Joice Silva dos Santos, liderança apoiada pelo Programa Marielle Franco, fala sobre sua trajetória e seus processos durante a pandemia
Por Giovane Alcântara*
Nascida em Jacobina (BA), Joice dos Santos reside há oito anos no estado do Piauí. Migrou para o estado com o objetivo de cursar Psicologia e hoje é mestranda do Programa de Pós-graduação em Psicologia da Universidade Federal do Piauí (UFPI). Conversamos com Joice Silva sobre seu caminho dentro do ativismo; pandemia e os impactos para a saúde mental da população negra. Joice é uma das liderança apoiadas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.
Na vida de Joice dos Santos, a pauta da psicologia chega muito tempo depois do ativismo. “Enquanto pessoa negra, enquanto mulher negra, não-heterossexual, a pauta do ativismo é uma pauta que se encontra aliada à pauta da sobrevivência”, comenta. “Eu escolhi fazer psicologia porque eu entendia, e entendo, que o racismo produz um modo de adoecimento muito característico em pessoas negras. Meu interesse era entender como isso acontece, para desenvolver técnicas de cuidado para pessoas negras em meio a um mundo racista que os adoece frequentemente.” completa.
Além de ser psicóloga, Joice também é especialista em cabelos naturais e atua como cabeleireira afro. Ela nos contou como o processo pandêmico a atingiu e como o Baobá contribuiu positivamente para passar por esse processo.
- Como o processo pandêmico te atingiu enquanto mulher negra e liderança? E como o Fundo Baobá contribuiu para o seu processo?
A pandemia me atingiu em termos financeiros, que é o impacto de modo inicial que qualquer pessoa sente, se não tiver renda. Então, por exemplo no meu mestrado, devido aos cortes do desgoverno, não tem bolsa para nenhum estudante de nenhuma categoria. Se naquele momento eu não tivesse o apoio do Baobá, o mínimo teria faltado porque eu não poderia trabalhar, o salão estaria fechado devido a pandemia. Foi muito importante ser uma das escolhidas para ser financiada porque garantiu que, minimamente, eu tivesse onde morar, o que comer, pra que eu me mantivesse no mestrado. Porque se eu tivesse que escolher entre sobreviver e mestrado, óbvio que eu iria escolher sobreviver. Fora isso, estrutura. Eu pude investir numa mesa de trabalho; numa cadeira confortável para produzir; investir em curso de inglês, que estava previsto no meu projeto; pude investir e adaptar coisas que parecem pequenas, mas que são importantes. E o mais importante: pude investir em acompanhamento psiquiátrico e psicológico.
- Quais os efeitos da pandemia para pessoas negras, e o que fazer para que a saúde mental desse grupo seja preservada?
A pandemia não é o problema que causa o racismo, a gente precisa entender que ela é um catalisador que age sobre um problema que já existia. E, como esse problema já existia de forma crônica e grave, ele só piora. Não é na pandemia que surge o racismo, nós sempre estivemos em pandemia. A população negra sempre esteve em toque de recolher, sempre esteve em pânico, sempre esteve sem saber se vai sair pro trabalho e vai voltar ou não. A primeira parte é entender isso, a gente não resolve a pandemia, a gente cria práticas de emergências.
Pensando nessa perspectiva não é nem solucionar, mas criar outra forma de existência. É a gente voltar pra questão que gera o cenário pandêmico atravessado completamente pelo racismo. Não somos nós, pessoas negras, que racializamos o mundo, são as pessoas brancas que racializam o mundo. As coisas sempre estiveram acontecendo, a diferença é que a pandemia catalisou e aumentou a divulgação.
- Existe algum caminho de fortalecimento para que esse momento seja menos denso e tenso para a população negra? E você pode se incluir nesse processo… O que você fez para que esse momento fosse um pouco menos tenso para você? Se é que ele foi um pouco menos tenso para você, pensando a pandemia como catalisador de emoções e de outras problemáticas sociais que atingem o mundo.
Alguns momentos e algumas coisas são impossíveis de torná-las menos horríveis. A gente vive num momento social de muita positividade tóxica, as invenções das fórmulas perfeitas para felicidade, para você passar no concurso, para ficar magra, para ter um desempenho sexual incrível. E isso, lógico, acontece também no campo da saúde mental. Algumas coisas são horríveis e a gente não pode fazer nada sobre isso. A gente faz o que então? Acolhe a demanda de sofrimento. A gente não consegue mais acolher as demandas de sofrimento, então quando alguém está sofrendo, nós nos resolvemos em soluções temporárias, que é pra tapar o sofrimento dela. Para ela parar de sofrer, porque não suportamos mais escutar aquele sofrimento. Nas últimas décadas temos perdido a habilidade de sustentar o sofrimento dos outros, ouvir… então a primeira pauta é que a gente consiga sustentar.
Resolveria grande parte do meu estresse em meio ao meu surto psicológico (psicólogos também surtam porque são pessoas) se eu soubesse que meu aluguel seria pago. Que o auxílio emergencial fosse calculado com base minimamente no que seria necessário para uma pessoa comer, morar, beber água e viver num cenário pandêmico. Saúde mental é uma questão política, assim só é possível garantir saúde mental para as pessoas se elas tiverem o mínimo. E o mínimo não foi dado, esse mínimo não está sendo dado.
