficiente para comprar pão, leite, ovos, trigo, margarina… No outro dia, além da cocada, levei bolo, e assim eu fiz até completar 18 anos e poder trabalhar de carteira assinada”.

Rozenir Maria da Silva Nascimento – Proprietária da empresa Tempero de Rosa – Recife

Dona Rosa, como é conhecida,  não conseguiu terminar o ensino médio, contudo, encontrou na cozinha uma forma de persistir, criar suas 4 filhas, forma-las, apoiar sua comunidade e construir uma rede de apoio para outras mulheres. Como ela mesma relatou: “Todos que trabalham comigo, são de Recife, dos bairros, da comunidade, o que me deixou mais orgulhosa”. E ela também conta que dos 22 funcionários, 20 são mulheres e que ela gostaria muito de construir uma rede de funcionárias, exclusivamente constituída por mulheres, pois segundo ela, as mulheres são as que mais enfrentam dificuldades na hora de conseguir um emprego, principalmente as mulheres pretas e pobres como ela.

Há histórias ancestrais na culinária e uma enorme relação de afeto também, tanto que Dona Rosa conta que chegou a fazer um curso de enfermagem, mas nunca atuou na área, porque a sua paixão era mesmo a culinária. Cheia de orgulho,  demonstra que faz e sabe fazer comida e que, por esse caminho, construiu a sua vida.

Além da Dona Rosa, as empreendedoras Rosana Rodrigues Ramos, proprietária da D’licias da Rosana, e Angélica Nobre de Lima Silva, da Angu das Artes também contaram um pouco sobre suas histórias.

Rosana conta que deu início ao seu negócio em 2017, quando saiu do trabalho após o nascimento de sua filha – onde mora não tinha creche e ela não tinha com quem deixar a criança.  E segue seu relato: “Como sempre gostei de cozinhar, e anos atrás tinha feito um curso de doces e salgados,  decidi colocar lanches para vender. No aniversário da minha filha de 1 ano, eu fiz tudo da festa, doces, salgados, bolos e tortas, tanto doce quanto salgada. E todas as pessoas que vieram para festa ficaram perguntando quem havia feito, porque estava tudo muito bom, quando falei que havia sido eu, todos ficaram falando que eu poderia fazer para vender. Logo começaram os pedidos e encomendas, e desde então não parei mais”.

Rosana Rodrigues Ramos – Proprietária da D’licias da Rosana – Recife

A empresária também fala que o que a move na cozinha é amor, e que na culinária é onde ela se conecta com sua ancestralidade, sendo  possível unir todas as nações. Rosana conta que sua comunidade é muito participativa na divulgação de seu negócio, e que ela teve a preocupação de contratar alguém da região para ajudá-la na comunicação e que faz o mesmo quando tem muitas encomendas.

Já Angélica proprietária da empresa Angu das Artes, tem o foco em uma culinária sustentável, com  aproveitamento de todas as partes do alimento e nos conta um pouco sobre como seu negócio começou: “Sou gestora ambiental e comecei na minha comunidade que fica na zona norte do Recife, no Alto Santa Isabel, a fazer conscientização ambiental, aulas de artesanato e com isso a levar lanche que sempre fiz em casa aproveitando toda parte do alimento. As pessoas ficaram encantadas e, em pouco tempo, estava passando o conhecimento para muitas mulheres da comunidade, através de oficinas. Isso aconteceu em 2018 onde no final do ano eu já era chamada pra dar oficina de forma itinerante”.

Angélica Nobre de Lima Silva – Proprietária da empresa Angu das Artes – Recife

Angélica relata que passou por um processo de separação e, com muitas dificuldades financeiras, começou a vender seus produtos em feirinhas, eventos e fazer coffee break. Mas logo veio a pandemia e o seu negócio passou a ser itinerante. Hoje, além de fazer comidas sustentáveis, servir em coffee break, feiras e eventos, está se preparando para desenvolver o turismo criativo e servir num espaço de sua casa, em sua  comunidade. Ademais o envolvimento com a comunidade, a empresa Angu das Arte tornou-se um negócio familiar e hoje os dois filhos de Angélica atuam com ela.

Angélica conta que: “Cozinhar sempre foi minha paixão, mas fazia por hobby, passou a ser necessidade e hoje faço como propósito de vida pois uso do que é desperdício de alimento para a maioria da população, como meio de sobrevivência e como ferramenta de combate à fome. Hoje sou realizada com o que faço e minha maior inspiração é minha mãe pois na minha infância ela tirava da alimentação de porcos que criava, o alimento pra eu e meu irmão não passar fome.”

Essas três mulheres possuem histórias diferentes, conectadas por um fator em comum que as auxiliou a reconstruir suas vidas, a culinária. Ao  dedicarem-se a esse conhecimento milenar seguem buscando superar as dificuldades e a motivar pessoas, em especial mulheres negras, a acreditarem que as mudanças são possíveis. 

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