Viver com dignidade está muito além de um conceito. É prática em que priorizamos a nós mesmos sem esquecer a prioridade do outro

Dois homens negros que habitam a maior cidade do país, São Paulo. Ambos professores universitários. Um deles é fisioterapeuta e gerontólogo (alguém que estuda e trabalha com processos do envelhecimento) e o outro é um sociólogo  (alguém que estuda a organização e o funcionamento das sociedades humanas e as relações sociais). 

Procuramos saber deles, a partir do conceito do viver com dignidade, quais são suas opiniões sobre alguns temas que permeiam o nosso cotidiano. Os tópicos vão de relacionamento familiar, passando por ativismo político, saúde, racismo e masculinidade. 

Os entrevistados foram o gerontólogo Alexandre da Silva, professor do departamento de saúde coletiva da Faculdade de Medicina de Jundiaí (SP), e o sociólogo Deivison Nkosi, professor na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Campus Baixada Santista, em Santos (SP). Eles não se esconderam de nenhum tema e suas ideias são de grande contribuição para quem deseja pensar uma sociedade progressista, em que o respeito ao outro e a equidade sejam praticados por todes. 

 

PARTICIPAÇÃO POLÍTICA 

Alexandre da Silva Falar de política é não ser partidário. É entender o contexto atual. Quando há discordância política, isso não quer dizer que os discordantes sejam de partidos diferentes. Não quer dizer que sejam opositores. Eu exerço meu direito político todos os dias, pensando em mim e nas outras pessoas. Tento entender quais são as manifestações políticas delas. O exercício político é o exercício da minha cidadania, baseado no fato de que todos nós temos os mesmos direitos. 

Deivison Nkosi –   Minha atuação política se dá por diversos meios. Entendi que a produção intelectual é uma forma de intervenção política importante. É uma forma de ativismo. Então me considero um intelectual orgânico do movimento megro. Mas entendo que a atuação política não pode se limitar à produção intelectual. Então,  procuro  me envolver com os movimentos sociais de combate ao racismo, especialmente aqueles que estão situados no espectro mais à esquerda do universo político. Atuo em contribuição a uma série de organizações de trabalho de base, que fazem tanto trabalhos pedagógicos quanto comunitários. Também tento intervir no debate político sobre temas conjunturais da nossa sociedade, que vão desde as questões sanitárias epidemiológicas (se a gente pensar na Covid-19) até as questões políticas mais gerais, tendo como eixo o movimento negro.

  

RELAÇÃO FAMILIAR

Alexandre da Silva –  Eu estimulo sempre o diálogo. Ele sempre é válido, principalmente quando associado à escuta. Em muitos casos de conflito, com essa receita, a do diálogo e a da importância da escuta,  a gente consegue resolver. E as estratégias de solução nunca passam por qualquer tipo de violência, como falar alto ou coisas assim. 

Alexandre da Silva, gerontólogo, professor do departamento de saúde coletiva da Faculdade de Medicina de Jundiaí (SP)

  

Deivison Nkosi – Entendo sim que a presença familiar é um acontecimento político. Entendo que a minha participação junto à minha família é uma intervenção política. Então, tendo isso em consideração, eu tento conciliar os tempos e os espaços. Isso nem sempre é possível, mas quando a gente percebe a importância política do fortalecimento familiar, a importância das famílias negras para a resistência negra, para a reprodução da nossa existência, mas sobretudo para a criação da possibilidade de existências afetivas e até financeiras, entendemos que esse espaço tem que ser priorizado. Eu venho tentando fazer isso. Sou casado, tenho dois filhos, mas faço parte de uma família ampliada, onde entendo que  influenciar na vida das pessoas da família é contribuir para um mundo melhor e sobretudo contribuir para que mais pretos e mais pretas estejam vivos e estejam bem, além de atentos ao que está acontecendo.

 

ARTICULAÇÕES SOCIAIS

Alexandre da Silva –  Sou apaixonado por gente. Falo com todo mundo: pobres, ricos, velhos, novos, bonitos ou considerados feios. Eu não posso e não se pode agir com preconceito. Trabalho com saúde pública. Trabalho com gente. Eu estudo o envelhecimento, e esse é um fato que acontece na vida das pessoas. O grande problema é que algumas pessoas buscam e legitimam discurso que traduz o que elas pensam e esse movimento de ultradireita do mundo expressa um retrocesso. Já procurei fazer uma análise que não envolvesse o racismo, mas o racismo sempre está presente nesse discurso direitista. 

