“Não teremos justiça racial no Brasil”, afirma Lúcia Xavier, coordenadora geral da ONG Criola

Por Wagner Prado

Com 30 anos, Criola é uma organização da sociedade civil cujo foco de atuação está centrado nas mulheres negras e seus direitos. Difundir para a sociedade os conceitos de justiça, solidariedade e equidade está nas bases de sua formação. De acordo com o que preconiza Criola, investir na ação de transformação das e por mulheres negras, cis e trans  é fundamental para que a sociedade brasileira exista de uma forma melhor. 

A organização coordenada por Lúcia Xavier é uma das apoiadas pelo edital Vidas Negras, Dignidade e Justiça, do Fundo Baobá para Equidade Racial com apoio do Google.Org. O projeto leva o nome “Justiça Para Mulheres Negras: Enfrentando a Violência Racial e de Gênero e Ampliando Direitos” e objetiva fortalecer lideranças negras e suas organizações, para que desenvolvam ações políticas de enfrentamento da violência racial, da criminalização e das desigualdades raciais.  

Nesta entrevista,  Lúcia Xavier dá a sua visão sobre justiça racial no Brasil, o papel  das mulheres negras na construção da democracia, fala sobre homens pretos, aborto, eleições e outros temas importantes que, abordados por ela, ganham ainda mais peso.     

Lúcia Xavier – coordenada da organização Criola

Quais são os fatores que dificultam os caminhos da Justiça Racial no Brasil?  

Lúcia Xavier – Eu não acho que haja fatores que dificultam o caminho da Justiça Racial no Brasil. O que eu acho é que não teremos Justiça Racial no Brasil. Porque a estrutura brasileira é racista. O racismo alimenta todas as formas de poder, de acúmulo de riqueza,  de distribuição dessas riquezas,  de modo de viver,  da cultura.  Justiça Racial é o nosso objetivo,  é o nosso horizonte. Mas, de fato, esse caminho não existe. É aquilo que a gente tenta fazer todos os dias. Porque numa sociedade que se alimenta disso, toda e qualquer forma de resistência contra essa injustiça se volta contra nós. 

Em 2017, você declarou que a Democracia que almejava era a que colocasse a Mulher em primeiro plano. Por quê? 

Lúcia Xavier – Quando eu trouxe essa declaração,  que a democracia que almejávamos era aquela que colocasse as mulheres negras em primeiro plano, é porque somos nós mulheres negras o grupo mais afetado da sociedade brasileira, e esse impacto sobre nós acaba também causando Impacto nas próximas gerações.  Nós vivemos em uma sociedade onde o tipo de democracia tida como liberdade, como igualdade e fraternidade não nos afeta. Ao contrário! Nós somos a antítese. É como se a democracia que produz liberdade, fraternidade, desenvolvimento e liberdade não visse em nós os seres humanos que somos. Então, ao trazer a mulher negra em primeiro plano,  quer dizer melhorar a qualidade dessa democracia que tanto almejamos. 

As teorias e concepções racistas ainda norteiam a vida da população negra brasileira? 

Lúcia Xavier – Quando você traz a ideia das teorias e concepções racistas que ainda norteiam a vida da população negra brasileira,  isso é claro!  Víde o mapa da fome no Brasil. De certa maneira,  por mais que avancemos em termos do enfrentamento ao racismo e da sua erradicação,  ainda hoje vivemos em uma sociedade que tem em nós (população negra) o inimigo. Tem em nós (população negra) o desumano. Tem em nós aqueles e aquelas que não têm direito. Essas concepções racistas,  essas teorias, vão nortear nossas vidas, porque se desconhece a nossa humanidade ou não se reconhece a nossa semelhança. Então, todo o processo político que envolve a questão da população negra é tratado como se nós não existíssemos. 

Qual o papel dos homens pretos nas diferentes trajetórias de conquistas das mulheres pretas? No que eles podem contribuir? 

Lúcia Xavier – Eu acho que se eles contribuírem melhorando as condições de vida deles,  enfrentando o racismo,  já fazem muita coisa. O que eu tenho percebido e notado nessa discussão é que, de alguma forma, essa relação tem sido desigual como parte do processo do racismo. E  isso implica na reprodução dessas práticas racistas. O racismo como ideologia ele afeta todo mundo. Ele não vai afetar somente as mulheres negras e vai deixar incólume os homens negros. Ao contrário.  Só que, como vivemos em uma sociedade patriarcal, sendo até normativa,  muitos dos homens negros acabam também ajudando, ou reproduzindo, ou fortalecendo essa experiência de dominação e subordinação também com mulheres negras.  

Isso não quer dizer que é uma característica dos homens negros, mas é parte do processo político que eles vivem numa sociedade como a nossa. Eles não estão incólumes ao patriarcado, à misoginia, à  violência contra a mulher, só porque são negros. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.  Afinal,  essa mesma condição que os oprime não os  leva a evitar outras opressões.

Recentemente, em 24 de junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou a decisão de 1973 que garantia às mulheres norte-americanas o direito ao aborto. Esse vento conservador tem ou pode ter que tipo de influência no Brasil? 

Lúcia Xavier – Sobre o posicionamento da Suprema Corte dos Estados Unidos,  que acabou derrubando o direito ao aborto, esse evento é mais um dos eventos que impactam as decisões políticas no Brasil,  especialmente nesse momento de violência contra as mulheres, de perda de direitos e sobretudo uma vigília constante sobre os corpos das mulheres, sobre a autonomia sexual delas.  Possivelmente, essa decisão ainda reverbera mais também pelos outros países da América Latina e do Caribe, mas eu preciso informar que há algum tempo, desde o Pacto de São José,  que a questão do aborto nessa região tem sido tratada quase como um caso de polícia. 

