Experiência de Preta Ferreira com edital do Fundo Baobá a auxilia no processo de transição do atual governo

Por Ingrid Ferreira

“Essa história começa em 24 de junho de 2019, quando fui presa sem ter cometido crime algum. Num desdobramento injusto da investigação sobre o desabamento do Wilton Paes de Almeida, prédio no largo do Paissandu que então era ocupado pelo Movimento de Luta Social por Moradia (MLSM) – do qual não fiz parte -, e a partir de uma carta anônima, fake news, enviada via correio ao Departamento Estadual de Investigações Criminais (Deic), o Ministério Público me denunciou, junto com mais dezoito pessoas de variados movimentos por moradia” – Disponível no UOL.

O depoimento acima é da Janice Ferreira Silva, mais conhecida como Preta Ferreira, integrante do grupo de transição do atual governo e coordenadora do projeto “Minha Carne”, apoiado via edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça. Preta Ferreira escreveu a proposta enquanto estava privada de liberdade injustamente e na oportunidade do lançamento do edital do Fundo Baobá, em parceria com a empresa Google, ela o inscreveu.

Preta Ferreira

Nós da equipe do Fundo Baobá para Equidade Racial tivemos a oportunidade de conversar com Preta Ferreira a respeito do projeto selecionado, confira abaixo a entrevista:

Fundo Baobá para Equidade Racial:

Preta, pode contar um pouco mais sobre o projeto realizado em parceria com o Fundo Baobá e as atividades desenvolvidas ao longo dele?

Preta Ferreira:

O objetivo era a realização de um projeto que, enquanto estive presa em 2019, por lutar por moradia e direitos humanos junto ao MSTC (Movimento Sem Teto do Centro) fui detida. Diante disso hoje nós atuamos pela liberdade de pessoas privadas de liberdade e pelos familiares que aqui fora encontram-se, procurando enfatizar para as pessoas que através da educação de dentro dos presídios para fora e de fora para dentro, é possível ensinar sobre direito constitucional, sobre liberdade e como a sociedade leva pessoas pretas a pararem nas prisões por falta de oportunidade, além de inserir essas pessoas em sociedade através da moradia, o que para nós, é a principal porta de entrada para todos os direitos constitucionais. 

Com o decorrer do projeto houve a necessidade de expandirmos as ações para todo o Brasil, visitei presídios e escolas públicas de São Paulo, no Ceará, Bahia, interior de São Paulo e Fortaleza, onde eu sempre procurava levar o livro que escrevi enquanto estava presa injustamente e um caderno em branco para que essas pessoas pudessem escrever suas próprias narrativas, tanto que três mulheres já escreveram livros dentro da prisão; nós ainda não conseguimos terminar as visitas porque eu tive que entrar na pasta de transição do atual governo, mas seguimos com o foco do projeto. As ações também aconteceram com as famílias que são do MSTC e as famílias de pessoas privadas de liberdade que também pertencem ao movimento, procurando sempre dialogar para que elas adquirissem um entendimento do que é a prisão, e de como nossos corpos são aprisionados injustamente e como podemos fugir dessas armadilhas. O foco do projeto se expandiu, tanto que visitei Brasília, onde estive em abrigos para mulheres e crianças que sofreram violência doméstica e aqui em São Paulo comecei a frequentar a Fundação CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente).

Livro: Minha Carne – Autora: Preta Ferreira – Editora: Boi Tempo

O Fundo Baobá me possibilitou fazer outras parcerias, em outros estados, com outras organizações para que eu pudesse fazer uma peneira de mulheres que saíram dos presídios para ir direto para empregos e moradias definitivas, muitos resultados foram obtidos do projeto que dialogam e fomentam o trabalho já existente no movimento social. 

Atualmente nós temos cinco ocupações no centro de São Paulo e houve recentemente a entrega de 121 casas aos familiares de pessoas privadas de liberdade. Ademais houve formação acadêmica de nível superior para advogades, em que esses profissionais atuam diretamente dentro do MSTC dando o retrofit para as famílias que nunca tiveram atendimento, tanto psicológico quanto atendimento jurídico, e hoje o MSTC tem essa capacidade de fornecer esse atendimento formal para as famílias que estão e que estavam precisando. Por essas razões apresentadas o MSTC acabou formando novas lideranças e novas pessoas do direito para atender essas famílias dentro do próprio movimento.

Fundo Baobá para Equidade Racial:

Os resultados alcançados pelo projeto atenderam às expectativas previstas inicialmente? Como esses resultados se relacionaram com as atividades já realizadas pelo movimento social?

Preta Ferreira:

Houve parcerias com outras ONGs que trabalham com pessoas privadas de liberdade. Essas outras parcerias também trouxeram essas pessoas para serem parte do movimento, e quando eu saí da prisão eu apadrinhei mais duas delas que moram hoje no MSTC, que trabalham e que já não devem mais nada pra justiça, além das famílias que já são atendidas pelo MSTC pela psicóloga, pela assistente social e pelo jurídico que foi formado e fomentado através do projeto financiado pelo Fundo Baobá. 

Através do Fundo Baobá tive a possibilidade de viajar para outros estados e entrar em outros presídios e nas escolas públicas, também consegui levar o meu livro “Minha Carne” já em uma prisão para que fosse o nosso material de trabalho inicial com o intuito de dialogar com essas famílias e com essas pessoas privadas de liberdade, o que possibilitou fazer com que essas mulheres e com que esses adolescentes e as famílias privadas de liberdade também se enxergassem enquanto cidadãos e saíssem do estado em que a sociedade as colocam, que é de pessoas ineficazes, sendo reinseridos em sociedade. 

