10 Anos do Baobá: Selma Moreira e Fernanda Lopes projetam a próxima década

Por Wagner Prado

Duas mulheres com uma grande missão: ajudar a transformar. Ambas exercem isso para muito além dos cargos que ocupam, porque contribuir na transformação não é um trabalho, é uma missão. Selma Moreira é a diretora executiva. Fernanda Lopes, a diretora de programa. Ambas trabalham para o Fundo Baobá para Equidade Racial. Ambas se alternam na função de arco e flecha do primeiro fundo exclusivo para a promoção da  equidade racial para a população negra no Brasil. Arco e flecha porque têm a função de impulsionar e sair ao ataque certeiro na busca por recursos, pois sem eles as coisas não acontecem. 

O Fundo Baobá para Equidade Racial está completando 10 anos. O que irá acontecer nos próximos dez está sendo plantado pela governança do Fundo e orquestrado por Selma e Fernanda, que estão à frente de uma equipe de 14 pessoas entre colaboradores diretos e indiretos. 

Os desafios têm sido muitos nesses 10 anos de busca pela consolidação do Baobá. A busca vai continuar pelos próximos anos. Os desafios não serão menores. Neste encontro com Selma Moreira e Fernanda Lopes temos a visão de ambas sobre os caminhos traçados para a gestão futura do Fundo Baobá, sua importância no trabalho de busca pela equidade racial e por uma sociedade igualitária no Brasil. 

Selma Moreira (diretora executiva) e Fernanda Lopes (diretora de programa)

Conte como você chegou ao Baobá ou como o Baobá chegou até você?  

Selma Moreira – Eu conheci o Fundo Baobá em função de uma conexão feita pelo Fábio Santiago, atual membro do Conselho Fiscal, no período do processo seletivo para a posição de diretora executiva, cargo que ocupo hoje na organização.

Fernanda Lopes – Cheguei ao Fundo Baobá como consultora. Em 2018 fui responsável pela elaboração do plano estratégico do Programa de Aceleração do Desenvolvimento de Lideranças Femininas Negras: Marielle Franco. Em 2019,  após aprovação do plano estratégico do Programa e após avaliação do Conselho Deliberativo, recebi o convite, aceitei e passei a compor o time. 

 

Que desafios você enxergou à época? 

Selma Moreira – Prioritariamente,  desafios de gestão, com foco em governança interna e externa (pessoas) e administração de finanças. A consequência dos itens anteriores conectarem-se com o desenho de estratégia para constituição do endowment (recurso financeiro). 

Fernanda Lopes – Naquele momento tínhamos desafios de gestão relacionados ao aprimoramento dos processos, fluxos, instrumentos e mecanismos de monitoramento.  Precisávamos aprimorar nossa comunicação, reposicionar nossa marca e fazer do Baobá uma instituição conhecida e reconhecida,  no campo da filantropia por justiça social, como a única a atuar neste ecossistema exclusivamente para apoiar e ampliar oportunidades de desenvolvimento para organizações e lideranças negras. Era necessário reafirmar os editais como o mecanismo mais eficiente para ampliar oportunidades de apoio para organizações, grupos, coletivos e lideranças negras de todo o Brasil.  Também se apresentava como desafio produzir mais e melhores evidências e ampliar nosso diálogo com o campo para subsidiar nossas decisões acerca dos investimentos prioritários.

Esses desafios se concretizaram?

Selma Moreira – Sim. Governança: o Fundo Baobá é benchmarking (referência) no terceiro setor com um robusto corpo de governança. Temos Assembleia Geral, Conselho Deliberativo, Conselho Fiscal, Comitê de Investimentos, Comitê de Ética, Comitê Executivo e Diretora Executiva. Este desenho demonstra um conjunto de mecanismos de compliance (observância) para garantir pesos e contrapesos nas tomadas de decisão, de forma a zelar pelas melhores práticas de governança, cumprindo os princípios de transparência, equidade na  comunicação das informações, prestação de contas e responsabilidade institucional com todos os públicos de relacionamento

