Filantropia Negra no Brasil: Sociedade Protetora dos Desvalidos recebe doação de R$ 500 mil do Fundo Baobá

Entre as muitas histórias inspiradoras que ilustram a tradição da filantropia negra no Brasil, uma delas merece atenção especial: a fundação da Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), na cidade de Salvador, Bahia, em 16 de setembro de 1832, por Manoel Vitor Serra, um negro africano liberto. A Protetora, como era conhecida,  foi um marco histórico na luta contra a desigualdade e a discriminação racial. Fundada por trabalhadores negros, a organização tinha como objetivo principal fornecer auxílio mútuo e amparo aos mais necessitados. Através de suas ações filantrópicas, a sociedade apoiava pessoas escravizadas a conseguirem sua alforria, bem como dar suporte aos membros que ficassem desempregados. 

Com base nessa vocação de luta pela igualdade de direitos, combate ao racismo em todas as suas formas e progresso da comunidade negra é que o Baobá decidiu  fazer uma doação de R$ 500 mil para a SPD. A pesquisadora social e membra da governança da Sociedade Protetora dos Desvalidos, Ligia Margarida Gomes, relata a importância da doação: “O Baobá, para nós, sempre foi uma grande esperança. Poder estar aqui nessa parceria é um momento muito especial. O Baobá foi criado para atender as demandas que sempre ansiamos e sempre foram reprimidas. Cada vitória que ele alcança é uma vitória nossa. O que o Baobá está ajudando a fortalecer também  nos fortalece”, afirmou Ligia. 

O diretor executivo do Baobá – Fundo para Equidade Racial, Giovanni Harvey, enaltece a importância histórica da SPD dentro do rol das conquistas do povo negro no Brasil, desde o início dos sequestros ocorridos em África, ainda no século 16. “Esta é a primeira vez que o Baobá decide, politicamente,  sem edital, fazer uma doação e faz isso com dinheiro próprio. Dinheiro gerado pelas operações do Baobá, que nos propiciam fazer uma doação expressiva”, disse. A SPD terá toda autonomia no que se refere à gestão do recurso oferecido. 

A relação entre a população negra no Brasil e a filantropia remonta a tempos coloniais, quando as irmandades negras destacaram-se como importantes estruturas organizacionais. Os primeiros registros dessas irmandades datam do século XVII, com uma expansão significativa no século XVIII, época do auge do tráfico escravista no país. Essas organizações foram criadas originalmente na Europa e, posteriormente, se expandiram para as colônias portuguesas, como o Brasil. Eram espaços de resistência e solidariedade diante da hostilidade imposta pelo regime escravocrata. Elas permitiam que os negros ocupassem e definissem formas de atuação social, custeando despesas como funerais, além de promoverem ações para auxílio mútuo e compra de cartas de alforria. A filantropia, quando exercida coletivamente, cria uma força unificadora capaz de impulsionar mudanças significativas na sociedade.

O Brasil, porém, traz um contexto histórico de muita importância no que se refere à formação dessas irmandades e Ligia Margarida Gomes explica o porquê. “A Sociedade Protetora dos Desvalidos é a primeira organização civil negra da América Latina. No Brasil, a primeira instituição de negros foi formada em Salvador, Bahia, e é a SPD. Essa organização foi criada com base no que vocês (dirigindo-se à equipe executiva do Fundo Baobá) estão ajudando a construir e a pensar, que é o resgate de direitos”, afirmou. 

Em suas composições, as irmandades valorizavam a equidade de gênero, contando com a participação ativa de mulheres negras em sua governança. Essas estruturas também tinham uma relação direta com o sagrado, praticando a fé e estimulando a solidariedade entre os membros. E a questão sagrada foi usada com astúcia pelo povo negro. “Quando a Revolta dos Búzios não dá certo por vários fatores,  Manoel Vitor Serra pensou em uma forma de ultrapassar as dificuldades. Os negros, por exemplo, não podiam se reunir. Dois pretos juntos já era considerado revolução. Eram abatidos. Só podiam se reunir em igrejas. E eles precisavam se articular para ultrapassar as dificuldades. Conseguiram isso de várias formas. Daí terem usado o nome de Irmandade, pelo fato de só poderem se reunir nas igrejas”, disse. 