- Na sua trajetória enquanto mulher negra e enquanto pessoa articulada politicamente, ativista da raça, do gênero e da sexualidade, quando você percebeu que era necessário você se cuidar? Se autopreservar?
Essa é a parte mais difícil, mulheres são criadas para ser cuidadoras, e mulheres negras são criadas para ser cuidadoras e servas dos outros. Nós somos fortes e aguentamos muitas coisas, dentro dessa lógica, nós acreditamos que precisamos aguentar. Então, praticamente no meu caso, e de outras mulheres negras, a gente não percebe e adoece. Estamos falando de um estado mental de sobrecarga. De que essas mulheres negras têm várias funções: são mães, são trabalhadoras, são esposas, são ativistas. E o ativismo demanda muito, porque a gente tá lutando por uma questão que nos afeta diretamente, e a outras pessoas como nós. Eu fiz um artigo na pós-graduação onde questiono a maneira como a militância se organiza né?! A gente tem que parar de ter uma militância messiânica. A gente precisa entender que a militância precisa ser uma coisa co-construída, com poder, destaque, democraticamente distribuído, ou sempre vão haver pessoas sobrecarregadas.
- Nesse processo, a articulação com outras pessoas, instituições, organizações é muito importante. Durante esse período de financiamento do Baobá você conseguiu se articular com outras mulheres que estavam participando do Programa Marielle Franco, ou fora do programa?
Sim, uma das minhas propostas era fazer um mapeamento das lideranças do meu território e transmitir para elas o conhecimento que eu estava adquirindo. A primeira fase era o mapeamento e depois o compartilhamento dos conhecimentos. A ideia era que fosse presencial, mas como a pandemia chegou, isso foi feito de maneira online. Foram várias lives, grupos, várias rodas de conversa online em que lideranças de diversas áreas eram convidadas a participar e contribuir. Eu sempre digo isso, o ativismo me manteve saudável, apesar da sobrecarga. Porque esses encontros serviam como momento catártico. É muito difícil você ficar em casa se organizando sozinha, quando você vai pros encontros, aquele encontro ressignifica sua caminhada. Ele faz com que você entenda que você não está caminhando sozinha para aquele lugar, que existe motivo real para você continuar caminhando, e que existe outras pessoas caminhando com você, mesmo que em outros lugares. Essa é a principal potência dos encontros.
- Você conseguiu cumprir todos os seus objetivos estabelecidos no projeto?
Acho que acabei alterando os objetivos. Um dos meus objetivos era um intercâmbio. Eu queria ir pra África do Sul, fazer uma capacitação de inglês lá, mas foi alterado devido a pandemia. Então foi adequado para o curso de inglês. Em relação ao que era meu principal foco, o mestrado, está em processo de conclusão. Vamos ver se eu consigo concluir porque meu quadro psicológico se agravou bastante e eu não conseguia produzir. Graças ao Baobá eu pude pagar psiquiatra e psicólogo pra me acompanhar nesse processo. Agora que eu tô colhendo os frutos de conseguir voltar a produzir, porque a escrita não é uma coisa automática, você se implica naquilo ali. Para “me ajudar” – porque já não bastava os problemas que eu tinha como ativista – minha dissertação pauta diretamente o racismo na pandemia, isso gerou um estado muito pesado, eu não conseguia abrir meu documento word porque eu não aguentava mais tanto sofrimento. Isso dificultou meu processo de produção, então, atualmente eu estou recorrendo a ter mais tempo para concluir esse mestrado, no caso, apresentar a última fase e defender, se tudo der certo nesse semestre.
- Qual a importância de iniciativas como esta do Programa de Aceleração?
Sobre a importância é muito louco, né?! Nas primeiras reuniões das mulheres escolhidas existia uma grande dificuldade, teve umas lives explicativas e eu entendi. Mas no começo era difícil entender o que o projeto era pra nós. Então, todas as mulheres apresentaram dificuldade para entender que esse dinheiro não era pra fazer uma feira, fazer mil cursos para outras pessoas. Esse dinheiro era pro auto investimento único e exclusivo em si mesma, enquanto liderança. Esse foi meu primeiro choque. Eu não consegui compreender. É difícil para uma mulher negra entender que esse dinheiro é todo pra ela, pro investimento na nossa capacitação, isso foi muito marcante.
O dinheiro que é investido nas lideranças, não impacta unicamente na vida dessas mulheres. Como elas são lideranças, esse dinheiro vai reverberar nas ações que elas vão produzir dali pra frente para com outras mulheres negras, pra crianças negras, pra sociedade de maneira geral. Então, o pacto para equidade racial que o Baobá se propõe e a gente compreende, é uma estratégia. Eu preciso de pessoas negras ocupando cargos de liderança, para que nesses cargos, elas consigam fazer mudanças necessárias para que o mundo exploda e a gente crie outro mundo. Para mudar o mundo, para que o mundo tenha equidade racial e que a gente consiga viver de forma justa, digna, enquanto pessoas negras. Essa é a importância do Programa Marielle Franco.
*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.