Pandemia acentua desigualdades e coloca em risco direitos das crianças e adolescentes conquistados ao longo de muitos anos

Mayara Silva, Ana Lídia Rodrigues e Marcia Monte lutam pela seguridade dos direitos das crianças e adolescentes e foram algumas das lideranças apoiadas pelo Fundo Baobá

Por Giovane Alcântara*

 

A pandemia acentuou algumas desigualdades e colocou em cheque anos de trabalho voltados para as crianças e os adolescentes. Um relatório divulgado pela Organização das Nações Unidas (ONU) em setembro, indicou que o despreparo do Brasil para o enfrentamento da covid-19 agravou as desigualdades sociais. O estudo foi desenvolvido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud); Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef); Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e da Organização Pan-Americana de Saúde (Opas). Segundo os indicadores, os maiores atingidos são as populações socialmente mais vulneráveis, sobretudo nas áreas da saúde, da educação, emprego, renda, moradia e proteção social. 

Criado há 31 anos, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) surge como forma de aprimoramento das políticas voltadas para esse público. O Estatuto garante acessos e direitos, como por exemplo: o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, entre outros. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE, 2020), no ano de 2019 o Brasil possuía 4,6% das crianças e adolescentes na condição do trabalho e exploração infantil. Isso se dá por uma série de fatores, como por exemplo, a evasão escolar, a falta de renda e de empregos formais. Nesse último caso, vale ressaltar que o Brasil tem cerca de 14 milhões de pessoas desempregadas. O número vem  do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA – 2021), e representa um percentual de 13,7% da população economicamente ativa no país. Este contexto de desigualdades acirradas pela pandemia limitam ainda mais a viabilidade do ECA. 

Mayara Silva, Ana Lídia Rodrigues e Marcia Monte são lideranças negras que atuam na luta pela seguridade de direitos das crianças e dos adolescentes, e foram contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations.

 

Ana Lídia
Marcia Monte
Mayara Souza

 

A advogada e ativista dos direitos das crianças e adolescentes, Mayara Souza, acredita que há duas maneiras do ECA ser implementado e viabilizado. Para ela, o primeiro passo é a racialização do Estatuto. A advogada aponta que anteriormente ao ECA, existia o Código de Menores. Posteriormente a Constituição Federal de 1988 estabeleceu, no artigo 227, que todas as crianças são sujeitos de direitos. “Parece que todas as crianças partem de um mesmo lugar de oportunidade e igualdade. Obviamente que [no ECA] há uma tentativa muito tímida de reconhecer que algumas crianças estão em situação de vulnerabilidade, mas não alcança todas as crianças de maneira igual”, reflete.

De acordo com Mayara, o segundo passo importante para efetivação do ECA seria a inserção das crianças e dos adolescentes no processo de viabilização e discussão de políticas públicas. “A gente sai de uma doutrina indiferente, onde as crianças eram tratadas de maneira indiferente dos adultos, avança um pouco em relação a isso e chega na doutrina da proteção integral, que a gente está desde 1988. Precisamos avançar para uma nova fase de proteção de crianças e adolescentes, e este avanço tem que incluir as questões das crianças com deficiência, das crianças indígenas, das crianças negras”, aponta. Para ela, precisamos avançar para uma fase de proteção, que só será possível quando as vozes destas crianças forem trazidas para essa discussão. “Então, outro ponto que eu acho importante é ouvir as crianças em primeira pessoa, não importa o tamanho dessa criança”, pontua.

A evasão escolar também foi uma das consequências da pandemia. No primeiro ano de crise sanitária, o número de evasão escolar no Brasil foi de 12%: cerca de 172 mil estudantes entre 6 e 17 anos abandonaram os estudos. Os dados são do relatório intitulado “Os custos educativos da crise sanitária na América Latina e no Caribe”, do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), concluído em novembro de 2020. O fato das escolas terem sido paralisadas como parte das medidas de segurança para o enfrentamento da covid-19 mostrou ainda mais as desigualdades impostas.

A falta de aparelhos tecnológicos para aulas virtuais, a falta de acompanhamento e preparo para o ensino remoto, e o aumento dos casos de abusos e explorações sexuais, são fenômenos que se interligam com o aumento da evasão escolar durante a pandemia. “Os dados já mostram que dos abusos sexuais contra crianças, mais de 70% acontecem no ambiente doméstico. As principais portas de entrada de denúncia são a escola. Porque ali a criança estabelece um vínculo de confiança ou então o próprio profissional da educação consegue identificar a situação” reflete Ana Lidia Rodrigues, liderança que trabalha com enfrentamento à violência sexual. “E aí, a escola estava fechada, a saúde atolada e a perspectiva de segurança coletiva  era o ‘fica em casa’, mas para essas crianças, a casa nem sempre é um espaço de segurança”, complementa.

Ana Lídia ainda reitera que o processo de não educação em sexualidade integral faz com que as vítimas não identifiquem as violências. “No caso do abuso doméstico, muitas vezes, ele acontece a partir de relações ditas afetivas. Do carinho, da brincadeira, da ludicidade e a criança, por falta de conhecimento, não consegue identificar que aquilo ali se trata de uma situação abusiva”, pontua. A liderança questiona o fato de não ter havido nenhuma campanha em massa voltada para crianças e adolescentes dizendo que elas poderiam procurar alguém e pedir ajuda. “Paralelo a isso, tem a dimensão da exploração sexual, onde um dos principais fatores da exploração sexual são as condições de miséria. E aí você teve um empobrecimento da população muito grande e a gente sabe que, em situações extremas de empobrecimento, quem mais paga a conta são as crianças e as mulheres, né?”, complementa. 

