A ativista pernambucana Jéssica dos Santos aponta os desafios da construção de políticas públicas para as juventudes

Apoiada pelo Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, do Fundo Baobá, Jéssica Vanessa dos Santos desenvolve projetos de fomento à formação política de jovens

Por Jamile Novaes*

Jéssica Vanessa dos Santos é natural da cidade de Buíque, em Pernambuco. Aos 26 anos, atua em prol da construção de políticas para a juventude na região metropolitana de Recife. É ativista pelos direitos humanos e tem trajetória como mobilizadora e educadora popular. Durante quatro anos fez parte do Conselho Municipal de Políticas Públicas de Juventude do Recife (CMPPJ). Tem participado e ajudado a construir diversas iniciativas que impulsionam a atuação política de jovens e mulheres negras, como o projeto Juventude Negra e Participação Política, o Movimento Mulheres Negras Decidem e o projeto Emergências Políticas Jovens, do Instituto Update. 

Jessica é uma das contempladas da 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. A militante de políticas para as juventudes conta como foi o processo de ser bolsista do Baobá, e como os desafios impostos pela pandemia afetaram o percurso de seu projeto. 

 

Reprodução: Instagram

 

  • Qual foi o start da sua trajetória política? Como você despertou para essa necessidade?

Eu participei de um curso que era do CCJ Recife, o Centro de Comunicação e Juventude. Eles ofereciam curso de fotografia, audiovisual, design gráfico, cinema… Abriu um leque, porque o CCJ além de oferecer o curso de fotografia, a gente tinha uma formação sobre direitos humanos e educação popular. Também através da Ong Diaconia, que apoiava esse projeto do CCJ e tem uma trajetória de formação e diálogo com jovens, tanto da igreja quanto de fora. Então fui convidada para participar de seminários. Tinha temas ligados à juventude, direitos humanos, e eu fui me apropriando um pouco mais desse espaço. Até porque, pelo que eu conseguia ter de informações da televisão, “direitos humanos eram para bandido”, então eu fiquei um pouco curiosa para entender. Eu pensava “o que eu vou fazer lá?”. Então teve uma inquietação minha e pra mim era tudo muito novo, eu era muito nova. Foi diante desse espaço que eu consegui me entender e me observar.

Depois de acabar o curso a gente teve algumas viagens para participar de seminários e foi onde eu consegui compreender as temáticas e participar. Foi aí que eu entrei no Movimento Negro Unificado, o MNU, onde eu tive uma educação racial participativa que me ensinou muita coisa, sabe? Eu fui conhecendo outras redes, outras ações e eu não parei mais.

  • Quem são as suas principais referências políticas?

Antonieta de Barros, Benedita da Silva, Vilma Reis, Taliria Petrone, Marielle Franco, Renata Souza, Mônica Francisco, Dani Monteiro, Erica Malunguinho, Erika Hilton, Robeyoncé Lima. Eu acho que pesa mais Marielle, pelo fato de eu ter conhecido ela, ter tido a oportunidade de participar de uma atividade, estar junto.

  • Assim como todas essas mulheres, eu imagino que a sua trajetória enquanto ativista política também já vem causando impactos sobre outras jovens e mulheres negras. Você consegue perceber isso?

Eu dei uma oficina dentro da Funase (Fundação de Atendimento Socioeducativo / Pernambuco) e teve um jovem que ficou muito agarrado comigo durante a oficina inteira. Ele era curioso e queria saber sobre o tema que a gente tava falando, sobre direitos da juventude, direitos humanos. Ele também entendia que direitos humanos era só para bandido e coisa e tal.  Depois que saiu, ele me achou nas redes sociais e mandou uma mensagem falando: “Obrigado por ter ido fazer aquela palestra. Hoje eu estou trabalhando e tudo mudou totalmente depois que vocês foram lá. Hoje eu saí da Funase e tenho outra perspectiva de vida. Voltei para a escola e quero fazer enfermagem. Quero ir para a universidade”. Marcou muito o fato de eu ter ido falar da minha trajetória e vivência, levar um pouco do conhecimento que eu tenho, um pouco da bagagem, e poder transformar. Para mim é muito importante essa construção, essa troca. 

Semana passada eu recebi uma mensagem de uma jovem parlamentar me dando os parabéns pela minha trajetória. Isso porque eu estou enquanto pesquisadora do Update (Instituição da sociedade civil que atua na pesquisa e fomento de iniciativas de inovação política da América Latina), fazendo muito conteúdo de texto, card, live. Eu escrevi um texto falando sobre a radical imaginação política da juventude brasileira e ela me mandou um feedback muito massa sobre como é difícil a gente, enquanto jovem, colocar para fora o que a gente pensa, o que a gente entende, o que a gente quer. Ela falou que vai começar a fazer esse exercício de colocar também a narrativa que ela entende, que ela quer.

