Por Wagner Prado
Com 30 anos, Criola é uma organização da sociedade civil cujo foco de atuação está centrado nas mulheres negras e seus direitos. Difundir para a sociedade os conceitos de justiça, solidariedade e equidade está nas bases de sua formação. De acordo com o que preconiza Criola, investir na ação de transformação das e por mulheres negras, cis e trans é fundamental para que a sociedade brasileira exista de uma forma melhor.
A organização coordenada por Lúcia Xavier é uma das apoiadas pelo edital Vidas Negras, Dignidade e Justiça, do Fundo Baobá para Equidade Racial com apoio do Google.Org. O projeto leva o nome “Justiça Para Mulheres Negras: Enfrentando a Violência Racial e de Gênero e Ampliando Direitos” e objetiva fortalecer lideranças negras e suas organizações, para que desenvolvam ações políticas de enfrentamento da violência racial, da criminalização e das desigualdades raciais.
Nesta entrevista, Lúcia Xavier dá a sua visão sobre justiça racial no Brasil, o papel das mulheres negras na construção da democracia, fala sobre homens pretos, aborto, eleições e outros temas importantes que, abordados por ela, ganham ainda mais peso.
Quais são os fatores que dificultam os caminhos da Justiça Racial no Brasil?
Lúcia Xavier – Eu não acho que haja fatores que dificultam o caminho da Justiça Racial no Brasil. O que eu acho é que não teremos Justiça Racial no Brasil. Porque a estrutura brasileira é racista. O racismo alimenta todas as formas de poder, de acúmulo de riqueza, de distribuição dessas riquezas, de modo de viver, da cultura. Justiça Racial é o nosso objetivo, é o nosso horizonte. Mas, de fato, esse caminho não existe. É aquilo que a gente tenta fazer todos os dias. Porque numa sociedade que se alimenta disso, toda e qualquer forma de resistência contra essa injustiça se volta contra nós.
Em 2017, você declarou que a Democracia que almejava era a que colocasse a Mulher em primeiro plano. Por quê?
Lúcia Xavier – Quando eu trouxe essa declaração, que a democracia que almejávamos era aquela que colocasse as mulheres negras em primeiro plano, é porque somos nós mulheres negras o grupo mais afetado da sociedade brasileira, e esse impacto sobre nós acaba também causando Impacto nas próximas gerações. Nós vivemos em uma sociedade onde o tipo de democracia tida como liberdade, como igualdade e fraternidade não nos afeta. Ao contrário! Nós somos a antítese. É como se a democracia que produz liberdade, fraternidade, desenvolvimento e liberdade não visse em nós os seres humanos que somos. Então, ao trazer a mulher negra em primeiro plano, quer dizer melhorar a qualidade dessa democracia que tanto almejamos.
As teorias e concepções racistas ainda norteiam a vida da população negra brasileira?
Lúcia Xavier – Quando você traz a ideia das teorias e concepções racistas que ainda norteiam a vida da população negra brasileira, isso é claro! Víde o mapa da fome no Brasil. De certa maneira, por mais que avancemos em termos do enfrentamento ao racismo e da sua erradicação, ainda hoje vivemos em uma sociedade que tem em nós (população negra) o inimigo. Tem em nós (população negra) o desumano. Tem em nós aqueles e aquelas que não têm direito. Essas concepções racistas, essas teorias, vão nortear nossas vidas, porque se desconhece a nossa humanidade ou não se reconhece a nossa semelhança. Então, todo o processo político que envolve a questão da população negra é tratado como se nós não existíssemos.
Qual o papel dos homens pretos nas diferentes trajetórias de conquistas das mulheres pretas? No que eles podem contribuir?