Deivison Nkosi – As minhas articulações sociais são, sim, permeadas pelo meu engajamento político, mas também pela minha produção intelectual. Eu sou uma pessoa que vem da geração do hip hop; geração que buscava ser,  na prática,  a revolução que procurava ver no mundo. E isso significa trazer para a vida cotidiana determinadas preocupações de gênero, de raça e de classe. Trazer para a experiência cotidiana a preocupação de não reproduzir uma relação coisificada, uma relação reificada com as pessoas. Não tratar as pessoas como propriedade, não tratá-las como coisas que  podem ser descartadas. E estar vigilante com a possibilidade de reproduzir o racismo. Mesmo sendo vítimas do racismo a gente não está isento de reproduzir o racismo. Uma geração  vigilante com a possibilidade de reproduzir as dores e os sofrimentos do racismo e transferir isso para as pessoas com quem a gente convive. Entendo que essas coisas não podem estar separadas e isso significa trazer para o cotidiano aquilo que a gente discute, que a gente teoriza. Trazer para o cotidiano significa  pensar as demandas políticas de gênero, de raça, de classe, de orientação sexual,  tanto no campo pessoal quanto no campo profissional e político como um todo. Senão, podemos defender algo que não vale para nós. Que não vale ser defendido. Então, acredito que seja necessário não perder de vista a necessidade de viver na prática aquilo que a gente defende para o mundo.

Deivison Nkosi, sociólogo, professor na Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) e Campus Baixada Santista, em Santos (SP)

RELAÇÃO COM OS TERRITÓRIOS DE VIVÊNCIA

Alexandre da Silva –  Tenho amizades duradouras desde aquele tempo. Até hoje procuro me relacionar com vários territórios, pois defendo o direito das populações negras de envelhecer. E as pessoas envelhecem em todos os espaços. Defendo o envelhecimento com dignidade. Em qualquer território. Procuro conscientizar e fazer a pessoa perceber que ter acesso ao que é digno  faz parte do cotidiano dela. É um direito. 

Deivison Nkosi –  A minha relação com os territórios que passo é bastante ambígua. Eu venho da favela,  cresci na favela, brincava no lixão, e vi o processo acelerado de urbanização das favelas. Tive acesso à universidade e depois a um tipo de possibilidade de visitar e conhecer outros territórios além da favela. Inclusive a universidade é um desses espaços. A favela é o meu lugar de origem, mas também eu pude circular e conhecer o mundo e ver que o mundo é muito maior que a favela. A favela tem construções de resistência, mas também tem carências e dificuldades de acesso a algumas coisas fantásticas,   que são comuns  a algumas pessoas. Então, minha relação é de ambiguidade com esse lugar de origem.

 

RELAÇÃO COM A COMUNIDADE

Alexandre da Silva –  Tenho procurado levar às pessoas meus conceitos sobre saúde, doença e cuidados. Procuro conscientizar. Fazer com que as pessoas percebam o que faz parte do cotidiano delas. Procuro expandir os conhecimentos sobre a população negra dentro da minha área, que é a saúde. Tento incutir nelas o valor do lazer, o exercício da intelectualidade e procuro aflorar nelas tudo o que nos desperta como cidadãos. 

Deivison Nkosi Contribuo de diversas formas. Se minha comunidade não é esse lugar onde eu durmo, minha comunidade é muito maior. Minha comunidade é a comunidade negra brasileira, afrodiaspórica do mundo. Minha  comunidade é a classe trabalhadora. Minha contribuição política vai na direção de defesa desses grupos.

Num âmbito mais estreito,  tento participar das atividades do movimento negro na minha cidade, das atividades de bairro da minha cidade, das atividades do meu bairro de origem.  As pessoas como eu, que são intelectuais e que vivem para atuar na pesquisa e difusão  de conhecimento, têm uma responsabilidade para com a sociedade. Aí eu procuro devolver o que acumulo,  participando de atividades que  possam fomentar um trabalho de base, uma conscientização, fomentar o avanço de alguns debates e algumas pautas.

 

SAÚDE E BEM ESTAR

Alexandre da Silva –  Valorizo muito minha prática física e a leitura. Mas isso não é fácil. Se deixarmos, o trabalho acaba nos engolindo. O fato de eu estudar o envelhecimento faz com que eu analise o meu próprio. A maioria da população negra não teve lazer porque trabalhou muito, sempre trabalhou. A população negra morre trabalhando, sem contemplar. O trabalho é importante, mas saber dosar, parar e desfrutar é importante também. 

Deivison Nkosi –  Saúde e bem estar: Isso é uma questão bem importante, porque saúde não é a ausência de doença. Saúde é bem estar psíquico, físico, emocional, mas é também a possibilidade de intervir nas políticas públicas. É a possibilidade de se ver representado nos espaços de poder. É a possibilidade de concretizar projetos de vida. E vivemos em uma sociedade que impede isso a todo tempo. Seja pela classe, pela raça ou pelo gênero. E isso coloca um desafio logo de cara. A saúde da população negra é completamente atravessada pelo racismo no Brasil. O racismo representa uma barreira enorme para uma vivência plena para a qualidade de vida e para o acesso à saúde. Vários dados mostram que a população negra tem menor acesso à saúde e,  ao mesmo tempo,  é mais acometida por uma série de doenças. Então, o racismo representa uma barreira para a saúde da população negra.

