Dança ancestral: ferramenta de cura e conexão para o corpo negro

Leandra Silva e Juliana Jardel apostam na dança como ferramenta de ascensão da potência negra e comentam sobre seus projetos apoiados pelo Fundo Baobá

Por Júlia de Miranda*

 

Pensar a dança como ferramenta de cura não é algo novo. Movimentar e ocupar o próprio corpo conscientemente, compreendendo que é da natureza humana dançar, faz parte do paradigma civilizatório que o continente africano reverbera ainda hoje: os africanos estão sempre dançando em seus rituais e cerimônias. A escritora estadunidense Alice Walker foi cirúrgica quando afirmou que “tempos difíceis exigem uma dança furiosa”, e que ela é crucial na manutenção do equilíbrio. Acordar o corpo adormecido e reaprender os passos no ritmo frenético dos novos tempos requer um olhar interior atento para perceber que a força de uma coreografia solo (o processo do autoconhecimento) tem poder, e que quando esses dançarinos fortalecidos se juntam (a potência do coletivo), as mudanças acontecem. 

A dança ancestral foi contemplada na 1ª turma do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco, uma ação do Fundo Baobá para Equidade Racial em parceria com a Fundação Kellogg, o Instituto Ibirapitanga, a Fundação Ford e a Open Society Foundations. Através dos projetos Movimentos Atlânticos, da bailarina, professora de dança e doutoranda em Antropologia Social na Universidade Federal de Goiás (UFG), Juliana Jardel; e VERVE- DÉJÀ VU AFROTURISTA 1º ATO- ANCESTRALIDADE HIGH TECH, proposta da também bailarina, professora e jornalista Leandra Silva, ambas mulheres de Axé.

Juliana Jardel

 

Leandra Silva

 

Leandra relata que fazer parte do Programa foi uma das melhores coisas que poderia ter acontecido, e foi a primeira vez que ela vivenciou esse nível de investimento profissional. Ela acredita que a iniciativa do Baobá, em querer formar lideranças negras, vai na contramão do que o Brasil está acostumado. “Essa bolsa me deu um chão e essa é uma das coisas mais revolucionárias que eu vejo na proposta do Baobá, que é o investimento financeiro direto e real em mulheres negras; aí eu tive a dimensão do quanto eu posso chegar simplesmente tendo um investimento mínimo”, relata a coreógrafa.

A paulistana dança e atua como professora há 20 anos e reconhece ali um lugar de cura onde a partir de tecnologias ancestrais consegue ancorar processos criativos que possibilitam o crescimento de sua autoestima. Leandra já passou por algumas importantes escolas de dança, por isso sabe que essa arte não é tão acessível e os lugares de aprendizado podem ser torturantes para pessoas negras. Passar por esses lugares e manter autoestima, criatividade, brilho e não desistir, é um grande desafio. “O mundo branco da dança é bastante complicado para a autoconfiança e saúde mental; e foi justamente dessas experiências de alegria, cura e também de discriminação dentro dos espaços brancos de aprendizado que eu fui forjando a minha experiência como dançarina”.

O projeto foi pensado para que Leandra pudesse ter as devidas condições financeiras, e conseguisse pesquisar e se fortalecer como coreógrafa e líder da companhia Verve de Arte Negra. O ‘Déjà vú Afrofuturista Ancestralidade High-Tech’ é o primeiro espetáculo coreografado por ela e discorre sobre a guerra do Orí, o conflito para ser dona da própria cabeça. Ele se chama Déjà vú porque carrega a ideia de que nós não estamos inventando a roda, e que na cultura negra a gente passa pelo processo de recriação, cocriação e inovação devido ao tempo de civilização e história. 

“No primeiro espetáculo, todas as pessoas [negras] que estavam no palco relataram alguma experiência de ouvirem que elas não poderiam dançar seja pelo corpo inadequado, a cor, o lugar, a idade e todas essas coisas que no Brasil são colocadas na hora de você ter preparo para se tornar um artista. Nenhum corpo é impedido do palco e da experiência com a dança negra contemporânea, e nem por isso ela deixa de ser criteriosa”, reitera Leandra. 

A pandemia da Covid-19 surgiu no auge do lançamento do espetáculo, e com o projeto do Fundo Baobá aprovado o foco se voltou para buscar os recursos financeiros que possibilitassem a permanência da equipe virtualmente. Foram grandes os desafios e as mudanças na rota possibilitaram novas narrativas: por envolver muitas pessoas, ‘Déjà vú’ saiu de cena e surgiu a ideia de produzir o Festival FERVE – projeto idealizado por Edvan Mota, com a sua companhia. O festival aconteceu virtualmente em agosto de 2021, com apoio da  Lei Aldir Blanc, e durou 6 dias, trazendo o tambor como centro em variadas temáticas, contando com uma gama de artistas de distintas gerações. Dentro do festival, Leandra criou  a dança solo ‘Firmamento’ que é o trânsito entre o tradicional e o contemporâneo. Mesmo tendo somente a artista nos holofotes, a produção envolveu uma equipe técnica de 20 pessoas. 