O Brasil não vai começar agora. Ele está há anos perseguindo, prendendo,  julgando mulheres que praticam ou praticaram o aborto. Mesmo que a decisão dos Estados Unidos, que era considerado o mais avançado em termos dessa questão,  mesmo que essa decisão impacte ao Brasil  e toda América Latina, é preciso levar em consideração que esta é uma questão global. A questão do aborto passa a figurar nas agendas conservadoras como chave para o controle dos direitos das mulheres e para o controle,  sobretudo,  da sua autonomia sexual. De certa forma, essa é uma perda enorme para as mulheres negras americanas, que ao menos tinham condição de poder decidir pelo aborto,  em algumas regiões do país,  e ao mesmo tempo, terem mais fortalecidas as decisões que tomaram na vida. É muito humilhante para as mulheres, num retrocesso, terem que se subordinar a um Estado que não admite o direito ao aborto como uma possibilidade de liberdade e de condições das mulheres. 

A morte de jovens pretos brasileiros, segundo o movimento negro e o movimento  de mulheres negras, é um genocídio. Você concorda que esta é uma ação arquitetada pelo Estado? 

Lúcia Xavier – Sobre a morte de jovens pretos brasileiros, se elas são arquitetadas pelo Estado, claro que sim!  Mas o Estado não é um ser vivente, não é um ser em si. Ele é a sociedade espelhada em um espaço político de definições, articulações e acordos. E nesse caso o Estado brasileiro tem um peso muito grande de outros grupos da sociedade que pensam que negros são seus inimigos. Que negros são,  de certa forma, uma população que não devia existir. Então, esse genocídio, como controle da população negra,  é uma prática direcionada pelo Estado e também pela sociedade, mas com total aquiescência dos grupos sociais que estão no poder. Quando se usa essa expressão, do Estado,  nós não estamos querendo dizer que a estrutura do Estado é isso (genocida) só porque ela é Estado.  É a sociedade que configura um espaço de articulação e ação política que leva um dado grupo à morte. Essa arquitetura da morte tem a ver com uma movimentação dos grupos sociais. Como eles imaginam o poder,  como eles imaginam a sociedade e como eles querem que essa sociedade funcione.

Caso o Brasil siga no atual contexto político, que retrocessos teremos na Saúde, na Educação, na Empregabilidade e nos Direitos de uma forma geral? 

Lúcia Xavier – Em relação ao momento atual,  os retrocessos já ocorrem em todos os campos. Desde 2016, as políticas públicas têm menos recursos e de 2019 em diante elas começam a perder a capacidade de se desenvolver e alcançar os seus objetivos. Isso significa que, de forma geral, todos esses direitos conquistados desde 1988: direito à saúde,  à educação,  ao trabalho decente, com garantias,  direito de ir e vir,  direito à comunicação,  ao  ambiente saudável, todos estão em risco. E,  nesse contexto político atual, esse ritmo pode aumentar,  trazendo,  além da morte, outras sequelas, por exemplo, há um grupo que vem desde o início da pandemia sem acesso à educação de qualidade,  sobretudo,  crianças e adolescentes, estas pessoas vão perder tempo e também perder a possibilidade de ter um desenvolvimento adequado, com qualidade. No caso da  saúde, o que mais impacta é a própria  morte,  mas ter uma saúde precária, em termos de política,  é muito grave. Quanto à  empregabilidade,  de certa maneira essas pessoas  já viviam em uma situação de desemprego ou de empregos precários, trabalhos precários,  sem segurança e sem garantias,  há algum tempo. O  tempo atual só reforça, amplia, aumenta,  impede que esse grupo venha a reivindicar seus direitos,  porque uma coisa é o retrocesso no contexto do acesso a direitos e outra coisa é um retrocesso somado a restrições na sua própria participação,  a sua luta e resistência. 

A ONG Criola foi criada em 1992, portanto há 30 anos. De lá para cá, o Racismo e o Racismo Estrutural no Brasil tiveram retrocesso? 

Lúcia Xavier –  Criola  foi fundada em 1992 e de lá para cá temos atuado contra o racismo patriarcal cis heteronormativo e não vemos retrocesso nessa prática constante e  estruturada do Estado e da sociedade brasileira. Apesar das conquistas que tivemos ao longo desse tempo, a exemplo das cotas na universidade,  de uma política nacional de saúde da população negra, da ampliação dos direitos de trabalhadoras domésticas, da garantia da participação da população negra nos espaços de poder.   Apesar disso tudo, estamos vendo uma reestruturação das práticas racistas, do racismo que a gente chama de estrutural no Brasil,  como nunca visto… Essa discriminação constante,  violência,  morte,  encarceramento, isso  já diz o que significa retrocesso nesse camp. Mesmo que olhando o passado  a gente reconheça conquistas,  efeitos positivos sobre a comunidade, sobre  a população negra,  é também preciso lembrar que, de certa forma, esse grupo continua sobre ataque e esse ataque vai desde a perda dos direitos das Comunidades Quilombolas até a possibilidade de ganhar uma eleição e não levá-la. 

A questão ambiental no Brasil é muito discutida. As pessoas, principalmente as pretas, as populações quilombolas, estão colocadas no centro dessa discussão? 