Fernanda Lopes –  Trata-se de um processo. E todas as vezes que superamos alguns desafios, passamos a enfrentar novos. Porque a filantropia responsiva se dá desta forma. É preciso muita atenção aos contextos para atuar de modo tempestivo e responsivo. Sempre há algum ponto a ser melhorado. Em 2019, tínhamos dois editais em fase de finalização, 23 projetos no total, todos implementados por organizações formais (com CNPJ). Iniciamos 2020 com 78 projetos sendo implementados por organizações e, pela primeira vez na história do Baobá, também por grupos, coletivos informais e ainda por indivíduos. 2020 foi um ano de muitos aprendizados. Foram seis editais lançados, mais de 470 projetos selecionados, a maioria iniciativas de ações coletivas executadas por indivíduos.  Adotamos o meio eletrônico para receber os projetos, iniciamos o processo de gestão de dados e produção de informações para subsidiar a tomada de decisões, fomos revisando os fluxos, definindo políticas, processos, procedimentos. Criamos diferentes espaços de diálogo com o campo e outros atores estratégicos e investimos em comunicação.  Eu diria que o mais importante ganho, até agora, foi tornar nítido que a forma de o Baobá atuar como grantmaker (concedente)  é diferenciada. A natureza do Baobá não permite ser visto, ou se ver, como um ator que capta e repassa recursos. Nosso modo de operar precisa deixar nítido que, para organizações e lideranças negras vivenciarem a transformação social justa, sustentável e sistêmica, os recursos financeiros e orçamentários são extremamente necessários, mas não são suficientes. É preciso desenvolver competências, habilidades, capacidades. 

Quais desafios ainda estão por se concretizar? 

Selma Moreira –  Expandir e aprofundar o diálogo com toda sociedade brasileira; programa de doação individual recorrente; aprimorar a  comunicação estratégica,  potente e diversa nas redes sociais e outras mídias;  encontro de organizações e lideranças apoiadas pelo Fundo Baobá no período dos últimos 10 anos; influência no setor nacional e internacional acerca do contexto de relações raciais no Brasil. 

Fernanda Lopes – Neste momento, outubro de 2021,  temos dois editais em fase de finalização, quatro editais em curso e dois para serem lançados. Os aprendizados estão sendo convertidos em medidas corretivas. Estamos avançando em análises de dados e produção de informações para evidenciar os valores agregados pelo Baobá no campo. Sabemos que a pandemia, apesar de toda a sua crueldade, gerou alguns efeitos positivos. Em um único edital, lideranças femininas negras apoiadas por 18 meses realizaram ações que alcançaram mais de meio milhão de pessoas. Isso é semeadura. Há muitos solos férteis e, com certeza, muitas sementes foram fertilizadas em todo o país, na zona rural ou urbana; nas periferias ou nos centros. Nas instituições públicas governamentais ou privadas; nas comunidades ou nas universidades. E, embora eu tenha dado um exemplo quantitativo, ele não é suficiente. Para fazer filantropia para justiça social, para promover equidade racial por meio de ações filantrópicas, é preciso ir além. Relatar esforços, narrar pequenas ou grandes mudanças, mobilizar e engajar mais pessoas e instituições. Estes seguem sendo desafios cotidianamente experimentados por nós.  

Como você avalia os caminhos percorridos pelo Baobá nestes 10 anos? 

Selma Moreira – O caminho é de fortalecimento, amadurecimento no diálogo com o campo das organizações e lideranças negras.  Aprimoramos os diálogos com representantes de organizações que investem em ações sociais via Fundações, Institutos e Empresas. Estamos promovendo editais em todo território nacional e esses editais são estratégicos. Investimos na formação de equipe interna e parceiros estratégicos para a operação.  Até o momento temos números bem interessantes, que comprovam nosso crescimento, abrangência e influência nesses 10 anos de atividades: R$ 14 milhões investidos; 21 parcerias conquistadas; 16 editais realizados; 553 iniciativas individuais apoiadas e 279 organizações apoiadas. 

 Fernanda Lopes – Cheguei há pouco no Baobá,  mas conheço a instituição e sua missão desde o início. Muitas das pessoas que participaram de sua criação foram de suma importância para minha formação como pessoa, militante e profissional. Estamos crescendo e nos consolidando. Estamos nos aproximando, a meu ver, daquilo que era a proposta inicial, quando ainda não estava definido o formato, o modo de operar e de ser governado.  Não se trata apenas de ampliar o volume captado, o volume investido no campo. Trata-se do modo como nos apresentamos e como somos vistos pela sociedade. O modo como operamos, a forma como escutamos, como realizamos nossos ajustes de rota, como compartilhamos nossos aprendizados, como influenciamos,  como transformamos e nos deixamos transformar. Tudo isso tem relação direta com os 10 anos de atuação do Baobá como grantmaker (concedente de apoios financeiros).

O grande gargalo para o Baobá é a captação de recursos?  

Selma Moreira – Captação para o endowment (fundo patrimonial) é um gargalo nacional e internacional. 

