Projetos voltados para a ciência de dados da saúde da população negra, tecnologia da informação e design apontam novos futuros nas carreiras profissionais de lideranças negras
Por Júlia de Miranda*
Pensar na modernidade dos tempos atuais envolve refletir e planejar um futuro cada vez mais conectado, onde as diversas tecnologias nos levam para um mundo novo. Afrofuturismo é uma forma de imaginar o futuro em que nós, pessoas negras, existimos como criadores numa sociedade marcada pelo intenso desenvolvimento tecnológico, pela cultura e estética africana sem esquecer a conexão com a nossa ancestralidade. Futuro e tecnologia são ambientes construídos estrategicamente na caminhada política coletiva no presente, e pretos e pretas são agora os protagonistas de suas próprias narrativas. Escrevemos história no passado, presente e no afrofuturo.
As mulheres negras da Ciência e Tecnologia foram contempladas na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial, em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. O apoio foi para os projetos: “Black Data – Uma preta na ciência de dados”, de Jéssica dos Remédios (RJ); “Inspirar e atrair mais mulheres negras na área de Design e Tecnologia a partir da minha liderança”, da Taís Nascimento (PE); “Pretas Tech: Mais Mulheres Negras na Tecnologia”, de Bárbara Aguilar (MG); e “BotDandara”, da Vitória da Silva (SC).
Adaptações devido a pandemia
O projeto da designer Taís Nascimento, que já possui quase 20 anos de carreira em Tecnologia da Informação, precisava de uma “mão amiga” para sair do papel. E foi justamente isso que o Fundo Baobá proporcionou: recurso e apoio para planejar de forma consistente e investir em seu desenvolvimento profissional e acadêmico. Taís teve o intuito de fortalecimento pessoal para se tornar mais competente em formar e empoderar outras mulheres negras na área em que atua, a UX Design, em tradução literal “design de experiência do usuário”. Área responsável para que usuários tenham a melhor experiência de uso.
“Nesta época, já havia um grupo articulado e apoiado por mim, de mulheres negras, em transição de carreira para área de UX Design e era com esse grupo que eu pretendia promover ações educacionais”, recorda a designer. Porém os planos foram prejudicados pela pandemia, e pelos poucos recursos tecnológicos da maioria das integrantes do grupo. “Outro objetivo prejudicado pela pandemia foi a conquista da proficiência em inglês. Boa parte dos recursos recebidos seria utilizada para realizar um intercâmbio profissional, a partir de cursos na língua e na área de Design e Tecnologia fora do país”, comenta.
Bárbara Aguilar, também da área de design, contou que a KilomboTech nasceu em 2019, de um encontro com a historiadora e cientista de dados Allana Cardoso, após vivenciarem inúmeras situações de apagamento e racismo nos espaços do mercado de Tecnologia da Informação (TI). Optando por navegar em outros mares profissionais, ambas estavam sem referências negras e sentindo na pele a baixa representatividade nas empresas de tecnologia. “A pandemia infelizmente nos fez adiar e recalcular toda a rota do projeto, mudamos o foco principal das aulas e treinamentos presenciais e focamos no fortalecimento de nossa rede e comunidade online com outras mulheres negras”, analisa a participante. Ela seguiu construindo uma forte e engajada rede profissional e tem sido reconhecida por outras empresas e comunidades de tecnologia; agora também realizando palestras, aulas e mentorias individuais.
Jéssica dos Remédios, pesquisadora de políticas públicas do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (IEPS) também estava num momento de querer visualizar novos horizontes quando foi contemplada com o Programa. “Eu já tinha um desejo que era me voltar para a ciência de dados, um mercado que estava em ascensão. Diante disso, eu escolhi fazer uma especialização em data science e informática para a saúde no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, e direcionei o meu recurso para isso”, recorda Jéssica. Tudo que foi vivido fortaleceu o processo de transição de carreira e hoje ela trabalha com saúde pública voltada para análise de dados e saúde da população negra, ambiente que, no passado, ela tinha dificuldade de encontrar informações de qualidade.
A CEO no LAB the Creator, Vitória da Silva, ambicionou a ideia de ter uma plataforma onde pudesse pensar no afrofuturismo, imaginar o futuro de forma afrocentrada e ver pessoas negras criando através das suas próprias perspectivas. A sua meta era construir projetos inovadores a partir de tecnologias emergentes, todavia ela não encontrava esse lugar em Florianópolis (SC). “Uma das principais coisas que eu aprendi com as ferramentas que o Fundo Baobá forneceu para mim durante esse período, foi pensar em mim e como eu poderia me desenvolver, e devolver isso, para o coletivo”. Vitória conta que foi um desafio pensar em si como uma referência, por questões de autoestima, autocuidado e de desenvolvimento pessoal. “Isso foi um exercício difícil porque eu estava muito acostumada a estar e ser para os outros e pouco voltava o olhar para mim”, analisa.
Mulheres negras no front
A colheita de Taís com a vivência proporcionada pelo Fundo Baobá foi de êxito profissional, acadêmico e financeiro. Ela foi promovida e passou de uma profissional de nível pleno para consultora em UX Design. Além disso, tornou- se líder técnica, professora, palestrante e mentora nesse curto período de tempo. A execução do projeto ficou prejudicada no contexto trazido pela pandemia, porém ao mesmo tempo Taís salienta que foi essencial atravessar essa turbulência mundial tão crítica estando conectada a tantas mulheres potentes que foram trazidas pelo Programa. “Entendo que a estruturação de um plano de carreira aliada à disposição de recursos foi primordial para efetivar tais conquistas. Mesmo nesse contexto, e embora tenha sido necessário reconfigurar o meu trabalho para aquela realidade de isolamento social, vejo que os resultados foram satisfatoriamente alcançados”, avalia a designer.
Para Bárbara os próximos passos estão focados na estruturação, formalização da Kilombo Tech como uma EdTech/TechCommunity (startup tecnológica) e ganhar escala para impactar outras mulheres em diversas regiões, e não apenas localmente. Ela descreve que a sua experiência com o Fundo “foi espetacular” e que conseguiu investir em seu crescimento profissional. Atualmente se prepara para alavancar a carreira e priorizar ainda mais o desenvolvimento da Kilombo Tech. “Meus objetivos foram alcançados com sucesso, mesmo com os ajustes na pandemia. Conquistei reconhecimentos e promoções no meu trabalho e também houve a visibilidade da Kilombo Tech dentre as comunidades de tecnologia”, comemora Bárbara.
Quando planeja o futuro, Vitória diz estar buscando articular parcerias em novas tecnologias emergentes para poder alçar voos em 2022. Com o Fundo Baobá ela alcançou estabilidade maior na carreira e investiu em hardwares e estrutura para home office, que ajudou a enfrentar as mudanças no mundo em situação pandêmica.
Já Jéssica analisa que o que mais a marcou no processo foi abrir espaço para que as pessoas consigam falar da saúde da população negra e tenham informação de qualidade para poder discorrer com profundidade sobre o tema. “O que ficou de legado foi trabalhar com ciência de dados e estar com outras mulheres negras potentes do Brasil inteiro. Ter construído junto com elas um coletivo que chama Negras que Movem (virou até uma página nas redes sociais)”, destaca. Ela ainda quer conseguir financiamento para um projeto que foque na qualificação de registros, principalmente no quesito raça/cor, e todas as informações relacionadas aos diversos agravos de saúde da população negra.
*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.