Lúcia Xavier – Em relação à centralidade das Comunidades Quilombolas no tema ambiental, elas estão cada vez mais próximas desse debate,  tanto ambiental quanto climático, mas isso não quer dizer que elas sejam prioritárias nas ações positivas contra a destruição ambiental. Talvez estejam muito próximas ao que as medidas que alcançam outros grupos na sociedade em relação à degradação ambiental, ao  racismo ambiental. Mas elas são a principal vítima desse processo. Creio que hoje,  com a capacidade de se representar, de falar por si e de trazer as boas práticas para esse campo,  possivelmente as Comunidades Quilombolas tenham conseguido maior articulação para sua defesa, para a articulação em torno dos seus interesses e objetivos, sobretudo no campo da Justiça Ambiental, mas elas não são o centro da discussão.  Elas buscam cada vez mais estruturar esse debate e agir para que as suas questões sejam levadas em consideração,  em especial seu modo de pensar, de viver em termos dos desafios do ambiente e do clima. 

O Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária feminina do mundo, com cerca de 40 mil mulheres privadas de liberdade. A maioria dessas 40 mil é de mulheres negras. É possível dizer que isso é parte de uma manobra? Se sim, o que essa manobra objetiva?

Lúcia Xavier – As mulheres têm sido cada vez mais encarceradas. Esse encarceramento eu não posso dizer que é uma manobra objetiva  e  de quem é essa manobra. Mas o racismo ele age em contexto. Ele não separa homens e mulheres,  crianças e adultos. Ele age em contextos e para ampliar sua capacidade de controle sobre um grupo populacional, que a qualquer momento pode se transformar em um grupo atuante politicamente, resistente às práticas negativas de outros setores da sociedade;  a violência contra as mulheres alcança esse nível: o do encarceramento,  em qualquer etapa da vida,  e em qualquer condição: na juventude, na terceira idade,  como mães,  como familiares,  como passo do processo da violência e também como maneira de fazer o controle de dado grupo.  O encarceramento  feminino negro também nos faz pensar que, de certa forma, o racismo nunca deixou de lado, apesar de afetar muito as mulheres, nunca deixou de lado as mulheres como alvo,   quer seja na mortalidade materna, na violência policial, no encarceramento,  ou nos  processos de degradação pessoal: fome, trabalhos precários. Realmente as mulheres nunca deixaram de ser alvo. Mas quando é necessário,  elas passam a ser alvo em espaços que, certamente, predominam  os homens, como é o caso das prisões. 

“Quando  a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.” A frase da filósofa e ativista Angela Davis continua muito atual.  Tem sido fácil às mulheres negras se articularem para movimentar as estruturas? 

Lúcia Xavier – O movimento de mulheres negras tem oferecido alternativas para toda a sociedade, para aqueles que querem de fato constituir uma estrutura de sociedade mais justa,  mais igualitária,  fraterna e é nessa perspectiva que o movimento de mulheres negras produz saídas para essa questão. Essa movimentação feita pelas mulheres é uma movimentação que pensa não só na população negra em particular, mas na sociedade como um todo.  O fim do racismo melhora a vida de todo mundo. Se  eu trago as mulheres negras para o primeiro plano, elas que são as principais vítimas desse processo,  efetivamente o que melhora para mulheres negras melhora em 100% para qualquer outro grupo da sociedade. E nesse sentido a gente pensa que a nossa movimentação é constante,  de várias formas  e pretende, de certa maneira, estruturar um novo padrão de civilidade. 

Em 2018, ao ser homenageada pela Justiça Global, você pediu às pessoas brancas que abrissem mão dos privilégios gerados pelo racismo. A sociedade branca brasileira está ganhando consciência com relação a esses privilégios e abrindo mão dos mesmos ou ela segue insensível a isso? 

Lúcia Xavier – Quando eu ganhei esse prêmio da Justiça Global, um prêmio de direitos humanos,  de uma instituição que é tradicional nesse campo,  não tinha,  depois de tantas falas poderosas das mulheres acerca daquela premiação,  outra maneira de dizer o que representava aquele  prêmio. A ideia de que é preciso abrir mão dos privilégios, de que é preciso ser mais sensível a essa questão,  não quer dizer só atuar contra o racismo, mas mudar o padrão de civilidade, mudar os processos que reforçam ou que garantem esse tipo de circunstância. Isso é muito difícil ser feito. Por isso a gente precisa buscar e lembrar aos diferentes setores da sociedade que nós estamos atentas a essa questão. 

Lúcia, existe algo que você  gostaria de mencionar e que não tenha sido explorado aqui? Fique à vontade para comentar.

Lúcia Xavier – Eu diria que,  de modo geral,  seria bom pensar que o racismo atua em todos os campos,  constantemente,  se renovando. Ele  não é o mesmo que foi no passado e nem seguirá  da forma que está hoje. Para ele poder dominar,  constituir-se como forma de repressão e controle é preciso que ele também tenha uma uma capacidade de construir outras experiências e práticas na sociedade para poder se manter vigente. E nós,  é claro,  seguiremos atentas a essa perspectiva. 

Edital com apoio da Imaginable Futures e Fundação Lemann busca projetos para enfrentar o racismo na educação

Por Wagner Prado

Duas importantes organizações se juntam ao Fundo Baobá para Equidade Racial em uma iniciativa voltada à Educação. O edital Educação e Identidades Negras: Políticas de Equidade Racial, elaborado pelo Baobá, tem na Imaginable Futures e na Fundação Lemann suas apoiadoras. O foco do edital está em incentivar organizações, grupos e coletivos negros que atuam no combate ao racismo e na promoção da equidade racial no segmento Educação. É notório que o acesso à Educação e a permanência nas instituições de ensino é diferente para brancos e negros no país. O caminho para a solução dessa e outras fontes de exclusão está na adoção de ações afirmativas. Imaginable Futures e Fundação Lemann assumem tais ações como parte de suas politicas públicas e, juntas, estão aportando R$ 2,5 milhões que vão contribuir para que 10 organizações, grupos e coletivos negros ampliem e fortaleçam suas intervenções em espaços educacionais formais e não formais. Imaginable Futures, por intermédio de seu Venture Partner, Fabio Tran, e a Fundação Lemann, por meio de sua Gerente de Equidade Racial, Deloise Bacelar de Jesus, expõem aqui os motivos que as levam a apoiar o edital, a importância de se investir em Educação no Brasil e também como promovem o combate ao racismo dentro de suas próprias instituições e levam esse tema aos seus diferentes grupos  de interesse.  

