O edital destinou apoio financeiro de R$ 100 mil a 12 organizações. O Instituto Negra do Ceará e a Elas Existem, por exemplo, têm implantado fortes ações junto a seus públicos
Por Wagner Prado
Em maio de 2021, o Fundo Baobá para Equidade Racial fez o lançamento do edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça, em parceria com a Google.org. O edital é parte do programa Equidade Racial e Justiça. O Vidas Negras: Dignidade e Justiça constitui-se em uma oportunidade para que organizações negras fortaleçam estratégias de ativismo, resistência e resiliência diante das injustiças raciais recorrentes. Ele é destinado ao apoio a organizações que desenvolvem ações práticas de enfrentamento ao racismo, à violência e às injustiças criminais de perfil racial.
Com o apoio da Google.org o Fundo Baobá pode financiar projetos de 12 (doze) organizações, cada uma recebendo R$ 100 mil. Os projetos dialogam com três grandes temas: a) Enfrentamento à violência racial sistêmica; b) Proteção comunitária e promoção da equidade racial; c) Enfrentamento ao encarceramento em massa entre adultos e jovens negros e redução da idade penal para adolescentes; d) Reparação para vítimas e sobreviventes de injustiças criminais com viés racial.
O investimento programático do Fundo Baobá, ou seja, a destinação de suas doações está voltada para quatro eixos de atuação: 1) Viver com Dignidade; 2) Educação; 3) Desenvolvimento Econômico e 4) Comunicação e Memória. O edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça está sob o eixo Viver com Dignidade, que incentiva ações de promoção da saúde e qualidade de vida; prevenção de doenças e seus agravos; prevenção e atenção às vítimas e pessoas afetadas pela violência racial; enfrentamento ao racismo religioso e proteção de suas vítimas; acesso à terra; acesso à infraestrutura; proteção e defesa dos direitos das comunidades quilombolas em geral.
Aqui, vamos colocar foco em duas organizações que apresentaram projetos dentro do eixo temático c) Enfrentamento ao encarceramento em massa entre adultos e jovens negros e redução da idade penal para adolescentes. As organizações são o INEGRA-CEe a Elas Existem – Mulheres Encarceradas, do Rio de Janeiro, mas que desenvolve seu projeto no estado do Acre. O INEGRA-CE apresentou o projeto Levante Pretas: Resistências Coletivas. Seu objetivo é promover o desinternamento e o desencarceramento, além de estimular propostas de enfrentamento às violências e violações sofridas por pessoas em situação de encarceramento. O projeto tem foco também nos familiares dessas pessoas. Já o Elas Existem – Mulheres Encarceradas trouxe o projeto O Acre Existe: Mulheres Negras Resistem e Se Fortalecem – Pelo Desencarceramento Feminino, que vai atuar na diminuição das desigualdades de raça e gênero dentro do sistema de Justiça Criminal do estado do Acre.
A atuação do INEGRA-CE e da Elas Existem leva a uma reflexão sobre a questão da Necropolítica no Brasil. A Necropolítica, conceito definido pelo filósofo africano nascido em Camarões, Achille Mbembe, no início deste século, evidencia a forma como diferentes governos administram a morte. O conceito é simples e terrível: consiste na promoção de políticas restritivas a determinadas populações no acesso a condições mínimas de sobrevivência; também consiste na criação de áreas, territórios em que a morte é algo autorizado. Isso é como marcar com um símbolo na testa aqueles que devem morrer, quando devem morrer e como devem morrer. A descrição tem alguma similaridade com o que ocorre com as populações em estado de abandono no Brasil? Analise!
Entrevistamos Cícera Maria da Silva, líder do INEGRA-CE, e Caroline Mendes Bispo, da Elas Existem – Mulheres Encarceradas.
Fundo Baobá – O INEGRA-CE trabalha na busca pela igualdade de gênero e etnicorracial. O que vocês têm desenvolvido para chegar a isso?
