Desafios da Luta Quilombola no Brasil: Como as comunidades se articulam pela garantia dos seus direitos

Projetos de mulheres quilombolas trazem importância da coletividade e influência da ancestralidade no processo de lutas por mudanças sociais

Por Andressa Franco*

Lugar secreto para onde iam as pessoas escravizadas que fugiam das fazendas, minas e casas das famílias brancas coloniais, onde eram exploradas e sofriam maus tratos. Normalmente encoberto ou escondido em meio ao mato, como o mais famoso deles, o Quilombo dos Palmares. Essa é uma das definições encontradas no dicionário para a palavra “quilombo”.  Com o desafio de alcançar visibilidade e trazer as questões que pautam a luta quilombola no Brasil para o debate, é que os remanescentes dessas comunidades travam uma luta conjunta. 

Visando o aprimoramento das habilidades de liderança para darem contribuições ainda mais qualificadas na luta pelo direito à terra, Lucimar Sousa, Emília Costa e Tânia de Moraes, mulheres quilombolas, se inscreveram na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

 

Emília Costa
Lucimar Sousa
Tânia de Moraes

 

Coletividade e Ancestralidade 

A importância da coletividade e influência da ancestralidade na formação das atuais lideranças quilombolas e no processo de lutas por mudanças sociais, é um ponto em comum a ser ressaltado nos projetos de Lucimar, Emília e Tânia.

Maranhense de Pirapemas, mãe de oito filhos e quebradeira de coco, Lucimar Sousa decidiu apresentar o projeto “Mulher negra plantando sementes, cultivando redes de cuidado e colhendo justiça social”. Pensar formas de enfrentamento à violência contra a mulher, resgatar as práticas de medicina natural e da alimentação alternativa eram os principais objetivos da senhora de 64 anos. A ideia foi realizar oficinas com as mulheres do Quilombo Aldeia Velha voltadas para promoção da saúde fitoterápica, agroecologia e soberania alimentar.

“Esse é meu trabalho, faço com orgulho e vou em qualquer lugar do país, basta me chamar que vou fazer as oficinas, não tenho preguiça. Tenho vários cursos em reflorestamento, fitoterapia, a minha bagagem é bem grande”, afirma a maranhense. O projeto de Lucimar conseguiu implementar quintais produtivos que beneficiam nove famílias da comunidade, e que representam caminhos para garantir renda com a venda de hortaliças. Além de soberania alimentar e saúde popular aos desassistidos de políticas públicas. 

Com o recurso do Baobá, também foi possível instalar aviários e a implementação de estratégias de apoio emergencial a três comunidades quilombolas na região, ofertando roupas e outros itens básicos. Aparelhos eletrônicos também foram adquiridos a partir do Programa. “Foi um grande salto na minha vida ter ganhado este edital. Só tenho a agradecer, porque nesse tempo de pandemia eu não teria aguentado ver as famílias sofrendo sem poder alcançar algo, sem poder sair de casa”, relata Lucimar. Ela conta que no início não gostava da palavra liderança, devido ao medo das perseguições contra líderes comunitários. 

A quilombola ainda se dedica a oficinas de artesanato, especialmente das confecções de bonecas, cestos, tapetes. Também desenvolve oficinas voltadas para mulheres que colhem e vivem do coco babaçu. No Maranhão, muitas quebradeiras garantem o sustento da família através dessa prática. 

Lucimar não está sozinha. No projeto “Recontando nossas Histórias como instrumento de luta pelo Chão Sagrado”, Emília Costa se dedicou a viabilizar seu fortalecimento como líder, para representar melhor seu território. Além de fortalecer outras mulheres negras quilombolas que estivessem se descobrindo lideranças nos quilombos. Ela vive na comunidade quilombola de Santo Antônio do Costa, localizado no município de São Luiz Gonzaga, também no Maranhão. 

Articuladora do Movimento Quilombola do Maranhão (MOQUIBOM) e da Articulação de Povos e Comunidades Tradicionais do Maranhão, Emília também atua no movimento Guerreiras da Resistência, voltado para o empoderamento feminino. Além disso, trabalha como auxiliar administrativa na Secretaria de Igualdade Racial do município. 

“O Programa me ajudou bastante, comprei muitos livros que me ajudaram. As formações que foram realizadas, foi tudo bem interessante pro meu desenvolvimento pessoal”, pontua. Ela diz que hoje se vê como uma liderança mais madura. Para isso, conta que se concentrou em leituras sobre o feminismo negro, lives, formações e entrevistas com anciãos para rememorar a ancestralidade da comunidade “a partir do chão em que pisam”.