O edital Educação e Identidades Negras: Políticas de Equidade Racial é uma forma de suprir a defasagem que existe no mecanismo de ensino oficial do Brasil?

Fabio Tran – Em todos os estados brasileiros, a diferença entre o percentual de estudantes negros e brancos com níveis adequados de aprendizagem é significativa e se mantém mesmo dentro do mesmo nível socioeconômico (dados do SAEB). Está evidente que a desigualdade racial tem afetado o direito à aprendizagem e, por diversos motivos, o estudante negro tem sido levado a aprender menos. O racismo, enraizado enquanto modelo mental na sociedade, impacta os estudantes negros e suas famílias e os submetem ao preconceito cotidianamente. Esses e outros fatores, que são reflexo do racismo estrutural, afetam diretamente a autoestima e o senso de pertencimento de estudantes negros, impactando na sua performance acadêmica.

Entendemos que se trata de um fenômeno complexo e, para entender e agir com maior profundidade sobre ele, em 2021 a Imaginable Futures realizou um processo de escuta e construção junto a mais de 50 educadores e ativistas negros. Ao final, chegamos em três principais áreas que podem ser alavancadas na busca por uma realidade livre do racismo estrutural, sendo uma delas a razão por que estamos fazendo este edital: garantir a implementação de políticas educacionais que valorizam as identidades e culturas negras, indígenas e quilombolas, aumentando a legitimidade destes grupos dentro do sistema educacional, bem como o seu desempenho e permanência escolar.

As duas outras áreas são: (i) elevar o nível de entendimento sobre questões étnico raciais a fim de alcançarmos uma negritude consciente e uma branquitude crítica, fazendo com que as políticas e as práticas não sejam desenhadas de maneira universalista e (ii) elevar as vozes negras, indígenas e quilombolas através de acesso e representação em posições de liderança, assegurando que essas lideranças possuam conhecimento aprofundado sobre equidade racial e recebam todo o suporte necessário para que consigam permanecer com saúde mental e física dentro desses ambientes. 

Deloise Jesus  A aprendizagem de alunos brancos e alunos pretos é desigual. A diferença é expressiva em todos os estados brasileiros, tanto para alunos de nível socioeconômico alto quanto baixo, revelando os reflexos do racismo estrutural também no processo de aprendizagem. Realizar ações como o edital Educação e Identidades Negras: Políticas de Equidade Racial é muito estratégico para promover equidade racial. Acreditamos que diferentes esforços são necessários para transformar essa realidade e diminuir as desigualdades, por isso o lançamento do edital é tão bem vindo. 

Que iniciativas educacionais podem contribuir para o combate ao racismo?  

Fabio Tran – Para além do trabalho relevante e direto de combate ao racismo realizado por diversas organizações como o Fundo Baobá, CEERT, Geledés, IBEAC, dentre tantas outras, é preciso considerar também a influência das políticas públicas governamentais na manutenção ou quebra de estruturas racistas. As políticas públicas educacionais hoje são predominantemente universalistas, desconsiderando o contexto extremamente desigual de que partem estudantes brancos e negros. Sendo assim, uma das formas de combater o racismo estrutural é assegurar, na tomada de decisão das políticas educacionais, o reconhecimento dessas diferenças e desigualdades e o entendimento que equidade não significa necessariamente igualdade. A Lei de Cotas e a Lei 10639 são excelentes exemplos de como romper essas estruturas. E esperamos que as iniciativas apoiadas por esse edital permitam identificar novas formas de combater o racismo e o racismo estrutural. 

Fabio Tran – Venture Partner da Imaginable Future

Deloise JesusCombater o mito da democracia racial passa por promover estratégias para que educadores e estudantes possam atuar de forma antirracista. Fortalecer o ecossistema de organizações que atuam no combate às desigualdades raciais é essencial para trilhar este caminho. 

Como sua organização, interna e externamente, vem abordando o racismo? Há ações direcionadas aos colaboradores e diferentes comunidades nas quais vocês atuam?

Fabio Tran – Como uma organização de investimento social privado, entendemos nossa responsabilidade, dado nossa posição de privilégio em um sistema fundamentado sobre a supremacia de pessoas brancas e sobre outras formas de injustiça. 

A equidade racial está no centro da estratégia programática da Imaginable Futures. Temos trabalhado para isso diretamente com organizações comunitárias, através das práticas de educação libertadora das organizações que apoiamos e por meio de recomendações de políticas de apoio para práticas de reparação antirracista, entre outras iniciativas. Além disso, entendemos que o combate ao racismo passa também por uma transformação interna e de como trabalhamos, por isso desde 2019 temos aumentado o letramento racial da equipe e a equidade racial na sua composição, incluindo nossos prestadores de serviço e consultores. A partir de um esforço de diversificar o nosso time, hoje somos uma organização internacional e a maioria dos nossos colaboradores não se identifica como branca. Por fim, como indivíduos, trabalhamos para mudar nossas próprias mentalidades, comportamentos e abordagens. E apesar de todos os nossos esforços, entendemos que, como organização, estamos apenas no começo da nossa jornada antirracista. Temos muito que avançar ainda.