Cícera Maria da Silva (INEGRA-CE) – Todas as nossas ações, desde nossa fundação, têm como objetivo a construção da igualdade e da equidade de gênero e raça como horizonte. Nesse sentido, temos desenvolvido ações de formação política em gênero, raça, direitos humanos e justiça, bem como apoio a grupos produtivos de mulheres negras, ações educativas em escolas e apoio a comunidades quilombolas. Também participamos de espaços diversos como apoio ao movimento de mulheres negras, associações de mulheres, e lugares que fomentam a criação e monitoramento das políticas públicas, contribuindo com metodologias, instigando e potencializando os debates que impulsionam essas transformações.
Fundo Baobá – Descreva os locais onde vocês têm atuado?
Cícera Maria da Silva (INEGRA-CE) – Atuamos na cidade de Fortaleza, especialmente com as comunidades periféricas, bem como junto a associações de moradores/as, grupos produtivos e comunidades quilombolas de municípios mais próximos.
Temos inserção no Instituto Penal Feminino Auri Moura Costa, na Central de Alternativas Penais, nas Audiências de Custódia, Seminários Acadêmicos e Populares e, atualmente, dentro dos territórios com adolescentes que cumpriram medidas socioeducativas, sobreviventes do sistema prisional, na Frente Estadual pelo Desencarceramento, etc.
Fundo Baobá – O racismo tem sido agente operante quando se fala na condenação e encarceramento do povo negro (homens adultos, mulheres adultas e jovens). Que realidade vocês têm encontrado nesse sentido no Ceará?
Cícera Maria da Silva (INEGRA-CE) – No Ceará, temos uma realidade perversa, que tem como alvo de suspeição a população negra, empobrecida e periférica. Com 95% da população carcerária feminina sendo composta por mulheres negras, o Ceará é um estado encarcerador, além do agravante de que a grande maioria das prisões são provisórias. Vale ressaltar ainda o contexto pandêmico que reduziu as visitas no sistema prisional, o que piora muito as condições materiais e a saúde psicológica da população encarcerada. Embora lutemos por isso, não podemos esperar com otimismo por políticas de segurança pública que assegurem e respeitem os direitos humanos quando o biopoder e a necropolítica são os parâmetros do próprio Estado.
Fundo Baobá – Entre tantos objetivos de vocês junto às populações encarceradas, vocês também levam a cultura. De que forma?
Cícera Maria da Silva (INEGRA-CE) – A cultura para nós é, para além de festividades, uma forma de resistência. É também um meio para levar alegria, entretenimento e conhecimento para nossas irmãs negras encarceradas. Nossas ações com a população encarcerada incluem a presença do Maracatu, batuque, poesias, livros, músicas, cantigas populares, oficina de tranças e turbantes. Ter encerrado um projeto no presídio feminino Auri Moura Costa com a presença do Maracatu Nação Fortaleza, além de inovador, foi muito potente, marcante e emocionante para nós e, sobretudo, para as mulheres encarceradas.
Fundo Baobá – O trabalho não envolve apenas as mulheres apenadas, envolve o entorno delas também (familiares, amigos…). Esse contato é feito como? Parentes e amigos têm abraçado a causa de vocês?
Cícera Maria da Silva (INEGRA-CE) – Para alcançar os familiares realizamos ações/ conversas com eles em dias de visita no sistema prisional e no socioeducativo. Além disso, estabelecemos parceria com o Coletivo Vozes, de mães e familiares do sistema socioeducativo e prisional, o qual reúne e desenvolve ações com os familiares. Os familiares e sobretudo as mães são os porta-vozes de seus entes presos/as. Trazem as denúncias de violências e violações contra os mesmos no cárcere. Então, diante disso sentem a necessidade de aderir à causa e à luta, embora essa tarefa organizativa não seja fácil, haja vista as demandas mais urgentes com seus entes aprisionados, tais como assessoria jurídica, manutenção da saúde psicológica e preocupações com a integridade física e com a própria vida.
Fundo Baobá – Além do Ceará, vocês pretendem atuar em outros estados?
Cícera Maria da Silva (INEGRA-CE) – Por enquanto não, diante dos desafios apresentados à nossa atuação coletiva, nos deixando vulneráveis frente ao sistema de justiça que ameaça, persegue e criminaliza as defensoras de direitos humanos.
Contudo, reconhecemos ser importante firmar parcerias com outras organizações e coletivos que trabalham no enfrentamento ao desencarceramento e desinternamento, para pensar em estratégias seguras e eficazes de atuação coletiva.