Lúcia Xavier – Eu acho que se eles contribuírem melhorando as condições de vida deles, enfrentando o racismo, já fazem muita coisa. O que eu tenho percebido e notado nessa discussão é que, de alguma forma, essa relação tem sido desigual como parte do processo do racismo. E isso implica na reprodução dessas práticas racistas. O racismo como ideologia ele afeta todo mundo. Ele não vai afetar somente as mulheres negras e vai deixar incólume os homens negros. Ao contrário. Só que, como vivemos em uma sociedade patriarcal, sendo até normativa, muitos dos homens negros acabam também ajudando, ou reproduzindo, ou fortalecendo essa experiência de dominação e subordinação também com mulheres negras.
Isso não quer dizer que é uma característica dos homens negros, mas é parte do processo político que eles vivem numa sociedade como a nossa. Eles não estão incólumes ao patriarcado, à misoginia, à violência contra a mulher, só porque são negros. Uma coisa não tem nada a ver com a outra. Afinal, essa mesma condição que os oprime não os leva a evitar outras opressões.
Recentemente, em 24 de junho, a Suprema Corte dos Estados Unidos derrubou a decisão de 1973 que garantia às mulheres norte-americanas o direito ao aborto. Esse vento conservador tem ou pode ter que tipo de influência no Brasil?
Lúcia Xavier – Sobre o posicionamento da Suprema Corte dos Estados Unidos, que acabou derrubando o direito ao aborto, esse evento é mais um dos eventos que impactam as decisões políticas no Brasil, especialmente nesse momento de violência contra as mulheres, de perda de direitos e sobretudo uma vigília constante sobre os corpos das mulheres, sobre a autonomia sexual delas. Possivelmente, essa decisão ainda reverbera mais também pelos outros países da América Latina e do Caribe, mas eu preciso informar que há algum tempo, desde o Pacto de São José, que a questão do aborto nessa região tem sido tratada quase como um caso de polícia.
O Brasil não vai começar agora. Ele está há anos perseguindo, prendendo, julgando mulheres que praticam ou praticaram o aborto. Mesmo que a decisão dos Estados Unidos, que era considerado o mais avançado em termos dessa questão, mesmo que essa decisão impacte ao Brasil e toda América Latina, é preciso levar em consideração que esta é uma questão global. A questão do aborto passa a figurar nas agendas conservadoras como chave para o controle dos direitos das mulheres e para o controle, sobretudo, da sua autonomia sexual. De certa forma, essa é uma perda enorme para as mulheres negras americanas, que ao menos tinham condição de poder decidir pelo aborto, em algumas regiões do país, e ao mesmo tempo, terem mais fortalecidas as decisões que tomaram na vida. É muito humilhante para as mulheres, num retrocesso, terem que se subordinar a um Estado que não admite o direito ao aborto como uma possibilidade de liberdade e de condições das mulheres.
A morte de jovens pretos brasileiros, segundo o movimento negro e o movimento de mulheres negras, é um genocídio. Você concorda que esta é uma ação arquitetada pelo Estado?
Lúcia Xavier – Sobre a morte de jovens pretos brasileiros, se elas são arquitetadas pelo Estado, claro que sim! Mas o Estado não é um ser vivente, não é um ser em si. Ele é a sociedade espelhada em um espaço político de definições, articulações e acordos. E nesse caso o Estado brasileiro tem um peso muito grande de outros grupos da sociedade que pensam que negros são seus inimigos. Que negros são, de certa forma, uma população que não devia existir. Então, esse genocídio, como controle da população negra, é uma prática direcionada pelo Estado e também pela sociedade, mas com total aquiescência dos grupos sociais que estão no poder. Quando se usa essa expressão, do Estado, nós não estamos querendo dizer que a estrutura do Estado é isso (genocida) só porque ela é Estado. É a sociedade que configura um espaço de articulação e ação política que leva um dado grupo à morte. Essa arquitetura da morte tem a ver com uma movimentação dos grupos sociais. Como eles imaginam o poder, como eles imaginam a sociedade e como eles querem que essa sociedade funcione.
Caso o Brasil siga no atual contexto político, que retrocessos teremos na Saúde, na Educação, na Empregabilidade e nos Direitos de uma forma geral?
