Promover a equidade racial através da potencialização da educação do jovem negro

No dia 10 de dezembro, quando é celebrado o Dia Internacional dos Direitos Humanos, o Fundo Baobá para Equidade Racial divulgou em seu site oficial a lista das 100 pessoas selecionadas para o Programa Já É – Educação para a Equidade Racial

O programa foi lançado exatos cinco meses antes, em 10 de julho de 2020, com o objetivo de apoiar 100 jovens negros residentes em bairros periféricos de São Paulo e outros municípios da região metropolitana a acessarem o ensino de nível superior. A iniciativa do Fundo Baobá, em parceria com a Citi Foundation, inclui não só os custos dos estudos em cursinho preparatório para o vestibular e as despesas com transporte e alimentação ao longo do programa. Ele prevê também atividades voltadas para o enfrentamento dos efeitos psicossociais do racismo e para a ampliação das habilidades socioemocionais e vocacionais. Ainda prevê mentoria com profissionais de diferentes formações acadêmicas, experiências profissionais e de vida.

Educação é um dos quatro eixos nos quais a missão estratégica do Fundo Baobá para Equidade Racial está focada. E não podia ser diferente: o ambiente escolar é um dos mais severos gargalos à equidade racial do Brasil. Dados mostram que o ensino fundamental tem quase o mesmo percentual entre crianças brancas e negras de 6 a 10 anos (96,5% e 95,8%, respectivamente). Mas, na faculdade, a matemática é outra: na média, só 25,2% dos jovens entre 18 e 24 anos cursam ou concluem o ensino superior, segundo o IBGE. Só que o percentual de jovens brancos que frequentam ou concluem o ensino superior (36,1%) é praticamente o dobro do percentual de jovens pretos ou pardos (18,3%) na faixa de 18 a 24 anos.

Não podemos negar que nos últimos anos houve um aumento significativo de pessoas negras nas universidades. Uma pesquisa do IBGE,  de 2018, mostrava que 50,3% dos estudantes do ensino superior da rede pública eram negros, sendo a primeira vez na história que o número de matrículas negras ultrapasava o de pessoas brancas. O Censo da Educação Superior, também em 2018, apresentou uma pesquisa na qual o número de negros no ensino superior saltou 78% entre 2014 e 2018. 

Para a gerente sênior de riscos e continuidade de negócios, Viviane Elias Moreira, o aumento de pessoas negras no ensino superior está atrelado à aplicação de políticas afirmativas e de reparação histórica e social, como as cotas raciais e o Programa Universidade Para Todos (ProUni), instituído pelo o governo federal no ano de 2005: “As medidas afirmativas são a base para que a população negra tenha acesso ao ensino de qualidade e a uma correção histórica educacional voltada à evolução da população negra, e que tenha também acesso a todo suporte pressuposto para que você tenha ensino de qualidade de primeira linha”. 

Viviane Elias Moreira, administradora com ênfase em comércio exterior e gerente sênior de riscos e continuidade de negócios

Para o economista, membro da assembleia geral e um dos fundadores do Fundo Baobá, também fundador do Instituto Cultural Steve Biko e vereador reeleito em Salvador, Silvio Humberto, é evidente que o aumento de negros nas universidades veio de políticas afirmativas, mas que isso não é apenas mérito do governo: “Essas políticas não chegam porque governo decidiu fazer. Você tem um movimento antes e tem sempre que se fazer referência ao movimento negro, ao trabalho pioneiro”. Silvio, inclusive,  menciona o trabalho do Instituto Cultural Steve Biko, que no dia 31 de julho deste ano completou 28 anos de atividades, e foi um dos pioneiros no cursinho pré-vestibular para pessoas negras na Bahia: “Nós falamos que são 28 anos promovendo ações afirmativas, então o que eu diria é que isso, tanto as as cotas raciais, quanto o ProUni, de garantir em escala o acesso de pessoas negras às universidades, tem um nome, tem um movimento anterior, que vem sendo puxado desde os anos 1990, com os movimentos dos cursinhos pré-vestibulares negros, populares e comunitários”.