A professora Márcia Monte considera que esse cenário todo afetou diretamente a educação das crianças mais pobres, majoritariamente negras. “A gente vive num país muito desigual. Enquanto algumas [crianças] tinham todos os equipamentos, outras sequer tinham condições de assistir às aulas e de pegar o material com os professores. Isso aí a gente vai sentir nos próximos anos, né? ”

 

Impulsionamento

Mayara Silva, Ana Lídia Rodrigues e Marcia Monte encontraram, no apoio do Fundo Baobá, suporte para seguir com suas trajetórias de atuação. As três lideranças estudam temas voltados para a infância, adolescência, sistema socioeducativo e educacional. Para elas, a relação entre o gênero, a classe e a raça, são fatores primordiais de discussão e ampliação do debate com a sociedade civil. 

Apesar das trajetórias de luta, o autorreconhecimento enquanto lideranças só veio após o investimento do Fundo. Segundo Ana Lídia, o Programa foi muito importante para ela se reconhecer enquanto liderança social. “Sempre me reconheci como parte, compondo, mas consegui entender que o meu papel também é um papel de movimentar processos, de chamar e estimular pessoas. Isso foi muito importante”. 

No mesmo sentido de Ana Lídia, Márcia Monte considera que o apoio do Fundo foi fundamental para ela conseguir enxergar os efeitos do racismo em si e na sua construção enquanto liderança. “O Fundo teve uma coisa muito legal que foram as formações, a gente ainda teve coaching. Foi fantástico! Você consegue identificar através da análise do racismo (que até então eu não tinha feito) o que ele faz com você. Então eu percebi o potencial que eu tinha”. Márcia conta que esse processo foi fundamental para sua carreira.  

Apesar de desenvolver ações constantes e de estar inserida desde 2016 no movimento de mulheres e no movimento negro, Mayara também só conseguiu se ver enquanto liderança depois do Programa. “O Fundo Baobá impactou a minha vida para falar: ‘Você é uma liderança sim, acredita nisso! O que você faz é muito importante, inspira muitas pessoas e as pessoas se importam com isso’. Durante o processo eu tive muitas dúvidas, inclusive, hoje eu ainda tenho muitas dúvidas se eu sou uma liderança, mas acho que essa contribuição foi muito significativa”.

 

Dificuldades em desenvolver ações durante a pandemia

A pandemia modificou muitos os planos dessas três mulheres. A princípio, Ana Lídia modificou o projeto porque a pandemia mexeu com muito com sua subjetividade e saúde mental, já que ela lida diretamente com vítimas de violências. Diante da possibilidade da inserção de autocuidado no Plano de Desenvolvimento Individual (PDI) do Programa Marielle Franco, ela modificou estruturalmente o seu projeto. Durante esse processo, ela também identificou, através de uma consulta de diagnóstico, ser portadora do Transtorno de Espectro Autista (TEA). Isso proporcionou a inserção da abordagem sobre crianças e adolescentes com deficiências e situações de violação de direitos. A pesquisa que abordaria práticas educacionais para o enfrentamento da violência sexual contra crianças e adolescentes e que seria desenvolvida durante esse processo, teve que ser modificada para uma escrevivência. “Eu percebi que eu não sou uma vítima, eu não sou sobrevivente, eu sou supravivente [termo alcunhado ao pesquisador Luiz Rufino]. Eu passei por um processo, eu saí melhorada dele. Eu tenho uma história pra contar, tenho criticas a fazer, e é desse lugar que esse corpo ocupa o mundo e quer falar”.

Depois da alteração central nos seus objetivos, Ana Lídia vem conseguindo cumprir suas metas, mas reitera que ainda há processos acontecendo. “Após a alteração do plano individual, as metas foram cumpridas, ficaram mais realistas, mais enxutas e eu consegui cumprir. Os processos estão rolando, eu continuo estudando. Meu texto está em processo de editoração. Depois vai pro processo gráfico, vou procurar uma editora pra ver se consigo publicar. O resto é desdobramento da ação”, comenta sobre o livro de escrevivências que está em processo final de produção.

Para Márcia Monte, que desenvolveu trabalhos ligados às práticas educacionais para o enfrentamento do racismo em instituições de educação básica no estado do Ceará, a pandemia teve um impacto inicial: a impossibilidade de realização de suas oficinas em parceria com a Secretaria de Educação do estado. 

Outros impactos estiveram relacionados ao cuidado e ao investimento em especialização. Márcia fez inglês, MBA (Master in Business Administration,  pós graduação na área de gestão de administração), tentou mestrado e escreveu uma série de artigos sobre a temática. “Isso tem impacto social muito relevante. Tive algumas metas superadas, que é essa história da publicação, da escrita, do meu fortalecimento pessoal, do inglês” comenta a professora. A liderança ainda está escrevendo um livro infantil: “Eu quero ver como é que as crianças enfrentam esse racismo e como eu posso fazer isso de maneira lúdica. Eu tô escrevendo, no meu tempo, sem pressão, mas isso foi uma superação para além e foi uma inspiração do Fundo Baobá”, relata. 

Já Mayara afirma que, no primeiro ano, mudou muito as metas do seu projeto, pois havia a expectativa de fazer o intercâmbio; só no último trimestre que desistiu e decidiu traçar novas metas. “As que foram sendo ajustadas, conseguimos atingir, mas eu fiquei mais feliz com as metas de comunicação. Eu tinha preocupação de alcance, de rede, mas deu tudo certo”, comenta.

Mayara ainda avaliou que o apoio e o investimento do Fundo Baobá tem relação com a realização de sonhos e do fazer acontecer. Eu acho que os fundos, os investimentos, possibilitam a concretização de sonhos, de realização, de alcançar. Além de possibilitar ocupar espaços, desejados e inimagináveis, possibilita a não desistência e, principalmente, a criação de redes”, afirma.

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

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