Deloise Jesus –  A Fundação Lemann tem estabelecido metas para promover a equidade racial nas escolas, viabilizando ações que garantem uma trilha de formação para educadores e gestores escolares, realização de pesquisas de engajamento de lideranças educacionais no tema, produção de guias diagnósticos de equidade racial nas redes de ensino; entre outras ações que fomentam parcerias estratégicas pela promoção da equidade racial na educação brasileira.

Além disso, buscamos aumentar a diversidade dentro do nosso próprio time. Com iniciativas centradas na redução de vieses para atração, retenção, inclusão e desenvolvimento de talentos, aumentamos a presença de pessoas negras na composição da nossa equipe – hoje, já representam pouco mais de ⅓ da organização (35%). A Rede de Lideranças da Fundação Lemann também passou a contar com um processo seletivo estruturado e focado na ampliação da representatividade entre os membros e viabilizamos programas como o Alcance, que busca promover mais equidade racial e econômica no acesso a programas de mestrado profissional em algumas das melhores universidades do mundo. 

Deloise de Jesus – Gerente de Equidade Racial da Fundação Lemann

O edital vai alcançar organizações, grupos e coletivos negros. Que elementos estatístico-sociais levaram sua organização a direcionar esse investimento para a população negra?

Fabio Tran – O racismo estrutural permeia o sistema educacional brasileiro, levando a resultados de aprendizagem muito diferentes. Não surpreende que haja uma sub-representação significativa de grupos de pessoas negras e indígenas em posições de poder. Boa parte dos recursos do investimento social privado no Brasil é destinado à Educação, e boa parte dos estudantes que estão no sistema de ensino público são negros. Apesar disso, há pouco investimento no tema equidade racial na Educação e menos ainda  para organizações com lideranças negras. Achamos fundamental direcionar mais investimento social privado para essas organizações.

Deloise Jesus  Diversos indicadores sociais demonstram como o racismo prejudica a população negra. Na Educação, as desigualdades na aprendizagem são contundentes. Um estudo feito pelo Interdisciplinaridade e Evidências no Debate Educacional (Iede), analisando dados da avaliação nacional oficial (o Saeb) mostra que, em todos os estados brasileiros, o percentual de crianças pretas com aprendizado adequado é inferior ao de crianças brancas da mesma classe social. Também fica evidente que, quanto mais alto o nível socioeconômico, maior é a diferença entre os aprendizados entre alunos  pretos e não pretos.

Se o fator socioeconômico não explica sozinho tais diferenças, então é preciso reconhecer que também – e sobretudo – a Educação precisará olhar para o racismo que está presente nas práticas educacionais, assim como em tantas outras instâncias da sociedade. Na gestão pública, por exemplo, isso se reflete na representatividade em cargos de liderança. No poder executivo federal, apenas 15,2% dos cargos de segundo e terceiro escalões, nas pastas de Educação, Saúde e Economia, são ocupados por pessoas negras. No poder executivo como um todo, nos mesmos escalões, são 17,7%, de acordo com dados do IPEA (2020). 

Em termos de política pública, a implementação desse edital poderá gerar alguma base de trabalho que possa ser adotada oficialmente (pelo Governo) e melhorar a política educacional no país?

Fabio Tran – O tema do desenvolvimento das identidades e culturas negras e quilombolas é trabalhado por organizações negras há muito tempo no Brasil. Esse edital vem como um reconhecimento da luta histórica desses grupos pelos seus direitos. Temos a expectativa que, a partir desses projetos, possamos sistematizar melhor e dar mais luz ao trabalho dessas organizações para que elas possam seguir cada vez mais pautando a construção de políticas públicas de equidade, dentro e fora do ambiente de educação formal. 

Deloise Jesus –  Como país, é urgente chegarmos ao consenso mínimo de que políticas públicas precisam ser construídas a partir da premissa que seus impactos terão efeitos diferentes nas populações brancas e negras. A gestão pública – que elabora, implementa e monitora essas políticas – precisa refletir com mais justiça nossa demografia, ampliando a representatividade de pessoas negras em cargos de liderança. 

É possível projetar o que poderá ser alcançado por esse edital em termos sociais? 

Fabio Tran – O valor concedido para as organizações contempladas no edital não é só para as ações programáticas dessas organizações. Ele também é destinado ao fortalecimento institucional e desenvolvimento das lideranças das organizações selecionadas. Além do impacto direto das 10 organizações selecionadas na aprendizagem das comunidades em que elas trabalham, esperamos que essas organizações, juntas, influenciem o sistema na direção do que precisa ser feito – e trabalharemos junto ao Fundo Baobá para que essa conexão e esse trabalho em rede aconteça.

Quando vemos as estatísticas da desigualdade social e racial no Brasil podemos ficar desesperançosos com relação ao tema, mas a partir das organizações esperamos enxergar a força e a riqueza da diversidade que a população negra traz para o Brasil, sem ignorar e tentar remediar as consequências negativas do racismo e da opressão desses grupos no país.

Deloise Jesus – Estamos confiantes que a iniciativa é capaz de contribuir com o fortalecimento de  organizações para desenvolver novas tecnologias sociais e para ampliar o leque de estratégias disponíveis para a promoção da equidade racial.

Como sua organização define Equidade Racial? 

Fabio Tran – Justiça. Equidade. Diversidade. Inclusão. O que chamamos de princípios “JEDI” direcionam tudo o que fazemos. Orientam nossas crenças, embasam nossa estratégia e moldam nossa cultura, operações e ações. Equidade racial para nós significa promover justiça, imparcialidade e equidade nos processos, distribuição de recursos e resultados em instituições e sistemas de educação. 