Viviane Elias, que se formou na universidade antes do surgimento das políticas de inclusão, também é fruto do cursinho pré-vestibular social: “Eu sempre falo que o meu divisor de águas na vida foi o meu curso pré-vestibular, que eu fiz no Núcleo da Consciência Negra na USP, no ano de 1997. Porque lá eu tive acesso a uma possibilidade de ensino pré-vestibular com qualidade, com apostilas de qualidade, que eram elaboradas por um cursinho pré-vestibular muito caro e famoso, na época. Mas principalmente com relação à representatividade, foi ali que eu vi biólogos negros, químicos negros, historiadores negros,  professor de inglês negro e tínhamos também professores brancos que contribuíam e eram aliados ali naquela causa”.

O ingresso do negro na universidade também fica atrelado a uma educação básica de qualidade. Mas uma pesquisa do IBGE, de 2018,  mostra que um terço dos brasileiros entre 19 e 24 anos não havia conseguido concluir o ensino médio naquele ano. Entre os que não conluíram esta etapa, 44,2% são homens jovens negros. Muitos dos motivos que mostram a evasão escolar corresponde ao fato de o jovem negro ingressar mais cedo no mercado de trabalho. Para Silvio Humberto, isso é parte do círculo vicioso da pobreza e ele necessita ser rompido: “A evasão é consequência da vulnerabilidade social em que se encontra a maioria dessa juventude. Então, se você tem uma escola que não oferece os meios e as condições, começam as distorções de idade-série. Jovens  e adolescentes na faixa dos 13 anos começam a migrar para a noite, obrigados a entrar muito mais cedo no mercado de trabalho”. O que também revela outra problemática que afasta  jovens da escola: a gravidez na adolescência: “Muitas meninas, por engravidarem,  têm que ficar em casa pra cuidar não só da sua cria, mas também da família, dos seus irmãos, e tudo isso vai interferindo na sua educação, nas condições para garantir uma educação de qualidade,  de eles terem acesso”.

Silvio Humberto, economista, membro da assembleia geral e um dos fundadores do Fundo Baobá, também fundador do Instituto Cultural Steve Biko e vereador reeleito em Salvador (BA)

Viviane Elias também atribui o ingresso do negro na universidade a uma boa educação de base,  de qualidade, mas também reconhece as problemáticas no ensino básico. Portanto,  ela acredita que o trabalho que precisa ser feito é o empoderador: “Precisamos empoderar jovens negros, mostrando que eles podem ser o que eles quiserem e que existe um mundo de possibilidades para eles”. Muito da fala de Viviane é baseada em sua experiência em trabalho com  jovens de comunidades vulneráveis: “Muitos deles acham que a faculdade ainda é um sonho distante, porque é uma coisa elitista, ou não é para eles. Então,  empoderar esses jovens negros que, sim,  podem entrar em uma universidade e a partir do momento que eles entrarem, o esforço de alguma maneira vai ser considerado dentro do processo dele. Precisam levar em consideração o fato de um jovem negro de periferia levar quatro horas dentro de um ônibus, se ele trabalha o dia inteiro. Para poder entregar um trabalho do dia pra noite, os professores precisam, ao menos, ter sensibilidade de entender que essa pessoa tem algumas restrições para executar o trabalho”.

Silvio também reforça a importância do acompanhamento para esses jovens: “É preciso ter uma visão sistêmica, não vai se combater a evasão escolar somente com esse acompanhamento. Daí a importância do serviço social na educação para poder ir nas causas. Mas precisa também, fundamentalmente, não se perder de vista que é necessário combater a vulnerabilidade social das famílias das quais  esses jovens são oriundos”.

As trajetórias de Silvio Humberto e Viviane Elias incluem instituições particulares de básico. “Eu sou a prova cabal de que a exceção só serve para confirmar a regra”, brinca o economista. O fato de Silvio ter estudado em uma escola particular veio de uma recomendação que a sua mãe recebeu: “Deixe de dar uma boa roupa para o seu filho e dê educação”, sendo assim, os seus pais se esforçaram bastante para que Silvio e os irmãos pudessem ingressar numa boa escola: “Fiz o ensino médio em uma escola de classe média aqui de Salvador, onde a minha realidade era uma e a dos meus colegas era outra, completamente diferente, porque onde eu morava tinha problemas de saneamento, de falta de água, às vezes de energia elétrica, a rua não era asfaltada, era uma área pobre e tinha pessoas também extremamente pobres, embora fosse um bairro extremamente musical, cultural que é a Fazenda Garcia”. Conhecido hoje como reduto musical, o bairro Garcia é um dos mais antigos e tradicionais da cidade de Salvador. Durante muito tempo, recebeu o nome de Fazenda Garcia, por abrigar no espaço a fazenda do Conde Garcia D’Avila. Silvio afirma que ser um aluno negro em uma escola particular, majoritariamente branca, construiu a sua consciência de classe e raça, e que a boa contribuição disso veio de seu pai que, na época, trabalhava como mecanógrafo, consertando máquinas de escrever e de calcular: “Eu era um dos poucos negros dentro dessa escola, mas um conselho que recebi de meu pai quando eu tinha 14 anos foi:  ‘Não se esqueça, você é filho de operário, você não é igual a esses burgueses que estudam nessa escola’. E isso eu nunca esqueci, isso foi a forma dele me falar, do jeito dele, o que era consciência negra e de classe, da minha origem social, para demarcar bem quem eu era e o que eu estava fazendo ali”.