Fernanda Lopes – Os impactos do racismo são vivenciados em todas as dimensões do desenvolvimento – individual, social, econômico, político, cultural e ambiental. O Baobá se propõe a atuar como grantmaker (concedente),  apoiando iniciativas negras que respondam a todas estas dimensões.  A captação de recursos é a via para garantir que estes apoios ocorram. Contudo, sabemos que,  para que a ação filantrópica do Baobá seja sustentável, ela não pode ser apenas para ações programáticas. Precisamos captar para o endowment (fundo patrimonial). Os recursos captados para o endowment nos permitem autonomia de investimento, de acordo com necessidades e expectativas advindas do campo. Por exemplo, no auge da pandemia todos os recursos captados tinham destino certo. A liberdade oferecida,  tanto para organizações quanto para lideranças, em nosso primeiro edital de apoio emergencial no contexto da pandemia, só foi possível porque utilizamos recursos oriundos dos rendimentos do fundo patrimonial. Ou seja,  recursos próprios do Baobá. Com isso,  pudemos receber propostas com demandas por ações e insumos que melhor respondessem às necessidades e expectativas das bases. Não nos vimos motivados a indicar o que poderia constar ou o que priorizar. Era livre. As comunidades, as organizações, as lideranças decidiam o que e como fazer naquele momento. Ter recursos captados para o endowment, além de garantir autonomia nos investimentos programáticos  permite tempestividade e sustentabilidade em nossa ação de grantmaker (concedente).  

Financiadores do exterior têm uma visão mais apurada socialmente sobre o que venha a ser o trabalho de filantropia para equidade racial? 

Selma Moreira – A cultura de doação está mais consolidada no exterior (Estados Unidos e Europa), no que tange a diversos temas. Mas a equidade racial ainda é incipiente. De todo modo, há  mais abertura para construção de soluções perenes, assim como o endowment.

Fernanda Lopes – No Brasil, a negação do racismo e de seus efeitos nas condições de vida e saúde e nas oportunidades efetivamente disponíveis para as pessoas negras, em diferentes setores, impede o reconhecimento estratégico da filantropia para a equidade racial como instrumento para o alcance do desenvolvimento com equidade no país e para consolidação da democracia. No exterior, ainda que haja uma suposta maior abertura, as instituições e pessoas desconhecem as iniquidades raciais que existem no Brasil. Logo, há uma certa dificuldade em reconhecer a importância estratégica da filantropia para equidade racial entre aqueles que doam.    

Qual a grande satisfação em executar o trabalho feito pelo Fundo Baobá? 

Selma Moreira – O Fundo Baobá é uma organização essencial para promoção de uma sociedade mais justa e equânime. Fazer parte das estratégias de mudança e transformação, com as lentes e ações de liderança desta organização, é um desafio ímpar e uma alegria imensa em cada passo dado por um mundo melhor.

Fernanda Lopes – O Baobá é uma instituição que incide no ecossistema de filantropia para garantir que mais recursos, de diferentes fontes, sejam canalizados para o reconhecimento e o desenvolvimento da população negra como sujeito de direito e agente de sua própria história e destino. Uma instituição orientada pelas lentes da justiça racial, cuja missão e propósito estão voltados para promover mudanças estruturais, para intervir na raiz das desigualdades sociorraciais que é o racismo.  Mas para isso tudo é preciso inovar e aprimorar todos os dias, e aqui não falamos de tecnologia, falamos de sociologia, antropologia, política, relações institucionais, relações interpessoais.  Porque esta é a base para a mudança que vem do e para o coletivo. Isso é algo que, particularmente, me anima. É um lugar onde posso colocar à disposição tudo o que aprendi nos diferentes espaços por onde passei e, sobretudo, que me dá oportunidade de aprender, trocar, me revisitar, reorientar, reordenar, cocriar. Não deixa de ser um espaço de militância. Você pode ter uma bagagem técnica e muitas articulações, conexões, mas aqui só se dispõe a enfrentar toda sorte de desafios quem está disposto a defender a causa.

Formação de lideranças femininas, Primeira Infância, Recuperação Econômica, Direito à Cidade, Auxílio a Populações em Situação de Vulnerabilidade, Apoio à População Quilombola, Acesso a Cursos Superiores em Universidades Públicas, Dignidade e Justiça. Falta algum segmento em que o Baobá ainda não atuou com seus editais? 

Selma Moreira – Não consegui identificar. Mapeamos nossas estratégias a fim de sermos responsivos para todas as áreas de atuação da população negra. De todo modo, vale ressaltar que ainda há muito aprimoramento no que tange à construção de estratégias que permitam alianças estruturantes e mudanças sistêmicas na sociedade, envolvendo os diversos atores do sistema.

