Liderança Negra que atua na Amazônia, Girlian acredita no poder da coletividade para transformar a realidade das mulheres negras

Por Juliana Dias*

A Sumaúma é uma das árvores mais extraordinárias da Amazônia e sua grandiosidade não está apenas na altura que ela pode chegar (70 metros), mas também por ser um portal de comunicação para os povos da floresta, nos âmbitos real e espiritual. É  enraizada na sagacidade da gigante da Amazônia que Girlian Silva de Sousa, integrante da 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, nomeou o seu projeto: “Sumaúma Literária”. O Programa é uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

A iniciativa de Girlian tem como foco principal a publicação de um e-book escrito por mulheres negras (cis e trans) do Baixo Amazonas, principalmente da cidade Santarém (Pará). Aliando o ativismo feminismo negro com os saberes do meio digital, a baiana de Itabuna movimentou diversas mulheres negras da região da Amazônia para potencializar a transmissão de conhecimentos. Embora tenha sido ela a contemplada pelo Programa, o projeto aprovado foi realizado em coletividade com o grupo Mulheres Negras de Santarém, da qual ela faz parte. O resultado dessa movimentação em rede vai gerar a publicação do livro “Vozes Afroamazônidas: entre rios, terras e afetos” e do blog “Vozes Negras”. Nessa entrevista exclusiva, a economista Girlian Silva, que tem mestrado e é doutoranda em Desenvolvimento Socioambiental (UFPA), comenta como a especialização em Influência Digital (PUC-RS) vem contribuindo para ampliação de seus horizontes dentro do ativismo feminista negro.

  • Como é a atuação de uma liderança consciente do pluralismo do feminismo negro?

Desde o início eu me coloquei enquanto uma liderança em formação, porque realmente eu sou uma liderança em formação, eu ainda estou naquele processo de aprendizado e de descobrir um pouco mais sobre o feminismo negro. Toda vez que começo acreditar que eu já sei muito, eu descubro que não é bem assim; quanto mais você lê, escuta outras mulheres falando sobre, você descobre que ainda tem muita coisa que ainda não percebeu. Um dos aprendizados mais importantes que eu tive ao longo desse Programa, foi justamente esse relacionado a pluralidade do feminismo negro. Porque a gente costuma falar em mulher negra e acaba muitas vezes caindo no mesmo equívoco do feminismo tradicional, do feminismo não negro, que é você colocar todas as mulheres dentro de uma categoria só, esquecendo as particularidades de cada uma, as demandas de cada uma. É como se não habitássemos em territórios diferentes e sofrêssemos formas de opressão diferentes. Eu gostaria de sair de todo esse processo, que ainda tem muita coisa pela frente, com essa capacidade, essa consciência muito mais entranhada, mais trabalhada, mais desenvolvida. De que as mulheres negras são plurais, são diferentes e você precisa enxergar até mesmo quando elas não conseguem se enxergar, não conseguem enxergar sua própria particularidade. Então, eu acho que para se colocar no lugar de liderança você precisa ter essa expertise e se você não tiver, tá faltando muita coisa ainda para você desenvolver. Antes de participar do Programa, por exemplo, eu não tinha uma visão um pouco mais elaborada sobre as mulheres trans. Eu estava naquela pegada de “Olha, somos todas negras e tal”. E aí depois de conviver ao longo desses dois anos com uma mulher trans, de ter a oportunidade de ouvi-la, eu fui perceber a importância. 

  • Quais outras contribuições do Programa Marielle Franco para sua formação enquanto liderança negra?

Uma ideia muito mais clara sobre coletividade, que eu acho que é fundamental. Veja, eu sou baiana de Itabuna, moro na Amazônia há quase dez anos. Eu vim para cá em 2013, para fazer um mestrado, fiquei, iniciei um doutorado e estou vivendo aqui. Mesmo sendo economista e sabendo do quanto o capitalismo acaba formatando a nossa visão de mundo, o jeito de conviver, interagir, formando uma sociedade totalmente individualista, nem sempre eu estive ciente desse individualismo entranhado. E nem sempre eu tive essa consciência de que, naquele momento, minha visão era uma visão individualista, mesmo sendo uma pessoa que trabalhava dentro do movimento.

Eu só fui me associar a um grupo de mulheres em 2017, o Movimento de Mulheres Negras de Santarém, no Pará. Até então, eu achava que eu sozinha, estava tudo ótimo. Aquela história de que você não precisa estar no coletivo para poder atuar. Somente a partir de 2017 eu fui ter esse convívio, e com o Programa fui tendo essa visão melhor sobre coletividade. No coletivo somos mais fortes. Ao longo desses dois anos também, eu acho que adquiri um pouco mais de compreensão sobre os problemas que esse comportamento individualista acaba causando dentro do próprio movimento de mulheres. Eu acho que consegui construir esse objeto de observação, de começar prestar mais atenção nas outras, tentar diminuir o julgamento e prestar mais atenção nas ações. E hoje eu saio desse projeto entendendo que precisamos trabalhar bastante dentro do movimento essa coisa do individualismo, que cria concorrência. E esse sentimento de concorrência é algo que nunca faz sentido, mas que muitas vezes tá ali velado e enfraquecendo as coisas. 