Viviane estudou boa parte do ensino fundamental também em uma escola particular, mas em São Paulo: “Eu fui bolsista no colégio particular até a oitava série e depois, por questões financeiras de não conseguir nem pagar a bolsa, eu tive que ir para um colégio público”. Na época, havia sorteios e uma grande concorrência para ingressar, inclusive, nas escolas públicas: “Eu dormi na fila de um colégio na Vila Formosa, e consegui ser sorteada para estudar no período da tarde, que era o menos disputado, para conseguir ter acesso ao ensino médio de qualidade. E aí foi meu primeiro grande choque com a defasagem de um ensino que eu tive até a oitava série como bolsista em uma escola particular até a  chegada no terceiro colegial,  que era uma escola pública e, mesmo de ponta, era normal por exemplo, na metade do primeiro colegial,  eles estavam ensinando pela primeira vez uma coisa que eu aprendi na sexta série. Então,  eu sempre fui vista como se fosse uma nerd do colégio, mas eu não era. A questão é que eu já tinha tido um ensino diferente dentro do colégio particular”. 

O primeiro vestibular prestado por Silvio foi aos 16 anos: “Entrei na universidade com 17 anos. Dentro da trajetória escolar eu não perdi ano nenhum, entrei na universidade muito cedo, mas era uma exceção, um ponto fora da curva, você se formar, como eu me formei em economia, com 20 anos de idade”. Após prestar um concurso público e não ser chamado, Silvio prestou concurso para auditor fiscal da Secretaria Municipal da Fazenda: “O meu primeiro concurso foi feito no ano de 1984 e eles chamaram em 1985, e de lá são 35 anos como auditor fiscal da Secretaria da Fazenda e depois, em 1993, eu me tornei professor da Universidade Estadual de Feira de Santana, no curso de Economia”.

Viviane prestou vestibular em duas oportunidades. Na primeira tentativa, foi para o jornalismo: “Não passei para segunda fase por dois pontos, mas passei em uma faculdade particular  e não tive dinheiro para pagar. Então, voltei a cursar meio ano de cursinho em 1998”. Na segunda oportunidade, ela passou em três faculdades: Estudando de manhã e trabalhando como operadora de telemarketing à tarde, o primeiro estágio veio apenas no último ano de curso e foi uma experiência frustrante: “Consegui um estágio no Banco Alfa. Fui contratada para ser estagiária da mesa de câmbio, mas me colocaram como operadora de telemarketing para o processo de concessão de leasing e, quando eu fui ver, eu estava limpando as mesas dos operadores da época. Foi uma das minhas maiores frustrações”, relembra.

Mentoria e carreira

Além de custear o cursinho pré-vestibular para jovens negros e as despesas com ônibus e transporte, o Programa Já É- Educação para Equidade Racial terá programa de mentoria e acompanhamento acadêmico, para que o jovem tenha a possibilidade de se descobrir profissionalmente e escolher a sua carreira, uma coisa que a juventude negra de antigamente nem ao menos sonhava, como relembra Viviane: “Hoje a gente fala de carreira para um menino de 18 anos. Na minha época, as pessoas negras nem sabiam o que era carreira. Ela sabia que era o trabalho. Eu precisava trabalhar para pagar minhas contas, para pagar o aluguel da minha casa, então nem pensava em fazer carreira, eu pensava em ter um emprego e evoluir no emprego para ter mais dinheiro,  para ter uma ascensão social e conseguir o meu grande sonho, que sempre foi comprar a casa dos meus pais e ter os meus objetivos de viajar e conseguir estudar, porque eu sempre gostei muito de estudar”.