Acreditamos que o acesso equitativo à aprendizagem é fundamental para sociedades saudáveis, justas e prósperas. Cada pessoa, independentemente de raça, formação, etnia, gênero, orientação sexual, religião, renda, saúde e habilidades, deve ter a oportunidade de aprender e tornar o futuro que imagina uma realidade. Sabemos que o racismo, o colonialismo e a cultura patriarcal incorporados nos sistemas educacionais ao redor do mundo fazem com que nem todos tenham a mesma oportunidade de prosperar. Entendemos que o nosso trabalho é sermos parceiros de organizações como o Baobá para eliminar essas barreiras sistêmicas e cocriar soluções para as crianças e jovens e suas respectivas famílias.

Deloise Jesus –  Na iniciativa privada e no terceiro setor, precisamos ser mais explícitos e propositivos no enfrentamento dessas desigualdades raciais profundas e sistêmicas. Muito conscientes do tamanho desse desafio, aqui na Fundação Lemann trouxemos o combate às desigualdades raciais para o centro de todas as nossas frentes de atuação. Assim, traçamos uma visão de futuro que conecta nossos objetivos nas frentes de educação e desenvolvimento de lideranças com conquistas de equidade racial. 

Promover esse edital é contribuir para a promoção da Equidade Racial?

Fabio Tran – Sim, serão selecionadas até 10 organizações, grupos ou coletivos cujas propostas contribuam para o desenvolvimento, aprimoramento e/ou a implementação de políticas educacionais de identificação e enfrentamento do racismo e para o fortalecimento das identidades e culturas negra, quilombola e indígena, com atenção especial para iniciativas focadas em políticas educacionais para crianças, adolescentes e jovens.

Deloise Jesus – O racismo é uma estrutura social complexa e difícil de combater, por isso diferentes estratégias articuladas entre si são necessárias. Acreditamos que o edital é parte importante desse processo. Temos certeza de que tudo isso é só um começo. E de que há muito o que refletir, aprender, planejar, executar e corrigir para que a pauta ganhe mais prioridade, profundidade e consistência dentro da gestão da nossa organização, e de tantas outras instituições e governos. Esperamos poder somar forças e aprender com quem já está há muito mais tempo à frente dessa agenda e incentivar muitos outros a entrar nela também. Nosso sonho de um Brasil que acredita nas pessoas e de pessoas que acreditam no Brasil certamente depende disso. 

Baobá na imprensa em Junho

Por Ingrid Ferreira

No mês de junho o Fundo Baobá para Equidade Racial foi citado em diferentes veículos da mídia, tais como o Valor, que contou com a entrevista do Diretor Executivo, Giovanni Harvey, na matéria “Fundo Baobá ganha reforço de US$ 5 milhões”, falou a respeito da doação realizada pela bilionária Mackenzie Scott. O texto também ganhou espaço na versão impressa do jornal e foi compartilhado pela Demarest Advogados.

O site Tozzi publicou o título “Captação e rentabilidade: desafios institucionais na gestão de fundos patrimoniais no Brasil” em que explica a funcionalidade e o que é um fundo patrimonial. O Diário do Litoral citou o Baobá no texto “Instituto Procomum e Coletivo Afrotu recebem Encontro Afrolab, em Santos”, destacando a parceria entre o Fundo e o Pretahub, realizador do Afrolab.

O GIFE mencionou o Baobá na matéria “Apenas 2,7% das Organizações da Sociedade Civil receberam recursos federais entre 2010 e 2018”, em que o Fundo é usado como exemplo, para falar da importância dos investimentos em instituições com histórico de atuação em ações de  promoção da igualdade e da equidade racial.

As redes sociais também foram palco para o Baobá, a Tribuna Afro Brasileira no Facebook postou “O Fundo Baobá está há 10 anos dedicado na promoção da equidade racial no Brasil e precisa da sua ajuda para seguir investindo em projetos”. 

APOIADAS DO FUNDO BAOBÁ:

O Coletiva Negras Que Movem do Portal Gelédes teve um grande fluxo de matérias no mês de junho, sendo elas: “2022, um ano de muitos questionamentos e dúvidas: Como será o amanhã nas escolas públicas?”; “Rede de mulheres negras discute justiça social em campanha intitulada “Meu Corpo É Templo”’; “A musculatura dos afetos. É preciso dançar o xirê da dignidade” e “A questão racial no Brasil hoje: O que eu aprendi com Sueli Carneiro?”.

A Tayna Maisa também publicou no instagram um post falando sobre o seu novo cardápio de comidas afro juninas, e mencionou o Baobá apontando o Fundo como um mecanismo muito importante para auxiliar pessoas pretas a enxergarem suas pautas e encontrarem caminhos para tornarem-se pessoas prósperas.

O @canalmynews no instagram entrevistou a apoiada Clara Marinho (@claramp), que falou: “O Brasil pode ser um país rico, com distribuição de renda adequada, que valorize os talentos das pessoas negras”. E a Julia Moa (@juliamoa___), mencionou o Baobá ao falar: “Tive o privilégio de integrar o corpo de jornalistas que produziu as reportagens sobre os frutos do primeiro ‘Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Negras: Marielle Franco’, iniciativa do @fundobaoba”.

Culinária como meio de resistência na vida de mulheres negras

Donatárias do edital Negros, Negócios e Alimentação contam como a culinária tornou-se mecanismo de emancipação  para elas e suas famílias

Por Ingrid Ferreira 

Julho, para o movimento de mulheres negras,  é marcado por ser o mês das Pretas, mês daquelas que,  há séculos, se reinventam para se sustentarem e às suas famílias; daquelas que, mesmo com todas as dificuldades, movem montanhas e unem forças para transformar suas vidas e das pessoas à sua volta.