Lúcia Xavier – Em relação ao momento atual, os retrocessos já ocorrem em todos os campos. Desde 2016, as políticas públicas têm menos recursos e de 2019 em diante elas começam a perder a capacidade de se desenvolver e alcançar os seus objetivos. Isso significa que, de forma geral, todos esses direitos conquistados desde 1988: direito à saúde, à educação, ao trabalho decente, com garantias, direito de ir e vir, direito à comunicação, ao ambiente saudável, todos estão em risco. E, nesse contexto político atual, esse ritmo pode aumentar, trazendo, além da morte, outras sequelas, por exemplo, há um grupo que vem desde o início da pandemia sem acesso à educação de qualidade, sobretudo, crianças e adolescentes, estas pessoas vão perder tempo e também perder a possibilidade de ter um desenvolvimento adequado, com qualidade. No caso da saúde, o que mais impacta é a própria morte, mas ter uma saúde precária, em termos de política, é muito grave. Quanto à empregabilidade, de certa maneira essas pessoas já viviam em uma situação de desemprego ou de empregos precários, trabalhos precários, sem segurança e sem garantias, há algum tempo. O tempo atual só reforça, amplia, aumenta, impede que esse grupo venha a reivindicar seus direitos, porque uma coisa é o retrocesso no contexto do acesso a direitos e outra coisa é um retrocesso somado a restrições na sua própria participação, a sua luta e resistência.
A ONG Criola foi criada em 1992, portanto há 30 anos. De lá para cá, o Racismo e o Racismo Estrutural no Brasil tiveram retrocesso?
Lúcia Xavier – Criola foi fundada em 1992 e de lá para cá temos atuado contra o racismo patriarcal cis heteronormativo e não vemos retrocesso nessa prática constante e estruturada do Estado e da sociedade brasileira. Apesar das conquistas que tivemos ao longo desse tempo, a exemplo das cotas na universidade, de uma política nacional de saúde da população negra, da ampliação dos direitos de trabalhadoras domésticas, da garantia da participação da população negra nos espaços de poder. Apesar disso tudo, estamos vendo uma reestruturação das práticas racistas, do racismo que a gente chama de estrutural no Brasil, como nunca visto… Essa discriminação constante, violência, morte, encarceramento, isso já diz o que significa retrocesso nesse camp. Mesmo que olhando o passado a gente reconheça conquistas, efeitos positivos sobre a comunidade, sobre a população negra, é também preciso lembrar que, de certa forma, esse grupo continua sobre ataque e esse ataque vai desde a perda dos direitos das Comunidades Quilombolas até a possibilidade de ganhar uma eleição e não levá-la.
A questão ambiental no Brasil é muito discutida. As pessoas, principalmente as pretas, as populações quilombolas, estão colocadas no centro dessa discussão?
Lúcia Xavier – Em relação à centralidade das Comunidades Quilombolas no tema ambiental, elas estão cada vez mais próximas desse debate, tanto ambiental quanto climático, mas isso não quer dizer que elas sejam prioritárias nas ações positivas contra a destruição ambiental. Talvez estejam muito próximas ao que as medidas que alcançam outros grupos na sociedade em relação à degradação ambiental, ao racismo ambiental. Mas elas são a principal vítima desse processo. Creio que hoje, com a capacidade de se representar, de falar por si e de trazer as boas práticas para esse campo, possivelmente as Comunidades Quilombolas tenham conseguido maior articulação para sua defesa, para a articulação em torno dos seus interesses e objetivos, sobretudo no campo da Justiça Ambiental, mas elas não são o centro da discussão. Elas buscam cada vez mais estruturar esse debate e agir para que as suas questões sejam levadas em consideração, em especial seu modo de pensar, de viver em termos dos desafios do ambiente e do clima.