O projeto com o apoio do Fundo Baobá nos fortaleceu muito porque nós tínhamos pessoas para fazer esse trabalho, a gente ainda tem, só que precisávamos remunerá-las para que tivessem condições de pagar alimentação, transporte, material e o MSTC não tinha de onde tirar o dinheiro e nem do livro “Minha Carne”, e a partir do projeto nos foi possível materializar e fomentar essas pessoas que já trabalhavam conosco. 

Fora as atividades já relatadas, também tivemos ações que aconteceram na Ocupação Nove de Julho, na Ocupação Rio Branco e em Brasília, realizamos atividades de leitura, arte, música, poesia e escrita dos livros. O projeto também me possibilitou estar com o Elas Existem no Acre, onde fomos em dois presídios no estado e fizemos palestra para as mulheres detidas. Ademais ocorreu a distribuição do livro em Salvador, o que nos possibilitou entrar nos presídios do estado e que pudéssemos fazer atividades recreativas com crianças e adolescentes e o que considero a atividade principal foi fazer com que essas mulheres escrevessem seus próprios diários, suas próprias narrativas. O mesmo foi feito no presídio de Araraquara e fiquei de voltar agora pra fazer a última palestra. A minha dinâmica se baseia em primeiro realizar a atividade, a entrega do livro seguido da minha palestra, depois de uma semana retorno ao lugar, sendo a escola ou presídio para ouvir aquelas pessoas e fazer a distribuição do material que é um caderno em branco e um lápis para que essas pessoas possam escrever seus próprios diários e assim sair do estado que lhe foi concebido.

Fundo Baobá para Equidade Racial:

Com a pandemia, muitas pessoas tiveram que se deslocar para as ruas por falta de condições de arcar com os custos de uma moradia. O projeto contribuiu de alguma forma para a causa do movimento nesse contexto?

Preta Ferreira:

No período da pandemia, nós criamos o projeto “Lute Como Quem Cuida”, que é na Ocupação Nove de Julho, onde saímos distribuindo refeições para pessoas em situação de vulnerabilidade social e conseguimos abrigar muitas pessoas. Nós fizemos uma nova ocupação para abrigar outras pessoas e o projeto continua até hoje. Na cozinha da ocupação Nove de Julho todo final de semana existe um almoço com um chef renomado. Então automaticamente a comida que qualquer pessoa que vai almoçar na ocupação, que é aberta ao público, é a mesma quentinha que é servida para as pessoas em situação de vulnerabilidade tanto nas ruas quanto nas periferias. 

No período da pandemia a gente se juntou com outros parceiros também para que pudéssemos fortalecer essas pessoas, além de realizarmos a distribuição de kits de material de higiene, tais como máscaras e luvas. Nós também contratamos pessoas que costuraram máscaras, as quais adicionamos ao kit. O nosso kit continha itens de proteção e álcool em gel, e era distribuído com a quentinha. Além disso, também criamos o projeto chamado “Riqueza Menstrual”, pois quando o Ex-Presidente da República fez o veto tirando a obrigatoriedade de que mulheres presas e em outras situações tivessem acesso a absorvente, o Fundo Baobá nos possibilitou também fomentar a compra de absorventes para que pudéssemos distribuir nas prisões enquanto eu fazia as visitas.

Fundo Baobá para Equidade Racial:

As atividades iniciadas durante a implementação do projeto continuam sendo realizadas atualmente?

Preta Ferreira:

Sim, atualmente há continuidade das atividades realizadas, até porque essas pessoas ainda moram em nossas ocupações, ainda moram em nossos projetos, ainda precisam de toda assistência social, jurídica e psicológica. As atividades continuam e o projeto “Minha Carne” e MSTC tomou uma proporção muito maior do que imaginamos, inclusive eu vou continuar entrando nos presídios que eu já tinha ido visitar e agora eu vou precisar retornar para fazer a segunda etapa desse projeto que continua com o mesmo propósito de libertação, de ser abolicionistas penais, além de dar suporte a essas famílias.

Fundo Baobá para Equidade Racial:

Há alguma coisa que você gostaria de complementar que não foi perguntada?

Preta Ferreira:

Uma coisa que não foi perguntada, mas que eu gostaria de falar foi que eu tive que dar uma pausa nas visitas aos presídios, aos abrigos, as escolas e às Fundações CASA (Centro de Atendimento Socioeducativo ao Adolescente), pois eu entrei na pasta de transição do governo Lula (2023), na pasta de igualdade racial onde eu trabalhei o tema prisional sendo que essa questão que eu pude trabalhar não foi somente com a minha prisão mas devido a todas as visitas que eu fiz as escolas públicas, aos abrigos e aos presídios, o que me possibilitou ter um novo olhar, enxergar com outras diferenças as coisas que precisava, e que eu pude sugerir para ser inserido nos ministérios, para ser exercida agora nessa política pública pela qual nós tanto brigamos.

Os depoimentos que Preta Ferreira apresenta sobre a parceria com o edital são de fato admiráveis, e ela finaliza a entrevista contando como uma pessoa foi beneficiada indiretamente pelo edital: “Através do projeto liberdades pretas eu fiz a curadoria da São Paulo Fashion Week com Naya Violeta, e nós colocamos a proposta de desfilar politicamente na passarela corpos que dizem respeito a sociedade, pensando nisso, eu coloquei o Nego Bala, que é um artista que veio da boca do lixo da Cracolândia, e que foi através do Projeto Liberdades Pretas que ele teve a possibilidade de desfilar nas passarelas da São Paulo Fashion Week, mas retratando tudo que ele vive como um corpo negro que já foi preso injustamente, o corpo de um jovem preto da Cracolândia que teve a mãe assassinada pelo crack pela falta de políticas públicas; e ele trouxe como pauta para as passarelas a situação da Cracolândia e para situação da super lotação dos presídios, além da questão de drogadição”.

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