Giovanni Harvey, a partir da linha histórica traçada por Ligia Margarida Gomes, contextualiza a importância da doação feita pelo Baobá – Fundo para Equidade Racial: “A decisão de fazer essa doação diz respeito à história  da Sociedade Protetora dos Desvalidos, que é uma história que fomos privados de conhecer e que está ligada à história do Brasil. Ligada à história do Brasil que se tentou construir e que foi reprimida. Mas um  Brasil que resistiu e não desapareceu”, concluiu. 

Ao longo do século XIX, essas irmandades mudaram a forma de atuação com a interrupção do tráfico de escravos e a abolição oficial da escravatura, mas o objetivo de seu trabalho e sua existência permanece urgente. Todos os indicadores econômicos e sociais comprovam que a população negra ainda precisa das mudanças significativas que podem ser impulsionadas pela filantropia. Por isso, agosto, Mês da Filantropia Negra,  é uma ocasião especial para destacar as contribuições valiosas à sociedade.

A diretora de Programa do Baobá, Fernanda Lopes,  explica a importância histórica da filantropia negra.  “Até hoje negam esses tipos de investimento, porque é conhecendo mais a nossa história, conhecendo melhor o passado é que olhamos melhor o presente e podemos desenhar melhores planos de futuro.  E desenhar melhores planos de futuro coloca o povo da hegemonia em um lugar que eles não desejam estar. Fortalecer a SPD é fortalecer o Baobá”, definiu Fernanda. . 

 

O associativismo, que envolve a união de indivíduos em torno de objetivos comuns, permitiu que a Sociedade Protetora dos Desvalidos consolidasse sua independência para agir de maneira mais eficaz. Por meio dessa organização, foi possível a muitos compartilhar recursos, conhecimentos e experiências, fortalecendo assim a comunidade negra como um todo.

O cooperativismo, por sua vez, trouxe uma abordagem econômica que permitia à comunidade negra superar barreiras e desafios impostos pelo racismo. Ao unirem forças e recursos, os membros da Protetora e outras irmandades que se formaram conseguiram desenvolver projetos conjuntos, como a criação de cooperativas de produção e consumo, visando a autonomia financeira e ao empoderamento econômico da comunidade. Essas iniciativas eram fundamentais não apenas para garantir a sobrevivência, mas também para fortalecer a autoestima e a resiliência negra.

A filantropia negra no Brasil tem raízes históricas profundas nas irmandades negras, que surgiram como espaços de resistência e solidariedade no período escravocrata. Hoje, a desigualdade racial persistente no país destaca a importância de iniciativas como as do Baobá – Fundo para Equidade Racial, que nos quase 12 anos de atuação traçou uma rota de enfrentamento ao racismo e atua na promoção da equidade.  

O Mês da Filantropia Negra nos convida a refletir se é justo que a desigualdade racial ainda conte prioritariamente com a ação coletiva dos próprios negros. A mudança de paradigma depende de avanços promovidos pelos movimentos sociais e exige o engajamento de toda a sociedade para construir um país mais justo. A equidade racial é um requisito essencial para uma democracia plena e um futuro próspero para todos, todas e todes. 

Para contribuir no combate ao racismo, busca da equidade e justiça social, acesse www.baoba.org.br  e faça parte dessa transformação.



Revolta dos Búzios: Um suspiro de esperança em tempos sombrios

Com inspiração nos ideais da Revolução Francesa (1789-1799) e na Revolta de São Domingos, no Haiti (1791-1804), o dia 12 de agosto de 1798 amanheceu de uma maneira diferente para a população baiana. Diversos manuscritos foram espalhados pela cidade convocando a população para uma luta que defendia a proclamação da República, o fim da escravidão, a redução de impostos e outras reivindicações justas aos mais subalternizados perante a sociedade brasileira. Era um momento no qual a população enfrentava uma crise socioeconômica e estava insatisfeita com o controle da Coroa Portuguesa. 

“Animai-vos povo baiense que está para chegar o tempo feliz da nossa Liberdade: o tempo em que todos seremos irmãos, o tempo em que todos seremos iguais. Hoje celebramos o legado de inteligência, resistência, estratégia e coragem na Revolta dos Búzios.” Esses foram os dizeres espalhados pelos muros da cidade de Salvador, gerados pela indignação e desejo de um levante do povo baiense. 