 

COMBATE AO RACISMO

Alexandre da Silva –  Tenho feito um trabalho trazendo a discussão do envelhecimento para dentro da perspectiva racial. A questão é sobre como o racismo tem impedido o envelhecimento da população negra. Por exemplo, quando se joga para a frente o tempo exigido para aposentadoria, essa é uma forma de dizer “o negro não”. O Brasil falhou no compromisso com o envelhecimento dessa parcela da população. 

Deivison Nkosi –  Sou um militante do movimento negro,  intelectual orgânico do movimento negro.  90% da minha produção teórica é voltada para o combate ao racismo. Mas também, quase 100% da minha atuação política é voltada ao combate ao racismo.  Estou engajado aos movimentos sociais como um todo. Sou uma das pessoas que dedicam a vida ao combate ao racismo. Isso é pesado em alguns momentos, porque a vida não é só combater. A gente precisa amar, desejar, sonhar, brincar, descansar e muitas vezes a atuação no movimento não dá descanso.

 

IDENTIDADE E MASCULINIDADE NEGRA

Alexandre da Silva – Eu acho que o desafio maior seja a desconstrução do macho, do forte,  que acaba sendo algo que gera muito sofrimento para o homem negro.  Porque as violências acontecem de diversas formas.  Isso limita também as outras expressões de masculinidades. Então, é importante pensarmos que masculinidade negra fala também de diversos gêneros, de diversas possibilidades, trocas de afeto, novas construções. Passa por pensarmos uma paternidade mais presente,  que muitas vezes é confrontada com o imaginário da população de que o homem se relaciona com várias mulheres e não consegue ter uma. Não estou pregando para que voltemos a um modelo judaico cristão. Não. Cada um pode escolher a forma que lhe convém para viver. Mas que a gente possa expandir essa identidade e masculinidades negras. E hoje a gente percebe um movimento grande, forte,  responsável e afetivo de diversos sujeitos, pessoas negras que estão trazendo essas identidades e discutindo essas masculinidades. E isso tem sido um abraço coletivo. Uma forma de todos  nós nos sentirmos pertencentes a esse mundo que sempre foi nosso. 

Deivison Nkosi –  Sobre Identidade e masculinidade é bom separar, porque são duas questões diferentes e que se relacionam. Antes de existir uma Identidade negra havia uma Identidade branca.  O que obriga o negro a afirmar a sua negritude é o fato de ele sofrer racismo. E o racismo se baseia em um identitarismo branco, identitarismo que vê o branco como única expressão de humanidade, beleza, bondade e verdade. O negro, quando aparece, aparece como animal, selvagem, violento, agressivo. Então, é o próprio racismo que cria a necessidade da afirmação da identidade negra. Também  é verdade que uma pessoa negra não é só negra. Ela é um monte de outras coisas. É o racismo que reduz o negro ao negro. Mas o negro é homem, é mulher, é hétero,  é gay,  é bi, é trans, é cis, é trabalhador. Existem várias identidades que perpassam a nossa existência. E mesmo assim a gente não se reduz a elas. Há momentos em que somos pai, somos filhos, somos profissionais de tal profissão, tem momentos que somos moradores de tal bairro.  As identidades não são fixas. Elas estão em diálogo a depender do contexto. O desafio é pensar estas dinâmicas complexas da identidade. Pensar inclusive que um negro não é só um negro. Acima de tudo ele é um ser humano. E nem tudo que um negro vive está ligado à negritude. O negro sofre, o negro ama, o negro tem sonhos, desejos, dores que estão na dimensão humana e ele partilha com outros humanos a expressão dessa experiência. E ainda que haja o racismo e que ele atravesse a vida do negro, o negro não se reduz ao negro. Cada pessoa tem seu próprio jeito de viver a vida. 

Quando pensamos as masculinidades negras, temos que pensar que o machismo privilegia os homens em detrimento das mulheres. Também o racismo  privilegia o branco em detrimento do negro. E isso coloca uma questão para homens e mulheres negras.  A Grada Kilomba (escritora portuguesa)  fala que a mulher negra é o outro do outro. Porque embora ela seja mulher, no feminismo ela deixa de ter a sua experiência considerada. Ela vira um outro em relação à mulher branca. Mas também nos espaços do movimento negro muitas vezes as mulheres negras têm suas pautas invisibilizadas. Então, se a mulher negra é o outro do outro, o que dizer do homem negro?

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