O Fundo Baobá possibilitou para a dançarina uma estrutura pessoal que permitiu a dedicação dela em outros projetos que somaram na melhoria da Cia de Dança. A realização do festival é fruto deste investimento. 

“O desenvolvimento do projeto se deu com muitas transformações e altos e baixos. Tive assessoria de um coach do Baobá, oficinas, reflexões e muitas trocas com outras mulheres negras agraciadas pelo Fundo.  Foi bastante inspirador estar com essas mulheres de tanta criatividade e coragem. Mulheres gigantes de distintas trajetórias”, recorda Leandra. A dançarina conquistou, além de formação e conhecimento, a aprovação em outros editais. O dinheiro captado não foi para o próprio benefício, todavia trouxe paz, alegria e trabalho com todos da sua comunidade de dança. 

Sobre o que está por vir, Leandra costuma dizer que o hoje é um futuro que foi sonhado pelos seus ancestrais. Celebra com orgulho a conquista de ser a primeira mulher da família que ocupou a cadeira numa universidade (fez parte da primeira turma com cotas raciais na Universidade Federal da Bahia – UFBA). “Eu entendi que se eu esperasse do mundo o devido papel e o devido lugar, eu nunca estaria no palco da forma como a minha potência exige e merece. Eu coreografo porque escolhi trilhar um futuro onde eu tenha voz, poder, autonojmia e autoridade para escolher sobre em que corpo e em que pele está à luz”. 

 

Dançando com as águas da diáspora africana 

Ser um corpo negro no mundo, como sugere a cantora Luedji Luna, significa ter cor e corte. É carregar as dores da diáspora africana no Brasil que ainda não reconhece mulheres e homens negras e negros como valiosos protagonistas no desenvolvimento social, econômico, cultural e intelectual da nossa história. 

O projeto Movimentos Atlânticos de Juliana Jardel, já existia e é a metodologia em dança que ela desenvolve há alguns anos. O nome é inspirado no documentário Orí, da cineasta e socióloga Raquel Gerber, que tem a intelectual Beatriz Nascimento como protagonista. Após perceber que as alunos negros chegavam à sala de aula rígidos e envergonhados do próprio corpo, mesmo os que já tinham consciência racial e trabalhavam a valorização da cultura negra.  Quando iam para a prática desse corpo coletivo e individual essas pessoas eram muito travadas. Juliana decidiu trabalhar com esses corpos no movimento da dança, algo semelhante à fluidez de um rio na pulsação da vida. 

A ancestralidade é fator marcante em alguns pontos específicos do método que relembram a infância da dançarina na fazenda observando o ato de pilar realizado pela avó, e também a sua proximidade com o candomblé. Quando saiu o edital do Fundo Baobá, Juliana vislumbrou a possibilidade de utilizar o recurso financeiro e ainda estabelecer conexões com outras pessoas negras, potencializando o seu projeto em Goiânia, cidade onde vive. 

“O racismo se dá diretamente no corpo, e após observar os meus alunos eu percebi que aqueles corpos ainda tinham questões para serem resolvidas. Do entendimento que esse corpo é diariamente atacado, e ele funciona como um receptáculo que guarda informações, eu procurei no projeto cuidar dele evidenciando que ali é o primeiro alvo a ser violentado nessa estrutura racista. O corpo coletivo e individual é um lugar de morada, Beatriz Nascimento dizia que o negro precisa entender no corpo que ele não é mais um cativo”, reflete a dançarina.

Pensar a libertação do próprio corpo, entendendo-o como potência, fez com que Juliana encarasse uma dança turbulenta. Ela foi desligada do mestrado em dança durante o processo de desenvolvimento do projeto e pôde contar com a assessoria jurídica e rede de apoio do Baobá para reverter a situação. Concluiu o mestrado em Performance Culturais e engatou na sequência o doutorado. 

O Fundo ainda possibilitou o investimento em livros, cursos e materiais para as aulas no grupo Corpo Suspeito, montado pela professora. Ela pôde ainda se resguardar no período pandêmico (sem dar aula de forma presencial) e projetar sua carreira. “Pude ampliar a minha rede de conexão com essas mulheres que conheci. Hoje eu me vejo mais conectada, rápida, atenta às mudanças do mercado e com segurança de me lançar. O projeto me ajudou profissionalmente como artista e acadêmica, estou perdendo o medo da escrita”, afirma Juliana. 

Para o futuro, ela pretende seguir no doutorado e continuar ampliando as redes sem perder o contato com a que foi construída através do Baobá. Ser uma colaboradora nos próximos editais do Fundo faz parte de seus planos, além de seguir dançando. E nas palavras de Luedji: sendo a sua própria embarcação e sorte.

E você, já dançou hoje!?

 

*Esta entrevista foi realizada pelo Fundo Baobá, em parceria com a Revista Afirmativa – Coletivo de Mídia Negra.

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