  • Quais são as principais demandas de juventudes no Brasil atualmente?

Eu acho que é a questão do trabalho. Não dá pra pensar em outra coisa que não seja a relação trabalhista. A gente tem 92% de jovens que estão trabalhando informalmente, seja entregando alimentos, trabalhando em comércio de feiras ou em plataformas de metrô e ônibus. Quando você pega o metrô você vê claramente o jovem vendendo água, pipoca… Então no momento a questão é o trabalho que está faltando. Quando se coloca uma oportunidade pedem tanta formação que o jovem que acabou de sair da universidade não consegue nem o estágio, porque estão pedindo muita coisa. As pessoas precisam se sustentar, pagar contas e o desemprego está enorme.

  • Quais os principais desafios para se pensar em políticas públicas de juventude e para a juventude?

A construção da política em si já é um pouco distante da nossa realidade. Quando se coloca jovem, participação política e ativa, a gente falando de impossibilidade de um jovem dentro da periferia ter esse entendimento. Foi o que aconteceu comigo: durante quatro anos eu  fui conselheira municipal de juventude aqui no Recife e eu consegui perceber o distanciamento do poder público com a sociedade civil. A gente tinha que sempre cobrando a prefeitura, o município, o secretário: “cadê o tal orçamento?”. Precisava ter um plano para que a gente pudesse ter pelo menos um recurso mínimo para construir e debater a política  do município junto com a juventude, e a grande discussão era o orçamento público. Para você ter ideia, a secretaria tem só R$5 mil para fazer as atividades anuais. Como a gente faz para que outros jovens possam participar do conselho? Porque é através do conselho que você faz a construção com a secretaria, é através do conselho que os jovens podem levar as demandas da sua comunidade, sabe? Há um distanciamento muito grande. Não dá pra gente falando de juventude sem ter jovem no meio.

  • Como foi o seu processo de inscrição no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco?

O Programa Marielle Franco veio pra minha vida de forma relâmpago. Eu tinha acabado de participar do Ocupa Política aqui em Recife, mais ou menos em agosto de 2019, e eu pude conhecer várias iniciativas, várias parlamentares. E depois disso eu pensei “poxa, tem tanta gente massa fazendo tanta coisa bacana. Por que as pessoas dizem que política não presta? Quando a Talíria (Petrone) no Congresso fazendo um mandato muito bom, a Áurea Carolina também . O Ivan está fazendo um mandato participativo aqui em Recife, fazendo prestação de contas do próprio mandato”. Daí eu conheci Daiane Dultra, que é uma pessoa maravilhosa, e foi ela quem me mandou o edital. Só estava faltando 5 dias para fechar o edital. A escrita do projeto não foi solo, foi coletiva. Teve outras pessoas envolvidas: o Bruno (Vieira), a Débora (Brito), a Mayara (Santana), [ativistas e amigos pessoais de Jéssica, que colaboraram com a elaboração e execução do projeto]. Essas pessoas ajudaram tanto na escrita, quanto na produção do vídeo, no envio do projeto. Eu fiquei muito receosa pensando que eu não tinha essa capacidade toda. Eu não sou acadêmica ainda, mas tenho um grande currículo de experiência e trajetória e Daiane me disse que não é isso que vale, que o importante era eu escrever a minha história e a minha proposta.  Durante os cinco dias a gente se falava de madrugada e foi daí que a gente foi pensando coletivamente em fazer uma caravana dentro das comunidades aqui em Recife, dialogar com as juventudes sobre as problemáticas em relação ao território, à participação social ativa. Essa seria a primeira parte e depois eu faria um tour para conhecer os mandatos, ir para Brasília conversar com a Áurea e a Talíria. Ir para São Paulo dialogar com a Érica Malunguinho (que é a primeira mulher negra trans a ocupar a assembleia legislativa de SP), ir no Rio de Janeiro conversar com a Dani Monteiro (a primeira jovem negra eleita deputada estadual pelo PSOL), ir para Salvador conversar com outras mulheres, ir para Minas Gerais… Então, a gente ia fazer uma pesquisa e depois lançar uma plataforma com todas as narrativas que a gente obteve durante o processo de viagem.

  • Você disse que a ideia inicial do seu projeto era fazer uma caravana. De que forma isso foi adaptado para a realidade da pandemia?