Os integrantes da luta utilizavam um búzio no punho como forma de identificação pelas causas que reivindicavam, algo que tem origem nas raízes africanas – daí a origem do nome do movimento.

Com o apoio das elites locais, negros livres, brancos pobres e mestiços, que exerciam profissões como sapateiro, pedreiro e soldado, desejavam o fim do pacto colonial para aumentar os lucros dos próprios negócios, além de alcançar mais poder econômico e político. O movimento também ganhou força e agregou os segmentos mais pobres da população baiana para defender propostas que realmente os representassem. E assim se consolidou uma das maiores manifestações populares comandadas pelo povo negro, que lutava por democracia, exigia direitos de igualdade de raça e de gênero para todos os brasileiros.

A luta também ficou conhecida como Revolta dos Alfaiates, devido ao grande número desses profissionais que estavam presentes no movimento. O protagonismo foi marcado por homens como João de Deus, Manuel Faustino dos Santos Lira e os soldados Luís Gonzaga das Virgens e Lucas Dantas, mas não só: ele também contou com participação de mulheres negras, como Ana Romana e Domingas Maria do Nascimento, ambas alforriadas.

Nessa época, a população da cidade de Salvador estava em situação de pobreza, depois que a capital do Brasil colônia foi transferida para o Rio de Janeiro, em 1763. Esses eram anos em que o Iluminismo europeu espalhava os ideais de Liberdade, Igualdade e Fraternidade que inspirariam a Revolução Francesa, a Revolta de São Domingo e a independência das colônias ibéricas na América. Foi nesse contexto que se firmou o desejo de fundar na Bahia uma república democrática, onde não houvesse diferenças sociais e todos fossem iguais. Pois como se não bastasse a desigualdade, a discriminação e o racismo institucionalizados pela escravidão, crueldade e violênciaAs penas aos rebeldes não deixam dúvidas sobre isso.

À época, o governador da Bahia, Fernando José de Portugal e Castro,  soube através de denúncias sobre possíveis encontros e providenciou uma ação rápida para prender os revoltosos. Alguns conseguiram fugir e, após um ano e dois meses depois dos acontecimentos, os acusados assumiram a culpa e receberam a pena de morte por enforcamento, seguida por esquartejamento. Luís Gonzaga das Virgens, Lucas Dantas, João de Deus e Manuel Faustino dos Santos Lira tiveram seus corpos expostos em diversos locais da cidade de Salvador para “servir de exemplo”. Até os dias de hoje não se sabe do paradeiro das mulheres Ana Romana e Domingas Maria do Nascimento

Apesar de seu terrível desfecho, a Revolta dos Búzios influenciou outros movimentos, como a própria Independência do Brasil (1822), além da Revolta dos Malês (1835). E assim segue até hoje, inspirando a população negra a estar sempre a postos para as lutas por uma vida digna, justa, igualitária e livre.

 Pois apesar de terem passado 225 anos desde então, a violência ainda atinge principalmente os corpos negros. A falta de acesso à educação e saúde pública ainda afeta mais as pessoas negras. O mercado de trabalho formal ainda é menos acessível ao trabalhador negro. A fome, a violência racial e de gênero ainda atingem mais os descendentes das populações escravizadas do Brasil colônia. Nossa população segue lutando e reivindicando direitos e os “revoltosos” da Bahia seguem como um exemplo a ser lembrado e honrado.

Iniciativa Negra lança pesquisa inédita sobre reparação e injustiças criminais no Brasil.

Em junho de 2023, foi o lançamento do relatório “Iniciativa Negra por Direitos, Reparação e Justiça” que colocou o racismo no centro do debate para a construção do conceito de reparação, pauta histórica do movimento negro. O estudo faz um levantamento e sistematização de dados, referências jurídicas e acadêmicas, além de exemplos de boas práticas com foco na população negra, parcela mais afetada pela violência, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro, Bahia, Pará e Distrito Federal.

