Lideranças apoiadas pelo Fundo Baobá se especializam para criar estratégias de cuidados específicas para este segmento da população
Por Morgana Damásio*
“Esse é o produto do meu luto”. Magna Barbosa havia acabado de perder um filho quando decidiu se inscrever para a 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. “Eu precisava me recolocar no mundo novamente, não dava pra ser mais a mesma mulher que antes. Precisava deixar um outro tipo de legado e eu acho que a partida do meu filho foi isso”, partilha Magna, que é psicóloga, mestre em psicologia social e gestora pública. “Então eu precisava sobretudo me amar, eu era sim essa pessoa preta merecedora. Pensei no meu trabalho, nas coisas que eu faço e falei: é isso aqui que eu vou fazer, é nisso que vou investir”, complementa.
Desde 2009 ela é Coordenadora da Rede de Atenção às Pessoas em Situação de Violência Doméstica e Sexual de Suzano (SP), onde realiza um monitoramento das pessoas que chegam até o SUS por uma necessidade de saúde decorrente da violência. A ação é feita a partir da ficha de notificação nos Pronto Socorro e nas Unidades Básicas de Saúde (UBS). Magna explica que os/as pacientes iam embora e, posteriormente, não se sabia se o ciclo da violência havia se rompido. “Com o passar do tempo eu entendi que isso tinha um recorte racial forte, na sua maioria as mulheres pretas e pardas eram as mulheres que estavam ali vivenciando as questões de violência em todas as gerações, desde muito pequenas, adolescentes e mulheres adultas e idosas. Era uma violência estrutural”.
A partir dessa percepção, Magna construiu o projeto Racismo e a interface com a violência doméstica na Saúde, que objetiva desenvolver ações de formação que possam impactar nas condições de saúde da população negra por meio da oferta de formações para profissionais do sistema público de saúde. “Se você olhar para a maioria dos profissionais de saúde com nível superior, são pessoas brancas. O quanto isso não fica também impactando nas questões do atendimento das pessoas que sofrem violência?”, questiona.
Magna destaca que, a partir do apoio do Fundo, foi possível construir um instrumento que possibilitasse entender a interface entre violência e racismo estrutural, apontando quantas mulheres vítimas de violência estão em atendimento, em acompanhamento ou que tiveram alta (ou não). Também foi elaborada uma classificação de risco a partir das vulnerabilidades sociais e marcadores sociais que ajudam a organizar a prioridade no atendimento “para que haja manutenção da vida e da subjetividade dessas mulheres”, explica. Ela destaca que mulheres negras e transexuais estão mais vulneráveis, como apontam os indicadores sociais.
O projeto é desenvolvido em 44 unidades de saúde e tem três etapas: o monitoramento do cuidado, a capacitação e a implementação dos núcleos de prevenção à violência. Para a capacitação de qualificação e gestão foram desenvolvidos 5 encontros sobre temáticas da violência. “Ao invés de eu ficar só conceituando o que é a violência, como ela acontece, eu vou trazendo as discussões do dia a dia, que foram dores que doeram em mim enquanto profissional de saúde no atendimento na UBS. Eu procuro trazer no cotidiano exemplos que as pessoas vão se identificando, cada encontro é uma temática diferente”, sinaliza.
Em reconhecimento ao impacto que o projeto tem proporcionado, Magna recebeu neste ano o Prêmio Viva, iniciativa do Instituto Avon em parceria com a Revista Marie Claire, que busca reconhecer as práticas de pessoas que se destacam no cuidado, acolhimento e proteção das mulheres no Brasil. Ela também foi convidada a lecionar em uma faculdade. Sobre seu fortalecimento enquanto liderança, a partir da experiência do Programa, ela destaca: “Você reconhece o seu lugar e o tamanho da sua potência, isso ninguém mais te tira”.
“Precisamos quebrar um pacto de que a gente tem que dar conta de tudo”
“Eu estava emocionalmente debilitada, então uma companheira me falou assim: a militância não vai deixar de acontecer se você parar um pouco, ela vai continuar acontecendo e é saudável que dentro da militância algumas parem, outras retomem e a gente avança. É preciso que a gente se dê essa autorização”, compartilhou Mayne Silva, de Serra Grande (BA). Mãe solo, que em meio a pandemia experimentou ainda mais a sobrecarga dos 17 anos de militância, os 4 últimos como gestora comunitária de uma ONG. Sentiu que era o momento de fazer a transição de carreira e se dedicar às atividades como terapeuta. Mayne também é uma das contempladas no Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco.