O Brasil tem hoje a quarta maior população carcerária feminina do mundo, com cerca de 40 mil mulheres privadas de liberdade. A maioria dessas 40 mil é de mulheres negras. É possível dizer que isso é parte de uma manobra? Se sim, o que essa manobra objetiva?
Lúcia Xavier – As mulheres têm sido cada vez mais encarceradas. Esse encarceramento eu não posso dizer que é uma manobra objetiva e de quem é essa manobra. Mas o racismo ele age em contexto. Ele não separa homens e mulheres, crianças e adultos. Ele age em contextos e para ampliar sua capacidade de controle sobre um grupo populacional, que a qualquer momento pode se transformar em um grupo atuante politicamente, resistente às práticas negativas de outros setores da sociedade; a violência contra as mulheres alcança esse nível: o do encarceramento, em qualquer etapa da vida, e em qualquer condição: na juventude, na terceira idade, como mães, como familiares, como passo do processo da violência e também como maneira de fazer o controle de dado grupo. O encarceramento feminino negro também nos faz pensar que, de certa forma, o racismo nunca deixou de lado, apesar de afetar muito as mulheres, nunca deixou de lado as mulheres como alvo, quer seja na mortalidade materna, na violência policial, no encarceramento, ou nos processos de degradação pessoal: fome, trabalhos precários. Realmente as mulheres nunca deixaram de ser alvo. Mas quando é necessário, elas passam a ser alvo em espaços que, certamente, predominam os homens, como é o caso das prisões.
“Quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela.” A frase da filósofa e ativista Angela Davis continua muito atual. Tem sido fácil às mulheres negras se articularem para movimentar as estruturas?
Lúcia Xavier – O movimento de mulheres negras tem oferecido alternativas para toda a sociedade, para aqueles que querem de fato constituir uma estrutura de sociedade mais justa, mais igualitária, fraterna e é nessa perspectiva que o movimento de mulheres negras produz saídas para essa questão. Essa movimentação feita pelas mulheres é uma movimentação que pensa não só na população negra em particular, mas na sociedade como um todo. O fim do racismo melhora a vida de todo mundo. Se eu trago as mulheres negras para o primeiro plano, elas que são as principais vítimas desse processo, efetivamente o que melhora para mulheres negras melhora em 100% para qualquer outro grupo da sociedade. E nesse sentido a gente pensa que a nossa movimentação é constante, de várias formas e pretende, de certa maneira, estruturar um novo padrão de civilidade.
Em 2018, ao ser homenageada pela Justiça Global, você pediu às pessoas brancas que abrissem mão dos privilégios gerados pelo racismo. A sociedade branca brasileira está ganhando consciência com relação a esses privilégios e abrindo mão dos mesmos ou ela segue insensível a isso?
Lúcia Xavier – Quando eu ganhei esse prêmio da Justiça Global, um prêmio de direitos humanos, de uma instituição que é tradicional nesse campo, não tinha, depois de tantas falas poderosas das mulheres acerca daquela premiação, outra maneira de dizer o que representava aquele prêmio. A ideia de que é preciso abrir mão dos privilégios, de que é preciso ser mais sensível a essa questão, não quer dizer só atuar contra o racismo, mas mudar o padrão de civilidade, mudar os processos que reforçam ou que garantem esse tipo de circunstância. Isso é muito difícil ser feito. Por isso a gente precisa buscar e lembrar aos diferentes setores da sociedade que nós estamos atentas a essa questão.
Lúcia, existe algo que você gostaria de mencionar e que não tenha sido explorado aqui? Fique à vontade para comentar.
Lúcia Xavier – Eu diria que, de modo geral, seria bom pensar que o racismo atua em todos os campos, constantemente, se renovando. Ele não é o mesmo que foi no passado e nem seguirá da forma que está hoje. Para ele poder dominar, constituir-se como forma de repressão e controle é preciso que ele também tenha uma uma capacidade de construir outras experiências e práticas na sociedade para poder se manter vigente. E nós, é claro, seguiremos atentas a essa perspectiva.