  • Você conseguiu atingir os objetivos e as metas que você esperava com o programa?

Todos ainda não. Estou atrasada nisso. A pandemia me pegou de jeito. Pra mim, o Programa começou junto com a pandemia, porque as bolsas foram implementadas em março/abril de 2020 e eu já estava sofrendo as consequências da pandemia. Eu não sei o que poderia ter acontecido se eu não tivesse sido agraciada pelo Programa. Ele foi fundamental pra mim. E mesmo tendo esse suporte, a coisa foi feia, muito difícil. Uma das minhas metas era concluir o curso de especialização em Influência Digital e na sequência colocar um blog no ar. Outra meta importante que eu tinha no meu PDI (Plano de Desenvolvimento Individual) era a publicação do livro. Na minha cabeça quando tudo foi estruturado, o livro era para ser publicado em 31 de julho. Não foi bem assim que aconteceu, o livro está sendo encaminhado para editora ainda essa semana [novembro de 2021]. O livro se mostrou um grande desafio porque me coloquei na obrigação de organizá-lo de forma coletiva. Primeiro tivemos que mobilizar a mulherada para comprar a ideia do livro, fazer as pessoas acreditarem que seria possível ter a publicação desse livro aqui na Amazônia. Se a mulher negra já é invisibilizada, aqui na Amazônia é muito mais. Ainda mais na região que será o foco do livro. A ideia inicial era que a gente ficasse com as mulheres do baixo Amazonas, principalmente da cidade de Santarém, uma cidade que é extremamente elitista, racista, machista e homofóbica. Tivemos todos esses desafios.  

  • Esse processo de elaboração do livro foi coletivo?

Peguei o recurso do Baobá e fui para as mulheres do movimento, do grupo e convoquei aquelas que se interessassem para formar uma comissão organizadora para pensar o livro. Tudo foi pensado de forma coletiva. Quando vimos que havia a necessidade de provocar uma mobilização mais forte para que as mulheres conhecessem o edital, já estava na época da COVID. Então, usamos as mídias digitais. Abrimos um edital para que as mulheres negras cis e trans do baixo Amazonas se inscrevessem. Com a chamada, as mulheres diziam que não se sentiam seguras, achavam que não tinha condições de escrever um artigo. Então, pensamos em fazer aulas online falando sobre temas relacionados ao livro e trazer as pessoas, para ouvir os debates, as aulas e depois isso poderia ser um material para usarmos mais lá na frente, para incentivar.

  • Quais os temas que vocês estão trabalhando no livro?

São diversos eixos temáticos que colocamos lá: mulheres negras e acesso à saúde; mulheres negras e acesso a saneamento básico; empreendedorismo; mulheres negras e direito; mulheres negras e educação, entre outros. Eram eixos pensados para que pudéssemos adequar ao que as mulheres quisessem escrever pra não ficar uma coisa muito engessada. Fizemos parcerias com professoras, professores, profissionais de outras áreas, inclusive pessoas não negras também, que se disponibilizaram a gravar essas vídeos-aulas e convocar a galera para isso. Fizemos toda essa movimentação, mas ainda assim quando o prazo de submissão chegou, tivemos dois artigos submetidos. A previsão era de que publicássemos 16 artigos. Reabrimos o edital e nada. Tivemos que pensar alternativas, porque se a gente não publica o livro, reforça a ideia de que mulheres negras não conseguem escrever. Na época, o edital foi muito visto, o projeto foi bem midiatizado e depois dizer que não ia rolar, seria um tiro no pé. Aí pensamos em abrir para a Amazônia inteira. Deixamos de abrir somente para o baixo Amazônia, ainda assim não rolou. Por último, decidimos chamar mulheres que já tinham o hábito de publicar artigos. Uma preocupação que tínhamos também era que não queríamos só doutoras, em nenhum momento pensamos em um livro formado somente por doutoras ou por mulheres que já eram reconhecidas no meio acadêmico. A gente queria mulheres anônimas.  Colocamos em prática essa ideia e ainda assim – e eu digo que foi por conta da pandemia -, a gente acabou não conseguindo os 16 artigos, a muito custo conseguimos 09 e para isso as mulheres que estavam na organização tiveram que participar também.

Uma coisa que nós diagnosticamos é que existe muita insegurança, as pessoas não acreditam que elas são capazes de escrever, mesmo pegando mulheres que já estão na academia. Daí, pensamos o seguinte: vamos juntar e escrever esses artigos não de forma individual, mas vamos fazer duplas, trios, quartetos, o que for, mas vamos escrever. E daí conseguimos que os 09 artigos saíssem dessa forma. Eu acho que a partir daí já conseguimos atingir alguma coisa, não era a meta que a gente tinha colocado antes, mas o projeto não morreu.