Fundo Baobá – Para o Instituto Negra do Ceará, qual a importância de ter sido selecionado pelo edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça?
Cícera Maria da Silva (INEGRA-CE) – Para o Instituto Negra do Ceará, ser selecionado por alguns financiadores, incluindo o Fundo Baobá, além de honroso, soa para nós como reconhecimento de nossa maturidade e competência, o que nos fortalece e nos traz confiança.
O Edital “Vidas Negras: Dignidade e Justiça”, em especial, nos é importante por várias razões, mas sobretudo por proporcionar aos adolescentes/jovens do sistema socioeducativo assistência jurídica e atendimento psicológico, dois campos de grande carência junto a esse público e que lhes traz o sentimento de proteção, segurança e cuidado. Então, para nós isso traz uma grande dimensão simbólica.
Outro aspecto muito relevante desse edital é nos permitir a ampliação do debate com familiares e a sociedade civil sobre o desencarceramento e desinternamento, via realização do seminário estadual e outras ações de caráter mais lúdico. Portanto, algumas coisas não conseguimos mensurar ainda, mas temos a certeza de que o edital é de suma importância para o nosso público e para a construção da dignidade, da justiça e do bem viver que almejamos para o nosso povo preto.
Associação Elas Existem
Fundo Baobá – A Elas Existem já desenvolvia o trabalho no Rio de Janeiro e no Mato Grosso. Efetivamente, os trabalhos no Acre já estão acontecendo?
Caroline Mendes Bispo (Elas Existem) – Nosso trabalho teve início em outubro de 2021, com a minha vinda para o Acre, onde comecei a fazer um mapeamento não só dos trabalhos que poderiam ser efetuados, mas também da equipe que seria contratada para me ajudar nessa empreitada aqui. A Elas Existem continua as atividades no Rio de Janeiro, de forma online em Cuiabá (MT) e iniciou os trâmites também para iniciar as atividades em Porto Alegre. Desde janeiro, efetivamente, a gente está dentro das unidades prisionais aqui no Acre. Tanto em Cruzeiro do Sul como em Tarauacá e aqui em Rio Branco,
Fundo Baobá – Que ações vocês têm desenvolvido lá?
Caroline Mendes Bispo (Elas Existem) – Nós estamos realizando o plantão de orientação, onde uma advogada, uma assistente social e uma estagiária realizam a escuta ativa de todas as presas da unidade de Cruzeiro do Sul e Tarauacá, a fim de fazer uma análise que vai para além do crime e das condições que elas vivem naquele lugar. Através dessa análise a gente pode perceber se o acesso aos direitos para essas mulheres está sendo efetivo e de que maneira nós podemos encaminhar para outros órgãos e instituições. A gente está realizando também as oficinas de empoderamento e fortalecimento para que essas mulheres sejam reintegradas à sociedade após o cumprimento de suas penas. Por fim, estamos fortalecendo as redes que trabalham e discutem a situação das mulheres dentro dos espaços de privação de liberdade, tanto com as mulheres cis e trans nas unidades prisionais quanto com as adolescentes nas unidades socioeducativas, de forma online.
Fundo Baobá – O racismo tem sido agente operante quando se fala na condenação e encarceramento do povo negro (homens e mulheres). Que realidade vocês encontraram no estado do Acre?
Caroline Mendes Bispo (Elas Existem) – Em 2014 foi feito o primeiro levantamento sobre as mulheres presas no Brasil como um todo. Em 2016 foi publicado esse primeiro relatório, que demonstrou que no estado do Acre 100% das mulheres encarceradas eram mulheres negras. Em 2017, no segundo estudo, esse número mostrou que 97% das mulheres encarceradas eram pretas ou pardas. Quando cheguei aqui, o número de mulheres que se autodeclaravam como pardas era extremamente grande. Inclusive mulheres negras/pretas que tinham vergonha de se reconhecerem como negras, tentando colocar o moreninha ou mesmo o parda. Então, se a gente para para tentar entender um pouco a situação racial aqui no estado do Acre, é muito mais o apagamento e a necessidade de discutir sobre isso, bem como trazer de que forma o racismo vem atacando a vida dessas mulheres a ponto de elas não quererem se reconhecer. Esse foi o que nós acabamos encontrando aqui: um apagamento e uma invisibilidade das discussões, onde a maioria das pessoas no estado do Acre são brancas, onde as mulheres negras não se vêm como mulheres negras e as mulheres encarceradas acabem encontrando esse duplo estigma, de serem encarceradas e de serem, majoritariamente, de mulheres negras. Dessa forma, discutir a racialidade aqui nesse lugar tem sido fundamental.
