Lideranças negras se fortalecem e criam redes nacionais e internacionais para debater encarceramento de mulheres negras e luta antiproibicionista

Projetos chamam atenção para o impacto da “guerras às drogas” e o encarceramento em massa de mulheres negras e pobres no país

PorAndressa Franco*

Quando se discute encarceramento e abolicionismo penal a partir dos atravessamentos que há em relação às mulheres negras, alguns dados chamam atenção. O relatório “Mulheres em Prisão: enfrentando a (in)visibilidade das mulheres submetidas à justiça criminal”, do Instituto Terra, Trabalho e Cidadania (ITTC), aponta que 68% das mulheres encarceradas são negras e 50% têm apenas o ensino fundamental. O estudo lançado em 2019 também mostra que a maioria é mãe, não possui antecedentes criminais, estava envolvida com atividades relacionadas ao tráfico de drogas e possui dificuldade de acesso a empregos formais.

Duas pesquisadoras que fazem esse debate, Ingrid Farias e Enedina do Amparo, foram  contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

 

Trajetórias potentes e a luta por uma legislação menos desigual 

Com atuações que se intercalam entre trabalho, militância e vida pessoal, a pernambucana Ingrid Farias integra a Rede Nacional de Feministas Antiproibicionistas (RENFA) e a Rede de Mulheres Negras de Pernambuco. Articuladora política de pessoas e recursos para defesa de Direitos Humanos, voltada em especial para mulheres e população negra, Ingrid viu no programa uma oportunidade de qualificar sua atuação enquanto ativista negra no advocacy. O objetivo foi realizar incidência política e influenciar na construção de alternativas ao atual modelo de política de drogas e segurança pública no âmbito do legislativo federal e estadual.

“Esse projeto mistura o tempo inteiro a minha ação política dentro dos coletivos e organizações que eu faço parte, assim como no espaço político profissional de acompanhamento da construção da legislação brasileira e da formulação das políticas públicas no país”, afirma a ativista. 

Também atuando na área dos Direitos Humanos, Enedina do Amparo tem uma trajetória pessoal e acadêmica extensa. Doutoranda em Ciências Sociais na área de Antropologia Social pela Universidade Católica de São Paulo, ela é mestra em Ciências Sociais na área de Antropologia, com ênfase em gênero, raça, agência criminal negra e geografias carcerárias, pela mesma universidade. Em 2015 defendeu a dissertação “Rés negras, Judiciário branco: análise da interseccionalidade de raça, classe e gênero na distribuição da justiça em São Paulo”. Advogada desde 2009, atua junto aos movimentos sociais urbanos e com organizações populares dos movimentos negro e feminista. Ela também é co-fundadora do Coletivo Autônomo de Mulheres Pretas ADELINAS.

Enedina nasceu em Ituberá (BA), chegou em São Paulo em 1990, onde trabalhou no emprego doméstico, foi balconista, babá e enfrentou o racismo e a xenofobia por ser nordestina. Hoje, aos 47 anos, ela conta que se orgulha muito de suas origens: um pai trabalhador rural, que perdeu para a Covid-19 em janeiro de 2021; e uma mãe que criou nove filhos lavando roupa para as elites – sua primeira referência de ativismo.

Na faculdade, que começou em 2004 com apoio da ONG Educafro, Enedina já fazia debates que denomina “antiprisionais” e “antipoliciais”. Mas, foi a partir do primeiro estágio, no Ministério Público (MP – SP), que passou a observar a realidade do sistema de justiça mais de perto. O trabalho era na Vara da Infância e Juventude. “Ali eu vi a criminalização da maternidade negra… a produção de subjetividades submissas. Todas as frases utilizadas pelos promotores revelavam o olhar do poder judiciário e a visão patológica da mulher negra como mães de bandidinhos”, relata Enedina. Na época, a própria advogada sofria um tratamento racista e machista por parte dos promotores e até mesmo de outros estagiários.

A liderança permaneceu por um ano como estagiária no MP, e usou esse espaço para hackear o sistema como podia. Dava informações para essas mães, acompanhava até a Fundação Casa, orientava sobre como poderiam se comportar nas audiências.

 

Os percalços e mudanças de rotas geradas pela pandemia

Dentre as atividades com apoio do Fundo Baobá, Ingrid participou do processo da constituição da Frente Parlamentar Feminista Antirracista no Congresso Nacional. A liderança afirma que a iniciativa tem acompanhado hoje de forma mais organizada, projetos de lei ligados ao ataque às vidas e direitos das mulheres. 

No entanto, com a chegada da pandemia, foi necessária uma adequação para repensar os planos. Entre esses planos, estavam algumas idas à Brasília: “é onde acontece o processo de institucionalização da nossa política, do acesso a direitos”, pontua Ingrid Farias. Mas novas estratégias foram aplicadas por meio de acompanhamento remoto. Assim, ela estreitou diálogos com deputadas feministas e participou de audiências públicas e reuniões de comissões da Câmara, sempre de forma virtual.