Quando surgiu a oportunidade de cursar o seu primeiro vestibular, a voz familiar se fez presente, mais uma vez, na vida de Silvio: “A minha mãe, no alto da sua sapiência, me disse: ‘Meu filho, pobre sabe escolher: ou é medicina, ou é direito, ou é engenheiro, é isso que eu sei. Como eu não posso te orientar, peça a Deus’. Então eu posso dizer que a minha entrada na economia tem a ver com essa força da espiritualidade, que eu acredito muito, que escolheu esse caminho para eu trilhar”. 

Após a experiência traumática com o primeiro estágio, Viviane pensou em uma solução drástica: “Eu decidi que iria hackear o sistema”, frisa. “Enquanto o sistema achar que eu estou seguindo os passos dele, eu estou tentando viabilizar estratégias para que eu consiga hackeá-lo e estar sempre à frente”. Após terminar o curso de Administração com Ênfase em Comércio Exterior, Viviane foi cursar outra faculdade, dessa vez de Processos Gerenciais: “Era uma faculdade de dois anos, que era o que dava para pagar. Mas  depois disso, acabei investindo muito em certificação, principalmente certificações internacionais e estudo de idioma. Posso te falar que todas essas conexões, além dos meus últimos estudos que foram dois MBAs diferenciais para o que eu faço, realmente foram que me possibilitaram hackear o sistema e ter mais chances no mercado de trabalho”. 

 

Silvio, por sua vez, não tinha muita ideia do que era o curso de economia: “Eu não sabia muito o que era, então a forma que o curso foi se desenhando, que a academia de cursos me preparou para ingressar no mercado de trabalho, estava focado em fazer concurso”. E foi na faculdade que Silvio teve o primeiro contato com o movimento negro: “Foi em 1980, eu participei do MNU (Movimento Negro Unificado), fui um dos fundadores do Grupo Negro da UCSAL (Universidade Católica de Salvador) inspirado no grupo negro da PUC-SP”.

 

Promover a equidade racial, potencializando a educação dos jovens negros de regiões vulneráveis,  é a principal premissa do Fundo Baobá, através do Programa Já É: “O Fundo Baobá é formado por líderes visionários. Afinal de contas, quando você vê que jovens de 17 a 25 anos têm acesso a iniciativas como essa. Que essas iniciativas  cobrem todos os pontos de defasagem e ainda disponibilizam um plus, o Fundo Baobá vai proporcionar que essas pessoas tenham acesso à representatividade tangível, que é uma bandeira que eu levanto muito. Representatividade é muito importante, mas quantas pessoas de nós terão acesso a Michelle Obama, por exemplo? Mas quantas dessas pessoas vão ter acesso a uma Fernanda Lopes, a uma Viviane Elias, a uma Selma Moreira? E isso é transformar vidas através de ações afirmativas”. 

 

Silvio também acredita na força e no potencial do Já É, mas também alerta para a importância de estendê-lo  para outros estados do Brasil: “A proposta é excelente, mas só acho que não deveria ficar restrito ao município de São Paulo, apesar de ser lá onde você tem as maiores desigualdades. A gente precisa que esse programa se estenda para o Brasil, e sobretudo para a região Nordeste, é preciso encontrar parceiros, é preciso apoiar as organizações que já existem”, finaliza.

 

Fazendo um retrospecto em sua trajetória profissional, Viviane Elias reforça ainda mais o surgimento de medidas como o Programa Já É: “Eu sou uma profissional de gestão de riscos e gestão de crises, hoje eu componho o pequeno percentual de 2.6% de mulheres executivas nesse país, estou participando do primeiro curso de formação de conselheiras negras deste país, tenho dois MBAs e passagens profissionais por multinacionais e nacionais nos mais diversos segmentos, única e exclusivamente por ações afirmativas como essa do Fundo Baobá. Eu sou o resultado do que ações afirmativas, alinhadas com educação de qualidade e com suporte psicossocial de blindagem contra ações do racismo estrutural, podem fazer. Hoje eu gero receita, procuro praticar o ‘ninguém larga a mão de ninguém’, participo de outros grupos de empoderamento de mulheres e meninas negras da periferia, porque eu sei que uma ação social como essa pode movimentar e mudar vidas”, completa.

QUER IMPULSIONAR A CULTURA DE DOAÇÃO?

Doe para o Fundo Baobá para Equidade Racial
Junte-se a nós.
DOE AGORA