Eu acho que conseguimos homenagear mulheres da região, mulheres anônimas. Queríamos dar visibilidade a essas pautas do território, falar sobre as demandas daqui, mesmo porque temos um problemão quando falamos sobre negritude aqui. Houve todo um processo histórico de apagamento do negro na Amazônia, como se a Amazônia não tivesse participação do negro e teve! Cada vez que as pessoas veem um negro de pele retinta pergunta logo se é do Maranhão, nunca se é do Pará, por exemplo. Então, as pessoas não entendem que o processo de formação social aqui se deu de uma forma, que as pessoas negras daqui vão ter características diferentes das pessoas negras da Bahia, por exemplo. Eu acho que o livro acaba atingindo pelo menos essa meta. 

  • Qual a avaliação positiva desses desafios?

O aprendizado, porque a partir dessa dificuldade toda, tanto pra mim quanto para as outras colegas que estão participando, ficou claro: trabalhar um edital para mulher negra não é o mesmo que trabalhar para mulheres não-negras. Temos gargalos que precisam ser vistos. Saímos desse processo todo com a certeza de que é possível e de que é um eixo que precisa, pode e deve ser trabalhado. O meu grupo acha que a gente vai ter que correr atrás, depois do livro, vamos ter que sentar, reavaliar tudo, ver onde nós erramos, o que pode ser melhorado e gostaríamos de continuar com esse tipo de iniciativa, em outro formato. Eu acho que tem muita história que a gente precisa contar, tem muita coisa para ser visibilizada, discutida. Então, eu acho que o livro de positivo tem isso e sei que vai ser muito legal quando ele for impresso, acreditamos que em novembro já estaremos com ele em mãos. Eu sei que vai ser muito bom para a autoestima das mulheres que participaram desse processo. 

  • Sua proposta de projeto estava relacionada com o âmbito digital, com a chegada da pandemia esse foi o principal ambiente de atuação das líderes negras e de outras atrizes sociais. Como foi essa experiência para você? 

Foi novamente uma outra oportunidade que o Programa me deu, porque no final das contas essa especialização que estou concluindo foi fundamental não somente no campo profissional, do ativismo, porque isso vai se desenvolvendo em novos projetos, em novas ações, vai ser uma forma de eu atuar através da mídias digitais, através do blog Vozes Negras. O que ficou muito claro que é uma ferramenta do futuro, uma forma de trabalho do futuro e ela agregou não somente nesse campo ativista, mas na minha formação profissional enquanto economista. Por exemplo, eu vejo oportunidade da gente tentar fomentar negócios de outras mulheres negras que estão no afroempreendedorismo. Foi uma experiência que confirmou inclusive a hipótese que eu tinha quando escrevi o projeto: de que esse meio digital seria muito mais eficiente do ponto de vista de larga escala do que o presencial. Porque a gente para montar uma ação presencial às vezes os custos são muito maiores, temos que mobilizar carro de som, contar com a boa vontade da polícia, mobilizar uma série de atores que muitas vezes não estão interessados que aquele ato saia. E no meio digital eu pego uma câmera e pronto. Sou eu e minha câmera, claro que tem os outros cuidados e conhecimentos, mas assim é muito mais fácil e consegue atingir um público muito maior. A pandemia foi uma oportunidade de comprovar isso, foi uma confirmação de que eu estava correta. É um curso que realmente vai me render muito. 

  • De que maneira as metas que você atingiu com o programa vão impactar nos grupos sociais/ instituições de mulheres negras que você faz parte?

Eu acho que já começou a impactar. Quando a gente começou a articular o livro, a gente conseguiu, através da mídia, chamar a atenção de outras mulheres do território. Uma coisa que eu acho muito legal porque hoje temos uma demanda maior de mulheres pelo menos com mais curiosidade, principalmente em cidades menores do interior. Outro impacto é a questão trans, essa discussão sobre as demandas LBT, que a gente ainda não estava nessa pegada, ainda não estávamos falando com as mulheres trans. Temos muito o que aprender com elas. É um dos impactos positivos que nós tivemos coletivamente.

  • Quais são seus planos e interesses para o futuro?

Então, finalizar a publicação do livro e colocar logo esse blog no ar. Eu estou saindo dessa experiência toda com a ideia de coletividade muito bem assentada na minha cabeça. Temos planos de começar a garimpar editais para publicar novos livros. Durante o tempo que estávamos rodando a organização do livro, surgiram outras ideias, outras demandas. Por exemplo, tivemos participação de outras mulheres que nesse formato do livro em artigo não seria possível, que são mulheres mais da zona rural. Então, temos de pensar como a gente poderia fazer, pensar que tipo de narrativas e escritas a gente pode passar a aproveitar para que essas mulheres também tenham visibilidade. Pensamos em fazer uma espécie de documentário com mulheres quilombolas, temos até o título: “Meu Quilombo Por Elas”. Seria um documentário em que as mulheres quilombolas falariam sobre os quilombos, a vivência do quilombo a partir das mulheres. Chegamos a submeter em alguns editais, mas ainda não conseguimos aprovação, talvez não tenha sido o momento mesmo. Mas, ideias a gente tem.  

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

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