Com uma carreira construída em torno da agenda antiproibicionista, Ingrid destaca que o momento atual é extremamente desfavorável para perspectivas de construção de alternativas dentro do campo da segurança pública e da política de drogas. Para a ativista, a atual conjuntura nacional e institucional não dá oportunidade de avançar com esses debates. Ainda assim, destaca que há um avanço mínimo no que diz respeito ao uso terapêutico da cannabis, por exemplo.

“Tem muitas mulheres que são de periferias e não têm condições de fazer compra de óleos caros que são importados de outros países. E esse trabalho de advocacy tem ajudado a avançar, especialmente com o direito das mães de crianças que precisam fazer o uso terapêutico da maconha para ter uma sobrevida”, explica. 

Ingrid ainda chama atenção para as propostas que atingem diretamente a população negra brasileira e que tem avançado institucionalmente. Como por exemplo os softwares de reconhecimento facial, propostas de aumento de penas e do encarceramento.

Assim como para Ingrid, a pandemia também afetou o projeto inicialmente proposto por Enedina. A advogada investiu em terapia em decorrência do período. Além disso, estava previsto um intercâmbio para desenvolver o repertório linguístico, o que precisou ser modificado. Começou então um intercâmbio virtual com estudantes da Universidade da Califórnia em Santa Bárbara. “Falando a língua do colonizador a gente entende as formas sutis e explícitas do racismo; analisa arquivos e dados estatísticos sobre assassinatos de mulheres negras no Brasil e fora do Brasil; acessa artigos em inglês e estabelece novas parcerias, sobretudo com as mulheres norte americanas feministas negras”, defende.

 

Criação de redes internacionais

Com o objetivo de criar redes e pensar quais são as produções de resistência que existem no campo da segurança pública e da política de drogas em outros países, Ingrid Farias também fez cursos de línguas. Com foco especialmente na América Latina, a liderança pretende expandir sua luta para além do Brasil.

Enedina do Amparo, por sua vez, se inscreveu no Programa de Aceleração justamente pensando na perspectiva de internacionalização da sua atuação. Refletindo sobre a própria trajetória, ela sentiu a necessidade de resolver algo que classifica como um trauma pessoal: o conhecimento da língua inglesa. E foi a fim de desenvolver o segundo idioma que se inscreveu no edital.

Para a ativista, hoje os padrões de exclusão são diferentes, e podem ser medidos no acesso ao treinamento da língua estrangeira. “Bell Hooks nos convida a pensar que, ao mesmo tempo em que a língua oprime, ela é o lugar onde nos fazemos sujeitos da nossa própria história. Apenas 5% da população brasileira sabe se comunicar em inglês. E, embora eu não tenha dados, as mulheres negras devem ser as últimas da fila”, comenta. Enedina está agora no terceiro módulo do curso de inglês, já em nível pré-intermediário. O objetivo é pensar a luta antiprisional e antipolicial fora do país.

 

Fortalecimento das lideranças

Atualmente, Enedina é assistente de acusação no Ministério Público no processo criminal sobre o assassinato de Luana Barbosa – mulher negra, lésbica, mãe e periférica, que foi espancada e morta por três policiais militares em Ribeirão Preto (SP). Com a participação no programa, a advogada conta que conseguiu fortalecer e construir novas redes, junto a este caso, em que ela é a única advogada negra atuando.

A contratação de uma assessoria em segurança digital também foi um destino para os recursos de apoio à advogada, que em 2019 sofreu um ataque nas redes sociais. Assim, ela investiu no conhecimento para se proteger nesse ambiente; Contratou uma assessoria de marketing para a produção de conteúdo nas redes sociais, com objetivo de ampliar o debate sobre abolicionismo penal e encarceramento em massa; e também se dedicou a organizar um livro que pretende lançar em 2022, fruto da sua dissertação de mestrado.

Para o futuro, a advogada vislumbra um PhD fora do país. Outra pretensão é a publicação de um livro em inglês, e tradução de seus textos para o idioma, como uma forma de fazer o debate ultrapassar as fronteiras.

Ingrid também relata que nestes 18 meses do projeto Baobá ela pôde acessar muitas oportunidades de qualificação, que influenciaram diretamente na sua atuação técnica e profissional. “Eu participei de formações dentro de grandes instituições do Estado como o Senado e a Câmara Federal. Então acho que a maior possibilidade que o edital nos deu foi tempo. Tempo para que a gente pudesse se dedicar a outras coisas e não estivesse só naquela luta eterna que nós mulheres pretas estamos pela sobrevivência”, finaliza.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

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