Eu não consegui produzir durante a pandemia toda. Eu não tive condições psicológicas. Eu não tinha algo que pudesse me levar para a frente. Eu acho que as únicas coisas positivas foram as formações do Baobá que a gente tinha e eu fui fazendo tudo muito aos poucos. Então as caravanas a gente colocou para o final, porque a gente entendia que não ia conseguir realizar online, já que tava todo mundo com muita coisa. A gente entendeu também que cada deputado ou deputada teria uma rotina muito grande, então as agendas não estavam batendo para pelo menos fazer um bate-papo online. [Dada a impossibilidade de realização das caravanas, foi realizado um ciclo de formações online sobre juventude e participação política]. Foi quando decidi que isso ficaria para o final do projeto, na expectativa de poder sair para fazer isso, mas me bateu uma tristeza muito grande de pensar que sempre que conseguimos algo tem que ter alguma coisa que faça voltar dois passos atrás. Também tive muitas perdas, mortes, o que pesou muito. Eu fiquei mal psicologicamente, então não foi uma produção da forma que eu queria que fosse. Eu fui fazendo aos poucos o meu projeto. O processo de a gente sair para os territórios também não aconteceu. A gente colocou para o final do ano, mas não aconteceu. Então pra mim foi muito ruim.

O meu projeto que seria uma plataforma incrível que estávamos imaginando e sonhando, não obteve o que a gente queria. Então eu fui fazendo leituras políticas, fui estudando aos poucos. Teve o Mulheres Negras Decidem que ajudou bastante. A gente fez várias formações e eu estava sempre participando. Ver tantas mulheres negras unidas no mesmo propósito era essencial e importante. 

  • E as atividades que aconteceram no formato online atingiram o público esperado? Ou foi necessário também alterar sua expectativa de público? Como ficou essa configuração?

Já que a gente não ia conseguir sair para os territórios, eu resolvi fazer uma formação online. Quando estava na construção dessa formação eu pensei em fazer algo fechado só para jovens aqui em Recife, mas depois eu pensando bem resolvi abrir para quem quisesse participar. Eu queria que fosse presencial porque tem outra energia, outra perspectiva e você acaba obtendo até mais que esperava, mas tudo bem. Quando fechei as inscrições, tínhamos pessoas de São Paulo, Belo Horizonte, Salvador, Rio de Janeiro e Paraíba. Aqui em Pernambuco tinha gente de todos os municípios: Recife, Jaboatão, Camaragibe, Paulista, Igarassu, Itamaracá, todos. Querendo ou não, a gente ultrapassou a expectativa do que imaginávamos. Fiquei surpresa, mas foi muito importante ter uma galera de fora participando.

  • Qual foi a principal contribuição do Programa Marielle Franco na sua formação política? Quais são as suas perspectivas e projetos para o futuro?

Para mim foi o aprendizado com mulheres negras, todas as histórias que escutamos, as contribuições e as formações que o Fundo Baobá deu – principalmente com a (ONG) Criola. O Programa trouxe muitas mulheres acadêmicas e eu quero muito entrar na universidade e fazer gestão pública. Também pretendo lançar um projeto que possa formar jovens dentro dos seus territórios e comunidades. Tem outro projeto que é um sonho meu: um grande festival aqui na minha periferia. Ele já está guardado há 3 anos e eu estou mexendo novamente porque quero muito que isso aconteça. Eu penso também em criar um espaço no qual eu possa fomentar e estudar a imaginação política com as juventudes. Trazer essa ajuda para que o jovem que está dentro da periferia sem perspectiva de vida, possa mudar através do conhecimento e das oportunidades. Da mesma forma que eu tive a oportunidade de fazer um curso de graça, eu quero que outros jovens possam ter esse caminho. O sistema é cruel, o racismo, a sociedade em si. Construir, caminhar e ser um ativista requer muito tempo da gente, requer um espaço. Eu consegui obter isso, mas não foi sozinha. Eu consegui me tornar essa pessoa que eu sou hoje através da minha tia, porque quando eu tava na rua (brincando), ela tava trabalhando.

  • Se você pudesse mandar um recado para toda a juventude brasileira, o que diria?

Eu diria que a gente não pode deixar de sonhar. Sonhar é extremamente importante pra gente se manter vivo e manter as nossas ideias. É isso que eu faço.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

QUER IMPULSIONAR A CULTURA DE DOAÇÃO?

Doe para o Fundo Baobá para Equidade Racial
Junte-se a nós.
DOE AGORA