Para tornar esse sonho concreto, ela escreveu o projeto Novos espaços de poder, re-existir e seguir tecendo a rede. A iniciativa apoiou processos formativos e de aprofundamento nas habilidades terapêuticas, facilitação de processos comunitários e fortalecimento da atuação como profissional e liderança. Hoje se dedica ao estímulo do cuidado e autocuidado entre mulheres e ativistas, sobretudo outras mulheres negras. “ Eu uso as ferramentas para apoiar mulheres a tratarem suas dores, emoções e assumirem sua expressão, sua voz, sua potência, seu lugar no mundo”, diz.
Mayne explica que o fortalecimento da ampliação das ferramentas como terapeuta a fortaleceu para que assumisse a sua voz e partilhasse seus escritos com o mundo. Já são três participações em publicações, um livro solo lançado e mais dois em planejamento, além de convites para festivais nacionais e fora do país. “É esse lugar que o Baobá me trouxe no encontro com outras mulheres e também nas formações terapêuticas: de assumir a minha imagem, a minha voz, a ancestralidade, mas também a arte como uma permissão de expressão”.
Ela acredita que é preciso desmistificar essa ideia de mulher preta que precisa ser sempre forte. “É preciso quebrar uma corrente de que a mulher das comunidades, a mulher preta, pobre, dá conta de tudo sem se cuidar, porque ela tá ali pra se sacrificar. Para as lideranças isso ainda é ainda mais forte, eu vivenciei isso”, conclui a terapeuta.
“ A descoberta do quanto podemos ser potentes quando somos acreditadas é a mais significativa”
“O que me impulsionou a me inscrever no Programa [de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco] foi o ineditismo de investir financeiramente em mulheres negras para que pudessem realizar projetos de alcance comunitário e/ou investir no desenvolvimento de suas carreiras”, explica Evania Maria, especialista em Medicina Comportamental e instrutora de mindfulness (atenção plena).
Evania Maria
Evania também atua como educadora em saúde, e concretizou com o apoio do Programa, a pós-graduação em dor pelo Hospital Albert Einstein. Outro resultado do projeto foi a realização do seu desejo de difundir, por meio de um site, o potencial da atenção plena para a promoção da justiça social. Reativou também as atividades do Grupo de Estudos Reverter Conceitos, iniciado em 2017 com outros profissionais parceiros com o intuito de oferecer conhecimentos e técnicas para reduzir o preconceito implícito presente na cultura.
A especialista aponta que o alto custo da formação em dor, que no Brasil ainda é bastante elitizada, é uma das causas que contribuem para a falta de acesso ao tratamento. “A informação e a educação sobre dor tanto para profissionais de saúde como para a população em geral, são os pilares para ampliar o acesso. Pois, as pessoas estarão mais informadas sobre seus direitos e poderão pressionar o poder público para criação e/ou ampliação de políticas públicas que possibilitem o acesso ao tratamento da dor”, explica. Ela destaca ações estratégicas que vêm sendo desenvolvidas como o Programa de Reabilitação da Pós-Graduação em Dor do Hospital Albert Einstein, oferecido de forma gratuita; e o curso de Educação Continuada em Dor, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, que possui um custo mais acessível para formação dos profissionais da saúde.
“Outras duas ações estratégicas que tenho trabalhado é, primeiro, a realização de programas de educação em dor para pacientes com dor crônica. Em segundo, em 2019, eu e o tradutor Nélio Schneider, traduzimos e adaptamos uma cartilha sobre dor, visando disponibilizar informações mais precisas e aumentar esse conhecimento entre a população”, comenta. De acordo com Evania, a cartilha é um material que oferece, em linguagem acessível, informações básicas sobre dor e formas de aliviá-la.
A especialista ressalta que devido às desigualdades sociais, a dor traz uma carga de incapacidade e sofrimento adicional para as pessoas de baixa renda que são as mais vulneráveis em termos de assistência à saúde e qualidade de vida. “A população negra em todas as faixas etárias é cotidianamente mais exposta a circunstâncias de estresse e violência, devido aos efeitos sociais, políticos e econômicos decorrentes do racismo estrutural”.
Para a socióloga e instrutora de mindfulness já não se pode mais pôr em dúvida que, quando o estresse é constante e a pessoa não tem chances de reagir de forma adaptativa, ele se torna crônico. Isso leva a população negra a ficar mais suscetível a doenças e/ou agravamento de quadros clínicos decorrentes do estresse, como hipertensão arterial, dor crônica, diabetes, ansiedade e depressão. “Avanços de estudos no campo da medicina e psicologia relacionados aos efeitos do estresse na saúde explicam que o alto grau de ameaça que um indivíduo experimenta provoca nele respostas de estresse que se acumulam ao longo do tempo, levando eventualmente a uma má saúde mental e física”.
A atenção à saúde mental foi também uma experiência vivenciada por Evania dentro do programa. “O edital surpreendeu, ele também proporcionou ações de autocuidado (as apoiadas poderiam investir seus recursos em serviços de saúde mental) e ofereceu formações com foco na cultura do autocuidado e da saúde mental”.
*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.