Fernanda Lopes – Cada área que priorizamos tem um leque de possibilidades. Ter diferentes editais não significa que estamos contemplando tudo o que pode estar contido dentro de uma área.  Por exemplo, investir em equidade racial na educação exige que atuemos na educação básica (educação infantil, ensino fundamental e médio), no ensino superior, na pós-graduação e na formação de quadros. Tem iniciativas que podem focar a gestão, o corpo docente, o corpo discente; podem acontecer em unidades escolares, instituições de ensino, pesquisa e extensão  ou outros espaços onde as ações educativas ocorrem.  Se focamos na comunicação podemos pensar na mídia negra, na educomunicação, no fortalecimento da pauta e ampliação da participação de profissionais negros nos veículos tradicionais e nas mídias independentes nao negras. Naquilo que se faz em diferentes plataformas e formatos.  Arte e Cultura é um nicho no qual ainda não conseguimos  investir e sabemos que a representação social do negro e o imaginário coletivo se transformam por meio do estímulo ao conjunto de sentidos, tão bem explorado por pessoas, organizações, grupos e coletivos que atuam nessa área e também navegam pela comunicação, arte e cultura, as mais eficientes estratégias de buscar o que, por ventura, pode-se ter esquecido. A memória que nos orienta a ver o hoje, construir um futuro diferente, pautado pelas conquistas, pelos erros e acertos do passado. Isto sem contar a ciência e a tecnologia.  Enfim, temos muito a fomentar. E o campo cada dia tem deixado isso mais nítido. A transformação e o desenvolvimento para a população negra têm diferentes matizes e matrizes.

Como instituição, o Baobá vem se internacionalizando. Qual a importância disso? 

Selma Moreira – Apoios internacionais com foco nos investimentos programáticos e na construção do fundo patrimonial são de importância estratégica fundamental. Essa internacionalização do Fundo Baobá, que vem já da sua fundação, é uma forma de levar para os países do exterior um maior conhecimento sobre o Brasil. E isso é uma via de mão dupla, pois ter conhecimento envolve o saber de fatos negativos e de fatos positivos também. 

Fernanda Lopes – Para além de ampliar a sua capacidade de mobilização de recursos, estabelecimento de parcerias estratégicas e, por consequência, contribuir para mudanças sustentáveis no processo de desenvolvimento integral da população negra, acredito que a internacionalização do Baobá contribua para ampliar a discussão sobre equidade racial no sul global,  dentro e fora do ecossistema filantrópico.

O Baobá já alcançou o propósito para o qual foi criado? 

Selma Moreira – Avançamos muito em 10 anos, mas ainda há muito a ser feito.  Infelizmente,  o contexto de desigualdade e racismo recrudesceu com a pandemia. As soluções precisam ser cada vez mais sob medida para as diferentes demandas, tempos e especificidades dos públicos apoiados.

Fernanda Lopes – O Baobá ainda tem muito a realizar. O Baobá pode contribuir para transformar o imaginário coletivo. Pode contribuir influenciando a tomada de decisão das instituições públicas, privadas e do terceiro setor e,  sobretudo, fortalecer a sociedade civil organizada negra, o movimento social negro, o movimento de mulheres negras, o movimento LGBTQIA+, o movimento de pessoas negras com deficiência, o movimento quilombola na busca por equidade racial  e justiça social.

Que projeção você faz para os próximos 10 anos do Baobá?

Selma Moreira – Dez anos de inúmeros desafios. Desejo que o Baobá se consolide como referência e possa expandir seu impacto a partir da execução da sua missão em apoio a organizações e lideranças negras, a fim de contribuir para uma sociedade mais justa. Ainda desejo que tenham mais organizações engajadas em parceria com o Baobá para promoção de ações para e com a população negra em todo Brasil. E, por fim, desejo que tenhamos possibilidade de expandir os diálogos no eixo sul / sul, a fim de trocar, aprimorar e fortalecer alianças estratégicas conectadas com a nossa missão.

Fernanda Lopes – O plano de ação de Durban completa 20 anos neste 2021. Houve avanços,  mas há desafios persistentes. As reparações são parte deste conjunto que, os compromissos assumidos no âmbito da Década de Afrodescendentes ou mesmo da Agenda de Desenvolvimento Sustentável, não contemplam. O Baobá foi criado como um mecanismo capaz de captar recursos e convertê-los em benefícios para a população negra, financeiros e outros. Na vigência do racismo,  a ausência de proteção e garantia de direitos é reiterada e esta ausência afeta pessoas e coletivos. Os efeitos são generalizados. Por isso trago o tema reparações. Quando falamos em reparações estamos falando em políticas afirmativas, em investimentos das mais diversas ordens, em recursos financeiros. Para os próximos 10 anos sonho com o Baobá sendo um ator relevante na cena global de enfrentamento ao racismo e promoção da equidade racial, além de ser  um mecanismo por meio do qual se possa concretizar  ações ou políticas de reparação.

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