Alguns dos resultados observados a partir do seu projeto, foram: a maior incidência de mulheres e jovens no fortalecimento da organização do território; promoção de reuniões no quilombo, no MOQUIBOM; na Articulação das Mulheres do Cerrado; participação em oficinas e formações; e da compra de um notebook como equipamento para se aprofundar nos estudos. “Esse era meu intuito, criar uma relação maior nos outros e também em mim, de pertencimento ao território”, explica Emília.

Já Tânia de Moraes propôs o projeto “Mulher Quilombola na Defesa dos Direitos e pela Vida!” focada no fortalecimento de mulheres quilombolas nas comunidades, com conversas, diálogos e vivências, resgatando os históricos de luta. Tânia pertence ao Quilombo das Ostras, localizado próximo ao município de Eldorado, em São Paulo. Mas, desde novembro de 2020, vive no Quilombo Sapatu, localizado a aproximadamente 35 km do centro da cidade de Eldorado. A base da economia da comunidade é a agricultura, o turismo e a venda de artesanato. As famílias locais se sustentam a partir da colheita de banana, arroz, feijão, milho e inhame.

Aos 30 anos, seu principal espaço de atuação hoje é a Equipe de Articulação e Assessoria às Comunidades Negras (EAACONE), onde trabalha há sete anos. Uma entidade juridicamente constituída, sem fins lucrativos, que trabalha para que o artigo 68 das Disposições Transitórias da Constituição Federal, cumpra os requisitos que dizem respeito ao direito à terra dos Remanescentes de Quilombo. Para isso, assessora as comunidades quilombolas do Vale do Ribeira com o intuito de que se auto-identifiquem como quilombo, recuperem sua história e seus valores culturais e encaminhem a documentação aos órgãos públicos demandando o reconhecimento e a titulação coletiva de suas terras. 

Com toda a experiência acumulada na entidade, Tânia viu no Programa uma oportunidade para investir em sua própria formação e capacidade como liderança e contribuir de forma mais ativa nos territórios. O que inclui a defesa das ameaças que cercam esses territórios, como barragens, Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCH), mineração, entre outros. “O meu projeto era voltado para me fortalecer enquanto mulher negra, sair um pouco da assessoria da EAACONE, e ter mais voz ativa fora, trazendo mais mulheres para fortalecer”, explica Tânia, que também integra o Movimento dos Ameaçados por Barragens (MOAB).  

 

Impactos da Pandemia nos Quilombos

A chegada da pandemia de covid-19 no Brasil trouxe à tona uma série de desigualdades que impactaram diretamente nas comunidades quilombolas. Esse cenário não poderia deixar de impactar no segmento dos projetos elaborados pelas mulheres quilombolas. Para Lucimar, foi essencial ficar ao lado das famílias do seu quilombo, apoiando durante os momentos difíceis da pandemia. 

Durante esse período ela quebrou a perna, e precisou ficar seis meses de cama. Foi um momento de adaptação para seguir com todas as suas atividades por meio da tecnologia, algo que não estava habituada. “O aprendizado foi um sucesso na minha vida, mexer com celular, computador, internet, conversar com pessoas que nunca vi do outro lado da tela”, comemora Lucimar. Uma das adaptações do projeto foi utilizar o recurso para as cirurgias e remédios. “Mesmo quando me quebro não fico parada, já me quebrei várias vezes e estou aqui, sinto orgulho da minha luta e de ser mulher negra”, completa.

Já Emília precisou remodelar a ideia das visitas a locais sagrados com os membros da sua comunidade. Devido à pandemia, o grupo foi bem menor. O mesmo aconteceu com as visitas planejadas para outros quilombos da região. “Fui adaptando, fazendo entrevista individual com os mais velhos; visitas com duas ou três pessoas nos quilombos vizinhos. Pra gente poder entender um pouco mais da nossa ancestralidade, criar uma relação maior de pertencimento”, explica. Um de seus objetivos era realização de leituras sobre feminismo negro, no que ela obteve sucesso. 

Apesar de não ter sido possível participar de diversos encontros de mulheres negras devido à pandemia, a liderança conseguiu levar seis jovens do seu território para um Encontro de Juventude do MOQUIBOM. O período de isolamento também deu a Emília a oportunidade de adotar a prática do autocuidado, o que também aprendeu entre as trocas com as mulheres que conheceu através do Fundo Baobá. “Eu percebi que se eu não cuidar de mim, eu não vou estar bem para cuidar do próximo”, pontua.