“Há um entendimento de que o Estado brasileiro precisa ser responsabilizado por todas as injustiças cometidas contra o povo negro. Mas, para que isso se torne uma medida real e que seja realmente efetiva para todos, precisamos nos debruçar sobre esse tema com dados e produção de conhecimento, só assim será possível reparar todos os danos sofridos nos territórios”, afirma a socióloga, diretora e co-fundadora da Iniciativa Negra, Nathalia Oliveira. 

A Iniciativa Negra por uma Nova Política sobre Drogas é uma organização da sociedade civil que atua, desde 2015, pela construção de uma agenda de justiça racial e econômica promovendo ações de advocacy em Direitos Humanos e propondo reformas na atual política de combate às drogas, que contribui para um cenário de injustiças criminais e de aprisionamento em massa da população negra, resultando em violações de direitos e morte. Sendo a primeira iniciativa negra comprometida em diagnosticar e dar soluções pacíficas para uma reforma da política sobre drogas, a Iniciativa Negra atuou destacadamente nos eixos de Segurança Pública e Sistema de Justiça; Comunicação e Sociedade; Economia e Política e Dinâmicas Urbanas.

Se faz de extrema importância que a sociedade brasileira seja contemplada por projetos e ações como o da Iniciativa Negra, pois criam uma interface única para articulações entre diversos movimentos e áreas de mobilização, potencializando discursos e mudanças estruturais necessárias no desenvolvimento do país, com o objetivo de parar a máquina pública de extermínio da juventude negra e periférica do Brasil.

A verdadeira reparação histórica para a população negra perpassa por construção de memória, justiça e verdade, criando uma comissão de verdade que investigue dados e a averiguação e responsabilização sobre casos específicos, como a participação de agentes do Estado em crimes contra a humanidade, e o paradeiro de pessoas desaparecidas em meio a esses conflitos. Além de anistia a pessoas envolvidas em conflitos, mudanças legislativas e institucionais para o fim de contendas,  e outras ações urgentes para reparar anos de injustiças criminais ao povo negro.

“A pauta da reparação é ainda muito pouco desenvolvida, principalmente quando trazemos o assunto para o campo jurídico. Entendemos que o avanço dessa pauta só será possível quando olharmos sob a lógica do racismo e da guerra às drogas, ou seja, o principal argumento do Estado para marginalizar e vitimar a população negra do país”, complementa o historiador e co-fundador da Iniciativa, Dudu Ribeiro. 

Na saúde, é preciso desenvolver uma perspectiva de cuidado prioritariamente em liberdade e este cuidado deve levar em consideração a subjetividade com diversidade de abordagem e novas políticas de tratamento que consigam ser também uma política intersetorial, que é um dos princípios do SUS (Sistema Único de Saúde). As pessoas precisam ser  atendidas não só em uma perspectiva de tratamentos. Produzir saúde envolve produzir outros direitos e assistências às diversas áreas dos sujeitos, para além de só buscar cuidados que entendem apenas a abstinência como resultado satisfatório. O SUS deve produzir saúde para todos os cidadãos, inclusive para as pessoas que são usuárias de drogas. 

Esse estudo resultou do aporte financeiro de R$100.000,00, do edital Vidas Negras: Dignidade e Justiça que a organização recebeu do Baobá – Fundo para Equidade Racial com o apoio do Google.org, em maio de 2021. O objetivo do edital foi apoiar entidades negras que atuassem no enfrentamento do racismo, da violência racial e incorreções que acontecem dentro do sistema de Justiça Criminal no Brasil. A instituição contemplada está alinhada a um dos eixos de atuação do Baobá, que é o Viver Com Dignidade, o qual incentiva ações de promoção da saúde e qualidade de vida, além da prevenção de doenças e agravos.

A Iniciativa Negra acredita que é urgente e necessário desarmar a bomba da guerra às drogas que, no entendimento deles, institui-se como um projeto de manutenção das estruturas racistas no Brasil em áreas como a Segurança Pública, o Sistema de Justiça e a Saúde pública, e que distribui os prejuízos apenas para o povo negro. Pensar em possibilidades que se situem fora do modelo bélico de combate às drogas e que apontem para processos pacíficos é mais que fundamental, é urgente!

O Baobá – Fundo para equidade racial segue fomentando iniciativas como a Iniciativa Negra e acreditando que esse é um dos caminhos para a construção de uma verdadeira transformação social para a população negra.