E a culinária é um meio de resistência adotado por muitas mulheres negras, como é possível observar no edital Negros, Negócios e Alimentação do Fundo Baobá para Equidade Racial. O grupo de donatários deste edital é composto, em grande parte, por mulheres que usaram da culinária para reconstruir suas vidas e transformar suas histórias, a de suas famílias e a de sua comunidade. 

Rozenir Maria da Silva Nascimento, uma das donatárias, proprietária do Tempero de Rosa conta um pouco da sua história: “Eu comecei meu negócio na frente da minha casa. Eu tive um casamento bem difícil, e um dia, já com duas filhas me vi sem nada pra comer em casa, uma vizinha tinha um pé de coco, e eu meio quilo de açúcar e apenas um pouco de farinha em casa, então pedi para retirar os cocos e fiz um mingau para as minhas filhas. Como eu nunca fui de me conformar com as coisas, me dei conta que havia uma escola na frente de casa, então o que restou do coco eu fiz uma cocada e fui pedir para a diretora da escola se poderia vender lá na hora do intervalo, ela autorizou e eu vendi toda cocada que eu fiz; perguntei a ela se poderia voltar a tarde, ela permitiu, então peguei o dinheiro da primeira venda e comprei mais açúcar para fazer mais para aquele dia e já para o dia seguinte. Consegui dinheiro suficiente para comprar pão, leite, ovos, trigo, margarina… No outro dia, além da cocada, levei bolo, e assim eu fiz até completar 18 anos e poder trabalhar de carteira assinada”.

Rozenir Maria da Silva Nascimento – Proprietária da empresa Tempero de Rosa – Recife

Dona Rosa, como é conhecida,  não conseguiu terminar o ensino médio, contudo, encontrou na cozinha uma forma de persistir, criar suas 4 filhas, forma-las, apoiar sua comunidade e construir uma rede de apoio para outras mulheres. Como ela mesma relatou: “Todos que trabalham comigo, são de Recife, dos bairros, da comunidade, o que me deixou mais orgulhosa”. E ela também conta que dos 22 funcionários, 20 são mulheres e que ela gostaria muito de construir uma rede de funcionárias, exclusivamente constituída por mulheres, pois segundo ela, as mulheres são as que mais enfrentam dificuldades na hora de conseguir um emprego, principalmente as mulheres pretas e pobres como ela.

Há histórias ancestrais na culinária e uma enorme relação de afeto também, tanto que Dona Rosa conta que chegou a fazer um curso de enfermagem, mas nunca atuou na área, porque a sua paixão era mesmo a culinária. Cheia de orgulho,  demonstra que faz e sabe fazer comida e que, por esse caminho, construiu a sua vida.

Além da Dona Rosa, as empreendedoras Rosana Rodrigues Ramos, proprietária da D’licias da Rosana, e Angélica Nobre de Lima Silva, da Angu das Artes também contaram um pouco sobre suas histórias.

Rosana conta que deu início ao seu negócio em 2017, quando saiu do trabalho após o nascimento de sua filha – onde mora não tinha creche e ela não tinha com quem deixar a criança.  E segue seu relato: “Como sempre gostei de cozinhar, e anos atrás tinha feito um curso de doces e salgados,  decidi colocar lanches para vender. No aniversário da minha filha de 1 ano, eu fiz tudo da festa, doces, salgados, bolos e tortas, tanto doce quanto salgada. E todas as pessoas que vieram para festa ficaram perguntando quem havia feito, porque estava tudo muito bom, quando falei que havia sido eu, todos ficaram falando que eu poderia fazer para vender. Logo começaram os pedidos e encomendas, e desde então não parei mais”.

Rosana Rodrigues Ramos – Proprietária da D’licias da Rosana – Recife

A empresária também fala que o que a move na cozinha é amor, e que na culinária é onde ela se conecta com sua ancestralidade, sendo  possível unir todas as nações. Rosana conta que sua comunidade é muito participativa na divulgação de seu negócio, e que ela teve a preocupação de contratar alguém da região para ajudá-la na comunicação e que faz o mesmo quando tem muitas encomendas.

Já Angélica proprietária da empresa Angu das Artes, tem o foco em uma culinária sustentável, com  aproveitamento de todas as partes do alimento e nos conta um pouco sobre como seu negócio começou: “Sou gestora ambiental e comecei na minha comunidade que fica na zona norte do Recife, no Alto Santa Isabel, a fazer conscientização ambiental, aulas de artesanato e com isso a levar lanche que sempre fiz em casa aproveitando toda parte do alimento. As pessoas ficaram encantadas e, em pouco tempo, estava passando o conhecimento para muitas mulheres da comunidade, através de oficinas. Isso aconteceu em 2018 onde no final do ano eu já era chamada pra dar oficina de forma itinerante”.

Angélica Nobre de Lima Silva – Proprietária da empresa Angu das Artes – Recife

Angélica relata que passou por um processo de separação e, com muitas dificuldades financeiras, começou a vender seus produtos em feirinhas, eventos e fazer coffee break. Mas logo veio a pandemia e o seu negócio passou a ser itinerante. Hoje, além de fazer comidas sustentáveis, servir em coffee break, feiras e eventos, está se preparando para desenvolver o turismo criativo e servir num espaço de sua casa, em sua  comunidade. Ademais o envolvimento com a comunidade, a empresa Angu das Arte tornou-se um negócio familiar e hoje os dois filhos de Angélica atuam com ela.

Angélica conta que: “Cozinhar sempre foi minha paixão, mas fazia por hobby, passou a ser necessidade e hoje faço como propósito de vida pois uso do que é desperdício de alimento para a maioria da população, como meio de sobrevivência e como ferramenta de combate à fome. Hoje sou realizada com o que faço e minha maior inspiração é minha mãe pois na minha infância ela tirava da alimentação de porcos que criava, o alimento pra eu e meu irmão não passar fome.”