As comunidades quilombolas do Vale do Ribeira, onde Tânia vive, adotaram medidas sanitárias, promovendo o controle de acesso de visitantes e turistas. Elas continuam na luta pelo andamento da regularização fundiária de suas terras. Tânia conta que a EAACONE em parceria com o Instituto Socioambiental (ISA) apoiou as comunidades através das licenças das roças tradicionais solicitando que elas fossem autorizadas em caráter de urgência. “A gente tem esse problema do racismo ambiental, porque você tem que pedir uma licença pra roça, um tempo para plantio. E quando não tem essa licença muitas lideranças acabam fazendo assim mesmo, e mesmo em terra coletiva, acaba tendo uma multa super alta”, explica.

Mas, apesar da pandemia, Tânia não deixou de seguir com os planejamentos do seu projeto. Ela realizou pesquisas, através de aplicativos de mensagens, com mulheres das diferentes comunidades, e produziu um diagnóstico dos principais problemas enfrentados por essas mulheres. Considerando as dificuldades de acesso à internet nesses espaços, não alcançou o número de mulheres desejado. A própria Tânia hoje tem melhor acesso devido ao recurso do Baobá, contudo percebe através da pesquisa o interesse dessas mulheres de ocupar os espaços de coordenação e articulação dos seus quilombos.

Já as rodas de conversa presenciais nas 13 comunidades em que atua, não ocorreram. Ela então focou nas pesquisas, leituras e no resgate histórico. “Mesmo eu tentando fazer um projeto individual, o projeto não é de hoje, é um trabalho de luta e resistência que já vem sendo construído desde 1991, e eu consegui trazer essas lembranças”, diz. Entre outros resultados, está a participação no Fórum Povos de Comunidades Tradicionais; atuação organizada no combate ao coronavírus, com distribuição de cestas básicas, produtos de limpeza, máscaras e reivindicação pela prioridade na vacina.

Outro feito de que se orgulha no período da pandemia, foi a construção do Protocolo de Consulta Prévia dos Territórios Quilombolas do Vale do Ribeira – SP, lançado no dia 20 de novembro de 2020, Dia da Consciência Negra. Os Protocolos de Consulta e Consentimento são documentos elaborados por cada povo indígena ou comunidade tradicional sobre a forma e processo em que querem ser consultados, de modo que respeite suas culturas, tradições e organização social. “Neste 20 de novembro (2021) a gente fez um encontro por município para entregar o protocolo em mãos. Foi uma demanda que aconteceu mesmo na pandemia, com dificuldade, mas que hoje a gente pode se orgulhar”, acrescenta.

 

Desafios da Luta Quilombola no País

É consenso entre as representantes quilombolas contempladas pelo Programa, que o direito à terra é o principal desafio a ser alcançado . Hoje, o Brasil soma mais de 6 mil quilombos, e aproximadamente 16 milhões de remanescentes. Apesar dos obstáculos, os quilombos sempre mantiveram sua identidade étnica e cultural voltada à preservação do meio ambiente e à manutenção das práticas tradicionais herdadas de seus ancestrais. 

A experiência com o Fundo Baobá inspirou Lucimar, por saber que existem mais companheiros de luta espalhados pelo país. “A gente não pode parar nos territórios, nos quilombos, com a demarcação da terra. Precisamos de políticas pública, os negros, os pobres estão sofrendo muito por causa do latifúndio”, destaca.

O mesmo vale para Emília, que enxerga a militância como intrínseca à sua vida pessoal. “A gente não tem vida pessoal, nossa vida pessoal é lutar pelo território livre, pela libertação dos povos, não tem separação. O nosso principal desafio é a titulação do território. Esse é um entrave crucial”. 

A perspectiva de Tânia é de esperança, principalmente a partir da juventude presente na luta pelo território. “O fortalecimento da base é fundamental. Nada impede que a juventude saia, estude e volte para ajudar e assessorar as comunidades dentro do território. É um avanço grande”, afirma. Enquanto isso, se dedica a levar para as comunidades onde atua o conhecimento sobre seus direitos. 

Mas Tânia não tira a atenção das ameaças que rondam as comunidades do Vale do Ribeira, por ser uma região rica em biodiversidade. “Nós, lideranças, nos encorajamos para ter nosso direito de terra, plantio, roça, tradição. Não é para ter aquele olhar que todo quilombola tem a mesma casinha de barro, a mesma vivência, que não pode melhorar seu desenvolvimento de vida. O que fica é a valorização, a cultura, a vivência dos mais velhos, a medicina, e isso é um fortalecimento rico”, finaliza.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

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