Fundo Baobá – Entre tantos objetivos de vocês junto às mulheres encarceradas, quero destacar um objetivo cultural, que é o de elaborar e distribuir material educativo a ser entregue no ambiente carcerário.
Caroline Mendes Bispo (Elas Existem) – Atualmente, uma das questões mais importantes para a Elas Existem é o acesso a direitos e facilitar o acesso a direitos. Inclusive, facilitar no entendimento das questões. Hoje, nossa comunicação é uma comunicação rápida, é uma comunicação que alcança principalmente o entendimento. Hoje, preparar materiais mostrando que essas mulheres possuem direitos, elas têm deveres também, mas com informações de forma segura, céleres e com linguajar simples faz muita diferença. Ainda não preparamos o material. Fizemos um estudo e faremos outros ao longo do ano. Mas preparar um material com linguagem rápida e acessível faz com que o acesso a direitos fique ainda mais fácil na vida delas.
Fundo Baobá – Além do Rio, Mato Grosso e Acre, vocês pretendem atuar em outros estados?
Caroline Mendes Bispo (Elas Existem) – Sim. Atualmente estamos conversando com o estado do Rio Grande do Sul, para realizar algumas atividades em conjunto com uma organização do próprio território. No estado da Bahia, desde 2016, a gente realiza algumas atividades pontuais e estamos com planos de, no próximo ano, ter uma sede também na cidade de Salvador, fazendo assim cinco pontos do Brasil, como uma forma de demonstrar a importância de ter um olhar diverso sobre as mulheres encarceradas.
Fundo Baobá – Você mudou-se para o Acre. Pessoalmente, como tem sido encarar essa nova realidade? A causa pela qual você trabalha vale a mudança?
Caroline Mendes Bispo (Elas Existem) – Vale muito a mudança. Não se trata de ter desistido de tudo no Rio, pelo contrário: é ter exposto todas as coisas que fizemos no Rio e conseguimos amadurecer num estado que é tão pioneiro. O Acre durante muito tempo lutou para mostrar sua existência. Então, ele vem se construindo. E as construções que são feitas são muitas construções que nós, da capital, já estamos fazendo há algum tempo. Então, estar aqui dialogando com portas tão abertas… Hoje a Elas Existem faz parte do Comitê de Prevenção e Combate à Tortura, tem parceria com o Instituto de Administração Penitenciária, tem feito diálogos com o Ministério Público e a Defensoria Pública. Então, dessa forma, não só as parceria como os diálogos fizeram com que valesse mais a pena ainda todas as atividades que executamos tanto no Rio de Janeiro quanto aqui no Acre.
Fundo Baobá – Para a Elas Existem, qual a importância de ter sido selecionada pelo edital Vidas Negra: Dignidade e Justiça?
Caroline Mendes Bispo (Elas Existem) – Foi muito importante para a gente ter sido selecionada nesse edital, pois ele nos deu a possibilidade de ter vindo para o Acre. A nossa Associação, apesar dos seis anos de existência, sempre se manteve presencialmente no Rio de Janeiro. Então, estar atuando aqui no Acre também faz com que a gente consiga colocar nossa experiência, nosso trabalho de forma prática, para além da teoria, em outros lugares, com outras perspectivas. Então, ter condições financeiras para ter uma equipe no Norte do país, no interior do Norte do país, onde as discussões não são feitas, mas clarear e abrir a visão para o sistema de justiça criminal e das mulheres também no socioeducativo faz toda uma diferença. Ser uma das organizações contempladas mudou gradativamente nossa existência como um todo. Poder estar discutindo que o Acre Existe e Elas Resistem mudou ainda mais.