Essas três mulheres possuem histórias diferentes, conectadas por um fator em comum que as auxiliou a reconstruir suas vidas, a culinária. Ao  dedicarem-se a esse conhecimento milenar seguem buscando superar as dificuldades e a motivar pessoas, em especial mulheres negras, a acreditarem que as mudanças são possíveis. 

Textos selecionados no edital Chamada de Artigos são compilados em publicação bilíngue

Fundo Baobá publica livro com artigos de donatários(as) e conta com a participação de Mel Adún proprietária da editora Ogum’s Toque na sua edição

Por Ingrid Ferreira

Em 2020, o Fundo Baobá fez uma chamada para artigos para subsidiar  a sua atuação no contexto da pandemia da Covid-19, integrando o projeto “Consolidando Capacidades e Ampliando Fronteiras”, realizado em parceria com a Fundação Ford. Foram selecionados 19 artigos, que receberam um apoio de R$ 2,5 mil cada.

O Baobá se comprometeu com uma publicação eletrônica, bilíngue. Uma publicação amigável, embora seguindo regras editoriais rigorosas, cuidadosamente aplicadas.  A  editora escolhida para realizar esse trabalho foi a Ogum’s Toque,  que nasceu oficialmente em 2014, em Salvador, Bahia, mas cuja  movimentação na cena literária começou em 2011.

A proprietária Mel Adún conta como aconteceu o processo de criação da empresa.  “Em 2011,  levamos à Bahia mais de 60 escritoras e escritores negros de diversas partes do país, e fora, para falar da sua produção literária no evento Ogum’s Toques do/a Escritor/a (OTE), atividade cujo objetivo principal era formação de público leitor. Contamos com nomes importantes da literatura negra brasileira e internacional como Abelardo Rodrigues, Oswaldo de Camargo, Miriam Alves, Isabel Ferreira entre tantos outros. Contudo,  é a partir da participação fatídica do Brasil na Feira de Frankfurt em 2013 – quando a Feira homenageava a diversidade brasileira e o governo mandou 70 escritores para representar o país, sendo 1 negro, 1 indígena e 68 brancos – que resolvemos nos publicar. No mesmo ano escrevemos uma nota de repúdio que foi traduzida para o inglês e para o alemão e assinada por mais de cem escritoras negras e escritores negros e lançamos a Coletânea Poética Ogum’s Toques Negros,  com 22 poetas de diferentes gerações da Literatura Negra brasileira. Daí percebemos que não havia outro caminho e, em 2014/15, lançamos o livro Encantadas,  do poeta José Carlos Limeira (1951/2016).  De lá pra cá, publicamos mais de 20 livros e seguimos publicando, em ritmo de ijexá, textos que acreditamos que precisam ser publicados”.

Mel Adún – Proprietário da editora Ogum’s Toque

Mel conta que cresceu em uma casa onde seus pais valorizavam muito os livros.  Ao relembrar suas memórias de infância, ela conta que a sala tinha suas paredes recheadas de estantes de madeira que abrigavam os livros que, desde cedo, tornaram-se seus companheiros. Um  dos frequentadores de sua casa era José Carlos Limeira e que ele foi a pessoa que leu seus escritos e a aconselhou que ela os enviasse para participar dos Cadernos Negros.

Ao ser questionada sobre como o mercado nacional e internacional se comporta frente à literatura negra, Mel afirma que: “Se hoje o termo Literatura Negra é recebido com reservas pelo mercado editorial hegemônico, quando começamos a Ogum’s era pior ainda. Contudo, atualmente,  a escrita negra foi descoberta enquanto nicho, enquanto commodities, pelas editoras hegemônicas e vinculadas ao grande capital, o que dá a falsa impressão de que não existem mais problemas no campo editorial nesse sentido. Curiosamente, essas mesmas editoras que se mostram sensíveis à escrita negra hoje – mesmo que esse montante não alcance 10%  dos seus catálogos – não se manifestaram ou esboçaram qualquer reação perante aquela lista da Feira de Frankfurt. Ou seja, como afirma a escritora Zadie Smith, o capital é pragmático e quando necessário nos transforma em commodities preservando os mecanismos de controle. Enquanto houver racismo, enquanto pessoas negras forem desumanizadas, enquanto o racismo sistêmico fizer parte da sociedade brasileira ou de qualquer outra, estaremos sempre em desvantagem no campo editorial assim como em todos os outros campos. E enquanto essa for a nossa realidade, nosso trabalho e nossa arte é nicho para apreciação de terceiros, mas a riqueza gerada a partir do nosso labor nunca será igualmente compartilhada entre os iguais a nós. Não serão as nossas futuras gerações que estarão com o futuro garantido”.

A fala da Mel Adún reitera a complexidade do racismo estrutural e sobre como impacta as pessoas e a sociedade em diferentes aspectos. Fica nítido que trabalhar com uma editora dedicada à produção negra é resistir e lutar para que os saberes compartilhados estejam acima do capital e do ideário hegemônico  imposto por uma estrutura racista de sociedade.  E, neste sentido, Mel destaca que é a primeira vez que a editora publica um livro com conotações mais científicas e, com base nessa experiência afirma: “Nós temos publicações teóricas e críticas no campo literário e essa experiência com o “Consolidando Capacidades e Ampliando Fronteiras: Filantropia para Equidade Racial no Brasil” foi muito boa. Temos que enfrentar o genocídio da população negra e também o epistemicídio dos nossos saberes. Iniciativas como essas do Fundo Baobá são muito importantes”.